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Qual é a função do cabelo no escalpo humano?

          Cerca de 100-150 mil folículos capilares de um total de ~5 milhões no corpo humano estão localizado no escalpo e produzem o cabelo. Porém, diferente da maior parte dos pelos corporais que são miniaturizados e muito finos, os fios de cabelo normalmente são espessos e compridos. Além disso, o escalpo possui o maior número de fios por unidade folicular (tipicamente 1-5). Essas características resultam em uma robusta cobertura capilar no topo da cabeça em indivíduos que não são afetados por condições marcadas por perda capilar (ex.: calvície comum). Mas qual o fator evolucionário que explica a vasta cabeleira no único primata "pelado" não-extinto? 

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   CABELO HUMANO

          O cabelo humano é um filamento queratinizado que cresce a partir de cavidades em forma de sacos chamados folículos capilares. Estes folículos estendem-se desde a derme até a epiderme através do extrato córneo. Cada folículo é um órgão em miniatura que contém componentes glandulares e musculares. O diâmetro de um fio de cabelo humano varia de 15 a 180 µm, e geralmente cresce até um comprimento de aproximadamente 90 cm (Ref.2).

Figura 1. Esquema de um corte do couro cabeludo: a) extrato córneo; b) epiderme; c) glândula sebácea; d) glândula écrina; e) derme; f) vasos sanguíneos; g) folículo; h) papila; i) grânulos de melanina; A) zona de diferenciação e síntese biológica; B) zona de queratinização e C) Região do cabelo permanente.  Ref.1

          O fio de cabelo é constituído por três principais partes: o bulbo, a raiz e a haste, e fica implantado no folículo pilossebáceo na derme. O bulbo é a porção final mais profunda do cabelo e é também a porção que permite seu crescimento. Está conectado à papila dérmica, ricamente inervada e vascularizada, e a qual permite a contribuição de nutrientes necessários para o crescimento capilar. A raiz fica firmemente fixada no folículo capilar, a parte do cabelo localizado entre o bulbo e a superfície da epiderme, onde o cabelo tomar a forma da haste (porção que fica visível do fio). A raiz e a haste do cabelo são feitas das mesmas três camadas concêntricas:

- cutícula (camada externa composta por várias subcamadas separadas por um complexo de células - endocutícula, epicutícula e exocutícula); 

- córtex (principal componente do cabelo, formado por um conjunto de células cilíndricas denominado de matriz, local onde fica situada a queratina e outras proteínas e lipídios estruturais);

- e medula (camada mais interna do folículo, que em alguns tipos de cabelo pode não estar presente).

Figura 3. Estrutura hierárquica de um fio de cabelo. A maior parte da fibra capilar corresponde ao córtex, contendo células corticais e abundante queratina, e responsável pela integridade do fio. Queratinas Tipo I e Tipo II se unem para formar dímeros e, então, tetrâmeros proteicos, embebidos em um espaço amorfo do córtex (matriz). A cutícula é responsável pela textura e brilho do cabelo, e na sua superfície temos a epicutícula, uma camada lipídica hidrofóbica constituída pelo ácido 18-metileicosanoico (componente que ajuda a lubrificar o fio e manter sua aparência). A fibra do cabelo também contém pigmentos (melanina), água e elementos traços. Ref.4

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> A α-queratina - uma proteína de forma espiralada - é o principal componente capilar e que dá sustentação ao cabelo, sendo formada principalmente pelos aminoácidos tirosina, glicina e cisteína. Os 12 tipos de queratinas (40% das proteínas do córtex) e os >100 tipos de proteínas associadas às queratinas, e a distribuição espacial dessas proteínas, formam a estrutura principal do córtex. Ref.5

> A cutícula - uma camada muito resistente de células mortas sobrepostas e associadas a queratinas e lipídios - cerca o córtex e fornece proteção ao fio de cabelo contra agentes agressores do ambiente.

> A medula, no centro da fibra capilar, está predominantemente presente em fibras capilares mais grossas e sua ausência é observada em alguma extensão em todos os tipos de fibras capilares. Cabelos muito crespos parecem exibir com maior frequência ausência de medula. Assim como outras estruturas da fibra capilar, é constituída principalmente de queratinas e proteínas associadas a queratinas.

