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Qual a função dos longos caninos do veado-d'água?

Figura 1. Veado-d'água macho com seus longos caninos superiores, cervídeo endêmico do Leste Asiático.

 
          O veado-d'água (Hydropotes inermis) é uma espécie ruminante de pequeno porte da família Cervidae (grupo dos cervídeos, cervos ou veados), e é um animal que tende a exibir hábitos solitários e pouco contato físico entre os indivíduos (Ref.1). Diferente de outros cervídeos, essa espécie não possui galhadas (1) e é caracterizada por longos caninos superiores nos machos. Existem duas subespécies de H. inermis habitando a China (H. i. inermis) e a península Coreana (H. i. argyropus). Além dessas regiões geográficas, um número desses veados foram introduzidos na Inglaterra e na França visando caça esportiva e para propósitos de exibição, e introdução na Rússia têm sido recentemente reportada (Ref.2). Com a população na China em sério declínio devido à caça ilegal e à fragmentação de habitat, o veado-d'água é hoje uma espécie classificada como vulnerável pela IUCN (Ref.3). No território Coreano, a espécie exibe alta densidade populacional desde terras baixas até áreas florestais, mas também enfrenta sérias ameaças como mudanças no habitat e acidentes em estradas.

Figura 2. O veado-d'água-Coreano (Hydropotes inermis argyropus) parece se alimentar principalmente de plantas lenhosas (~70-85% da dieta), seguido por angiospermas herbáceas e graminoides. As duas subespécies são distinguidas por cor da pelagem e localização geográfica, e estão incluídas na subfamília Capreolinae. Nas fotos, macho (a) e fêmea (b).

Figura 3. O veado-d'água-Chinês (Hydropotes inermis inermis) se alimenta principalmente de plantas herbáceas angiospérmicas, seguido de plantas lenhosas, samambaias e gramíneas como alimentos secundários. Nas fotos, espécimes fêmea (a) e macho (b) no Nordeste da China, durante o verão e o inverno, respectivamente. Ref.4 

(1) Sugestão de leitura:


           Ao invés de galhadas, os machos de veados-d'água possuem um par de longos e afiados caninos superiores, em contraste com outras espécies de cervídeos que tipicamente exibem pequenos caninos ou ausência de caninos no maxilar superior (Fig.4). Aliás, o veado-d'água é o único cervídeo ainda vivo com ausência de galhadas e presença de notáveis caninos - apesar desse último traço não ser único entre os atuais cervídeos. Nesse aspecto, o veado-d'água é similar aos ungulados da família Moschidae (composta de um único gênero, Moschus, e pelo menos sete espécies) (Fig.5). Os caninos superiores dessa espécie podem alcançar até 6 cm nos machos, enquanto nas fêmeas raramente excedem 1 cm de comprimento - apesar de um espécime fêmea recentemente reportado de 2-2,5 anos de idade e de relativo grande porte exibir caninos com 2,4 cm (Ref.5).

Figura 4. Características morfológicas do Hydropotes inermis. (A) Aparência externa de um macho, com ausência de galhadas e presença de longos caninos superiores, e com membros anteriores mais longos do que os membros posteriores; exceto pelos longos caninos, fêmeas possuem aparência similar. (B) Crânio de um macho H. inermis, melhor mostrando os impressionantes caninos superiores (barra de escala = 1 cm). (C) Alvéola canina de um macho H. inermis; visão ventral do focinho, rostral apontando para cima. (D) Caninos superiores de um macho com raízes fechadas. A espécie possui uma massa corporal média de 14-15 kg. Ref.7-8

Figura 5. Na foto, macho (a) e fêmea (b) da espécie Moschus berezovskii. Os cervos-almiscarados (Moschidae) são um grupo de pequenos ruminantes (9-11 kg de massa corporal) sem galhadas e com grandes caninos nos machos. Os machos também exibem também de forma distinta um órgão produtor de uma secreção odorífera (almiscareiro) no abdômen, a qual é processada pela microbiota associada e usada para marcar o território e atrair as fêmeas. Esses animais são herbívoros, mas não são ruminantes. Evidências genética e morfológica sugerem que a família Moschidae é um grupo-irmão da família Bovidae, essa última incluindo antílopes, bovinos e caprinos (2). Ref.9-10

(2) Sugestão de leitura:


            O notável dismorfismo sexual relativo aos caninos superiores está associado a combates intraespecíficos entre machos durante as temporadas de acasalamento, quando existe maior contato entre os indivíduos machos e fêmeas. A temporada de acasalamento dura de novembro até janeiro, onde alguns machos estabelecem e defendem territórios - com base na distribuição de fêmeas. Machos marcam o território ao cavar buracos e enchê-los com urina ou fezes (>86% dos casos) ou esfregando a testa por até vários minutos contra objetos inanimados (Ref.7). Em um combate por território ou fêmeas, os machos preferem ataques diretos e esses são escalados até o último recurso mais danoso e potencialmente letal: o uso dos caninos afiados.