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            A distribuição diferenciada e geométrica de células corticais no córtex é um fator crucial responsável pelas variações na curvatura da fibra capilar que dão origem aos diferentes tipos de cabelos: liso, ondulado, cacheado e crespo (Fig.4). Resíduos de cisteína em filamentos adjacentes de queratina tendem a formar ligações covalentes de dissulfeto com uma forte ligação cruzada entre cadeias adjacentes de queratina e, portanto, também contribuem para o formato do fio de cabelo, além de fornecer estabilidade e influenciar na textura. Porém, ligações dissulfetos e outras ligações cruzadas estabilizantes não parecem ser fatores causais da curvatura, mas elementos de suporte dessas curvaturas. Processos cosméticos (ex.: relaxamento e alisamento) que quebram e reformatam essas ligações químicas forçam mudanças temporárias ou permanentes na curvatura dos fios [hastes] de cabelo, mas não mudam a natureza intrínseca de curvatura desses fios.


Figura 4. Ilustrações representando diferentes tipos de cabelo com base em hastes longas do fio capilar. Diferenças na curvatura dos fios de cabelo emergem do bulbo capilar. Ref.6

Figura 5. Fotos de diferentes tipos de cabelo distribuídos em 8 grupos (I-VIII) de classificação com base em 3 medidas: diâmetro da curvatura, métrica de curvatura e número de ondas. Cada fio nos diferentes grupos possui 6 cm de comprimento. Cabelos crespos e comumente observados em populações Africanas estão representados pelos grupos V ao VIII. Grupos I ao VI são mais comumente observados em populações Asiáticas e Europeias. Ref.7

          Cada folículo possui seu próprio ciclo de desenvolvimento, que compreende três fases: 

- Anágena: É a fase do desenvolvimento e do crescimento do cabelo, sendo que a papila (situada na porção inicial da raiz do cabelo) do folículo está em íntimo contato com os vasos sanguíneos, onde substâncias presentes nos fluidos circulantes são absorvidas pelo cabelo. Em indivíduos saudáveis e sem problemas de alopécia, 85% dos cabelos estão nesta fase de desenvolvimento.

- Catágena: Esta fase transitória dura apenas algumas semanas, onde o cabelo para de crescer e não há mais irrigação sanguínea (o cabelo morre).

- Telógena: Nesta fase o cabelo cai, sendo empurrado por um novo folículo que nasce no mesmo local.

          A cor do cabelo resulta da quantidade e distribuição de melanossomos, os quais podem ser encontrados na cutícula, córtex e na medula; no entanto, a localização primária é dentro das células corticais. Melanossomos são organelas vesiculares contendo pimentos de melanina, eumelanina (castanho a preto) ou feomelanina (amarelo ou vermelho). Importante apontar que em cabelos do castanho ao escuro existe um nível constante de 11-17% de feomelanina (Ref.5).

Leitura complementar


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   HIPÓTESE TERMORREGULATÓRIA

           Bipedalismo, encefalização e perda de cobertura capilar no corpo são três dos principais traços que marcam a emergência do gênero Homo (humanos) e investigados na antropologia evolucionária. E todos esses traços estão associados com adaptações termorregulatórias (1). Em particular, o grande cérebro e expandido neurocrânio da nossa espécie (Homo sapiens) - com 1100-1550 cm3 de volume - é 3x maior do que aquele observado nos nossos parentes evolutivos mais próximos ainda vivos: hominídeos do gênero Pan (chimpanzés e bonobos) exibem um volume neurocraniano de 275-420 cm3 (Ref.17).

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          Aliás, a emergência de efetivo e habitual bipedalismo, capacidade de corrida, e cérebro grande ocorreram ao mesmo tempo (~2 milhões de anos atrás), junto com a emergência dos humanos. Nesse cenário, os custos de superaquecimento corporal se multiplicaram devido à excessiva produção metabólica de calor (locomoção e atividade cerebral) e sensibilidade térmica do cérebro. Adaptações termorregulatórias tornaram-se necessárias, e a perda de cobertura capilar na maior parte do corpo é talvez a mais notável: sem um "cobertor de pelos" sobre a pele, suor evapora mais facilmente a partir da superfície da pele, levando calor corporal e resfriando efetivamente o corpo. Essa inovação foi acompanhada por um dramático aumento na concentração de glândulas écrinas de suor na pele.

          Enquanto humanos modernos são únicos entre os atuais mamíferos por exibirem um corpo, em sua maior parte, funcionalmente "pelado", uma densa cobertura capilar no escalpo foi fortemente conservada. Nós somos "primatas pelados" adornados com uma vasta cabeleira. E também curioso: humanos modernos também se distinguem entre mamíferos ao exibir fios capilares muito curvos (cabelo crespo).

          Porém, entramos em uma aparente contradição. Experimentos mostram que indivíduos carecas possuem uma taxa de sudorese (produção de suor) 2-3x maior do que indivíduos com o escalpo coberto por cabelo. Nessa linha de evidência, e em termos de otimizar a perda de calor corporal, seria mais vantajoso ter o escalpo com escassa ou nenhuma cobertura capilar, certo? De fato, é o que ocorreu com a maior parte do nosso corpo.

          Por outro lado, devido ao nosso modo bípede de movimentação e postura ereta, a cabeça fica suscetível a um aquecimento excessivo devido em especial ao grande influxo de radiação solar - esse o qual se intensifica verticalmente ao longo do dia. E justamente em uma região onde está o cérebro.

          Se a cabeça é careca, atividade diurna no período mais quente do dia e em ambiente aberto, árido e ensolarado - ex.: savanas Africanas onde humanos faziam longas jornadas e caçavam - pode implicar em excessiva sudorese e perigosa perda de água corporal.

          É sugerido que durante a evolução humana no continente Africano, cabelo muito crespo representou uma nova estratégia reduzindo o aquecimento da cabeça resultante da exposição solar e, ao mesmo tempo, reduzindo ao máximo a perda de água por sudorese. O formato altamente curvo dos fios crespos afasta a fibra do cabelo para longe da pele - aumentando a distância entre a superfície do cabelo e a superfície do escalpo - e aumenta a cobertura do escalpo, portanto reduzindo a incidência solar, o aquecimento, a perda de água por sudorese e os danos da radiação ultravioleta (UV) no escalpo.

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> Os fios de cabelo crespo emergem angularmente a partir do escalpo e são gerados por folículos curvos (que possuem uma retrocurvatura no bulbo). Fios de cabelo que não é crespo, por outro lado, emergem de folículos colineares que estão embebidos em um ângulo aproximadamente reto em relação ao escalpo (Fig.6). Além de ter um contorno folicular curvado, o bulbo, IRS, ORS, e CTS das fibras crespas exibem uma assimetria no formato ou distribuição celular, em oposição à simetria e dispersão celular homogênea em fibras não-crespas (Fig.7). Por fim, distribuição e arranjo geométrico de diferentes tipos de células corticais - marcadas por distintos empacotamentos de KIFs - são fatores críticos determinando a curvatura dos fios. Entre outras diferenças que podem ser citadas, fios crespos também exibem significativa maior concentração de proteína IGFBP-5 (um fator de crescimento) e lipídios em relação aos fios lisos. 

Figura 6. Formatos subcutâneos das unidades foliculares associados a diferentes tipos de cabelo. Ref.6


Figura 7. Estrutura de uma fibra de cabelo crespo, mostrando detalhes das partes de crescimento e queratinizadas. KIF = filamento de queratina intermediário; ORS =  estojo externo da raiz; IRS = estojo interno da raiz; CTS = estojo de tecido conectivo. Ref.8

> Vários genes têm sido associados com o formato das fibras capilares e os mecanismos estruturais associados, incluindo TCHH, EDAR, WNT10A, FRAS1, OFCC1, TRAF2, PRSS53, PADI3, LOC105373470, S100A11, LCE3E e LOC391485. O gene EDAR tem sido confirmado em indivíduos com cabelo liso do Leste Asiático e da Europa, mas não em indivíduos com cabelo crespo. O gene TCHH parece ter um papel mais importante na determinação de cabelo liso nos Europeus do que na população do Leste Asiático (ex.: Japão). Ref.8

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          A emergência (ou a retenção) de cabelo no escalpo pode ter garantido um balanço ótimo entre maximizar a perda de calor ao longo da grande área superficial do corpo e minimizar o ganho de aquecimento solar sobre a pequena área superficial do escalpo, diretamente sobre o cérebro. E a evolução de cabelo crespo pode fornecer uma redução adicional no influxo de calor além da capacidade da típica pelagem lisa presente nos mamíferos em geral. O cabelo [crespo] pode representar parte de uma resposta evolucionária aos novos desafios termorregulatórios encarados pelos humanos com uma massa encefálica cada vez maior.

          Um estudo experimental de 2023, publicado no periódico PNAS (Ref.9), trouxe a primeira e convincente evidência empírica suportando essa hipótese termorregulatória. No estudo, os pesquisadores usaram manequins térmicos e perucas para simular os efeitos da radiação solar sobre o escalpo sob variadas condições ambientais (variando temperatura, umidade, níveis de radiação e velocidade dos ventos). Manequins tiveram a cabeça coberta com diferentes tipos de cabelo (Fig.8).

Figura 8. Ilustração da montagem experimental usada no estudo. Manequins com ou sem cabelo foram testados e analisados sob diferentes condições ambientais e de exposição de radiação luminosa (simulando a radiação solar incidindo na superfície terrestre). Ref.9

           Os resultados do estudo consistentemente mostraram que o cabelo reduz significativamente o ganho de calor no escalpo a partir de radiação solar e que o cabelo muito crespo, em particular, oferecia a maior proteção nesse sentido. O estudo confirmou que, independentemente da textura e tipo, o cabelo age como uma barreira que reduz a perda de calor [do escalpo] para o ambiente. Porém, no contexto de exposição solar, o cabelo funcionalmente minimiza o ganho de calor ao reduzir a quantidade de radiação térmica que alcança a superfície da pele - e essa proteção térmica fica ainda mais evidente no cabelo crespo. E, diferente de "lã", o cabelo crespo não prende calor próximo do corpo como uma camada isolante; ao invés disso, possui a vantagem de proteger contra a radiação solar e ainda permitir suficiente perda de calor via evaporação [limitada] de suor. Seria como um peculiar "guarda-sol" (Ref.10). 

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> Ao contrário da densa pelagem observada em outros mamíferos, a estrutura helicoidal dos fios de cabelo crespo cria volume e bolsas de ar, aumentando também a distância entre a pele do escalpo e o topo do cabelo. Nesse sentido, o cabelo crespo protege contra o influxo de radiação solar sem excessivo efeito de isolamento térmico.

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          Mesmo um escalpo coberto com cabelo crespo exibindo menor capacidade para evaporar suor, evaporação requerida é também menor devido a um menor influxo de calor solar. O cabelo crespo, ultimamente, confere vantagem térmica ao minimizar o influxo geral de calor quando exposto à radiação solar.

          Em um ambiente aberto e com escassas fontes de água abundante e segura para o consumo humano, evolução de traços fenotípicos que reduzem o aquecimento do corpo e a perda de água e eletrólitos corporais acaba sendo fortemente favorecida, especialmente no sentido de estender atividades físicas exaustivas (ex.: caça) sem reposição hídrica. E, de fato, o cabelo muito crespo é um traço fenotípico extremamente comum no continente Africano, onde o H. sapiens emergiu e onde savanas quentes e áridas eram extensivamente exploradas por humanos. Cerca de ~95% do cabelo de populações Africanas é crespo, e ~5% ondulado (Ref.8). 

          À medida que humanos (Homo) migraram para fora das áreas quentes e áridas da África para regiões mais frias em latitudes cada vez mais altas - eventualmente alcançando e se estabelecendo na Eurásia -, menor pressão seletiva para mecanismos de resfriamento corporal e proteção contra o UV provavelmente permitiram a evolução de cabelos cada vez mais lisos e com cores variadas (desde loiros até avermelhados). Cerca de 47% e 41% da população Europeia exibe cabelos ondulados e lisos, respectivamente, com apenas <13% de cabelo crespo (Ref.8). Na Ásia (Leste e Oeste), o cabelo é em sua maioria liso (~47%) ou ondulado (~41%).

           Isso faz sentido com outras mudanças fenotípicas, como cabelos tipicamente mais finos e derme mais macia e fina dos Europeus em relação aos Africanos, sugerindo adaptações a ambientes com variados níveis de temperatura e nível de exposição ao UV. Além disso, níveis de calvície androgênica variam substancialmente entre diferentes populações: na população masculina Europeia, calvície afeta até 80% dos indivíduos (Ref.11). Na população masculina Africana, apenas <15% dos homens e 3,5% das mulheres são afetadas pela condição, e esta se desenvolve muito mais tarde (menos de 5% são afetados antes de 50 anos de idade, enquanto 53% dos Europeus desenvolvem a condição entre 40 e 50 anos de idade) (Ref.11). Esses dados apontam que cobertura capilar no escalpo se tornou menos importante em latitudes elevadas do planeta, em favor de outros traços não necessariamente ligados à seleção natural (ex.: barba abundante) (2).

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          Somando-se a essas linhas de evidência, nas populações nativas na Melanésia, uma subregião na Oceania englobando múltiplas ilhas, pele muito escura e cabelo crespo são fenótipos prevalentes (Fig.9) e podem ter evoluído de forma paralela em relação aos humanos modernos na África, em resposta também ao clima muito quente e à intensa incidência solar e altos níveis de UV (Ref.12).


Figura 9. Crianças da população nativa na Melanésia. Relevante apontar que cabelo loiro ocorre naturalmente em parte significativa dos Melanésios (5-10%), junto com pele escura. Mutação no gene TYRP1 está associada com a despigmentação capilar nessa região, particularmente nas Ilhas de Salomão (Ref.13). Foto: YUMI Read!

    Perguntas que ainda precisam ser respondidas: 

- cabelo persistiu no escalpo durante o processo de perda capilar, ou reapareceu após a perda generalizada de cobertura capilar no corpo?

- cabelo crespo e cabelo no escalpo evoluíram juntos, ou um se desenvolveu antes do outro?

- cabelo crespo é um fenótipo ancestral e conservado na linhagem evolutiva humana;  evoluiu em múltiplas linhagens no gênero Homo de forma convergente (ou paralela); ou é um traço fenotípico único do Homo sapiens?

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   SELEÇÃO SEXUAL?

          É válido relembrar que os cabelos possuem características morfológicas e visuais diversas, desde formato até cores. Além disso, fios de cabelo crescem comumente de forma exagerada. Considerando que antigos humanos pré-históricos provavelmente não cortavam os cabelos como geralmente nós atualmente fazemos, vasta cabeleira era a norma no gênero Homo. Cabelos ondulados com muito volume poderiam ter tido algum papel de intimidação contra predadores ou inimigos (ex.: tornando o indivíduo aparentemente maior)? Considerando as diferentes cores que evoluíram em especial na Europa (ex.: ruivos), teriam os cabelos evoluído também sob seleção sexual? Longos, espessos e abundantes cabelos (ex.: na Ásia) poderiam ser uma sinalização honesta de status ótimo de saúde?

             É sugerido que após migração para fora da África há cerca de ~100 mil anos e progressivo estabelecimento de humanos em ambientes não-tropicais, seleção natural foi relaxada em relação a traços adaptativos fixados nos trópicos. Nessa hipótese, seleção natural mantinha o cabelo crespo e mais curto nos trópicos como um mecanismo para dissipar calor corporal e prevenir superaquecimento do cérebro. À medida que humanos se moveram para climas mais frios, essa pressão seletiva teria sido enfraquecida e permitido que o cabelo se tornasse mais variável em comprimento, textura e cores. Mas quais seriam os fatores determinando essas variações?

           O comprimento do cabelo se estendeu substancialmente em populações humanas que se estabeleceram nas zonas temperada e ártica do planeta, incluindo algumas que migraram de volta para zonas tropicais a partir da Eurásia, como os Austronésios no Sudeste Asiático e os Ameríndios no Novo Mundo. Além de períodos mais estendidos de crescimento capilar (fase anágena) em populações nativas Eurasianas e Americanas, taxas de crescimento capilar são significativamente menores nas populações Africanas (média de ~280 µm/dia) do que Europeus (média de ~367 µm/dia) e Asiáticos (média de ~411 µm/dia) (Ref.11). Já notado por Darwin no século XIX, nativos Americanos exibem longos cabelos lisos que podem alcançar o chão. Sem óbvias adaptações ambientais para cabelos mais longos, seleção sexual pode ser uma explicação mais plausível (Ref.14). 

           Aliás, cabelos muito longos, grossos e volumosos de variados tipos são tipicamente associados com indivíduos do sexo feminino em múltiplas populações e culturas humanas, sugerindo pressão seletiva primariamente nas fêmeas e com o "fenótipo ornamental" - talvez uma sinalização de boa saúde e alto potencial reprodutivo - sendo também arrastado em grande extensão para os machos. De fato, perda e outras disfunções capilares estão associadas a doenças diversas e deficiências nutricionais (!).

          Nesse último ponto, existe evidência experimental - apesar de limitada - de que indivíduos de pele branca ("brancos") do sexo masculino com cabelo são percebidos de forma mais positiva, incluindo em termos de atratividade e personalidade, do que indivíduos brancos do sexo masculino sem cabelo, e com essa relação não sendo observada para indivíduos do sexo masculino de pele escura afrodescendentes (Ref.15). É incerto, porém, se fatores culturais contemporâneos explicam esses padrões perceptuais, considerando que essa evidência é oriunda de um estudo conduzido nos EUA.

          Vívidas novas cores de cabelo, especialmente na Europa, também parecem ser resultantes de seleção sexual sobre indivíduos no sentido de torná-los mais notáveis para o sexo oposto - e, de fato, seleção sexual frequentemente cria traços coloridos e vívidos de atração, como observado em especial entre as aves. E lembrando que o cabelo fica na cabeça e em torno do rosto, onde a atenção visual durante interação social entre humanos é a mais forte. 

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> É possível que seleção sexual tenha se intensificado entre humanos na Eurásia devido a uma robusta maior taxa de mortalidade na população masculina ao longo do avanço para o Norte, resultando em maior competição entre as fêmeas e maior pressão seletiva sobre traços fenotípicos diferenciados. Por exemplo, atividades de caça - preferencialmente praticadas por machos - podem ter se tornado mais árduas e perigosas. É provável também que mecanismos de deriva genética tenham ajudado na emergência e fixação desses novos fenótipos. Ref.16

(!) O cabelo também pode atuar sinalizando idade avançada do indivíduo - ou mesmo saúde do indivíduo - através do aparecimento de fios brancos (cabelos grisalhos). Para mais informações: Quais são as causas para o aparecimento prematuro dos fios brancos de cabelo?

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REFERÊNCIAS

  1.  Pozebon et al. (1999). Análise de Cabelo: Uma Revisão dos Procedimentos para a Determinação de Elementos Traço e Aplicações. Químia Nova, 22(6). 
  2. Yang et al. (2014). The structure of people’s hair. PeerJ, 2: e619. https://doi.org/10.7717%2Fpeerj.619
  3. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/ics.12851
  4. Gubitosa et al. (2019). Hair Care Cosmetics: From Traditional Shampoo to Solid Clay and Herbal Shampoo, A Review. Cosmetics 6(1), 13. https://doi.org/10.3390/cosmetics6010013
  5. Koch et al. (2019). The biology of human hair: A multidisciplinary review. American Journal of Human Biology. https://doi.org/10.1002/ajhb.23316
  6. Umar et al. (2022). A New Universal Follicular Unit Excision Classification System for Hair Transplantation Difficulty and Patient Outcome. Clinical, Cosmetic and Investigational Dermatology, Volume 2022:15 Pages 1133—1147. https://doi.org/10.2147/CCID.S369346
  7. Mkentane et al. (2017) Geometric classification of scalp hair for valid drug testing, 6 more reliable than 8 hair curl groups. PLoS ONE 12(6): e0172834. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0172834
  8. Cloete et al. (2019). The what, why and how of curly hair: a review. Proceedings of the Royal Society A, Volume 475, Issue 2231. https://doi.org/10.1098/rspa.2019.0516 
  9. Havenith et al. (2023). Human scalp hair as a thermoregulatory adaptation. PNAS, 120 (24) e2301760120. https://doi.org/10.1073/pnas.2301760120
  10. Lasisi, T. (2024). A most peculiar parasol: Exploring thermoregulation through human hair curl. Temperature, Volume 11, Issue 1. https://doi.org/10.1080/23328940.2023.2279032
  11. Dadzie et al. (2017). The Anthropology of Human Scalp Hair. Dermatoanthropology of Ethnic Skin and Hair, 315–330. https://doi.org/10.1007/978-3-319-53961-4_18
  12. Deng et al. (2022). Genetic Connections and Convergent Evolution of Tropical Indigenous Peoples in Asia, Molecular Biology and Evolution, Volume 39, Issue 2, msab361. https://doi.org/10.1093/molbev/msab361
  13. Norton et al. (2014). Distribution of an allele associated with blond hair color across northern island melanesia. American Journal of Biological Anthropology, Volume 153, Issue 4, Pages 653-662. https://doi.org/10.1002/ajpa.22466
  14. Frost, P. (2008). Sexual selection and human geographic variation.Journal of Social, Evolutionary, and Cultural Psychology, 2(4), 169–191. https://doi.org/10.1037/h0099346
  15. Wade et al. (2022). Toupee or Not Toupee?: Cranial Hair and Perceptions of Men’s Attractiveness, Personality, and Other Evolutionary Relevant Traits. Evolutionary Psychological Science 8, 196–207. https://doi.org/10.1007/s40806-021-00303-y
  16. Frost, P. (2015). Evolution of Long Head Hair in Humans. Advances in Anthropology, Vol. 5, No. 4. http://dx.doi.org/10.4236/aa.2015.54021 
  17. Zihlman & Bolter (2015). Body composition in Pan paniscuscompared with Homo sapiens has implications for changes during human evolution. Proceedings of the National Academy of Sciences, 112(24), 7466–7471. https://doi.org/10.1073/pnas.150507111