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          Os golpes com os longos caninos podem causar sérias lesões, como rasgos nas orelhas e longas feridas (5-30 cm) em virtualmente todas as partes do corpo. Em outras palavras, os caninos são armas muito efetivas durante os combates entre machos, com potencial de morte do oponente, incluindo caso reportado de perfurações letais no coração. Essa forma de combate é similar ao observado nas espécies de Moschus. Por outro lado, os machos do gênero Muntiacus - cervídeos que exibem galhada e longos caninos (3) - preferem usar mais as galhadas nos combates.

Figura 5. Machos de veado-d'água usam seus longos e afiados caninos para violentos combates intraespecíficos.


(3) Para mais informações


            Evidências sugerem que longos e bem desenvolvidos caninos evoluíram e persistiram em cervídeos e clados próximos - desfavorecendo outras armas cranianas (ex.: galhadas e chifres) - particularmente entre machos de pequeno porte (<15 kg) e solitários (Ref.11). E espécies mais solitárias vivem em habitats mais fechados. 

          Nesse sentido, longos caninos parecem ser uma opção melhor de arma para artiodátilos [ordem de ungulados com número par de dedos] em ambientes florestados com baixa visibilidade, enquanto táxons maiores vivendo em ambientes mais abertos (ex.: cervídeos como renas, alces, corças, etc.) podem suportar o custo de estruturas mais elaboradas e robustas de combate na cabeça que funcionam também como comunicação a longa distância e um sinal honesto de habilidade de luta. Pequenas espécies em habitats mais densos podem também ser mais prováveis de sofrerem emboscadas por predadores e precisar se defender sob interação física com os agressores; "adagas" [caninos longos] pequenas e cortantes podem ser uma melhor arma defensiva e permitir mais fácil movimentação/manipulação e possibilidade de escape mais rápido do que grandes galhadas em ambientes densamente vegetados.


REFERÊNCIAS

  1. Dubost et al. (2010). Social organization in the Chinese water deer, Hydropotes inermis. Acta Theriologica, 56(2), 189–198. https://doi.org/10.1007/s13364-010-0008-7
  2. Lee et al. (2022). Using high-throughput sequencing to investigate the dietary composition of the Korean water deer (Hydropotes inermis argyropus): a spatiotemporal comparison. Scientific Reports 12, 22271. https://doi.org/10.1038/s41598-022-26862-z
  3. The IUCN Red List of Threatened Species: Hydropotes inermis. (2015). http://dx.doi.org/10.2305/IUCN.UK.2015-2
  4. Li et al. (2023). Distribution update of water deer (Hydropotes inermis) and prediction of their potential distribution in Northeast China. Scientific Reports 13, 5610. https://doi.org/10.1038/s41598-023-32314-z
  5. Fomenko et al. (2023). The Exterior of a Water Deer (Hydropotes inermis (Swinhoe 1870), Cetartiodactyla, Cervidae) Found in the Southern Part of Primorskii Krai. Biology Bulletin 50, 1626–1634. https://doi.org/10.1134/S1062359023070075
  6. Oh et al. (2017). Cranial suture closure pattern in water deer and implications of suture evolution in cervids. Mammalian Biology, Volume 86, Pages 17-20. https://doi.org/10.1016/j.mambio.2017.03.004
  7. Schilling & Rössner (2017). The (sleeping) Beauty in the Beast – a review on the water deer, Hydropotes inermis. Hystrix, the Italian Journal of Mammalogy, Volume 28 (2): 121–133. https://doi.org/10.4404/hystrix-28.2-12362
  8. Dubost et al. (2011). The Chinese water deer, Hydropotes inermis—A fast-growing and productive ruminant. Mammalian Biology, Volume 76, Issue 2, Pages 190-195. https://doi.org/10.1016/j.mambio.2010.04.001 
  9. Feng et al. (2023). Forest musk deer (Moschus berezovskii) in China: research and protection. Journal of Vertebrate Biology, 72(22067):22067.1-13. https://doi.org/10.25225/jvb.22067
  10. Wang et al. (2023). Miocene Moschidae (Mammalia, Ruminantia) from the Linxia Basin (China) connect Europe and Asia and show an early evolutionary diversity of a today monogeneric family. Palaeogeography, Palaeoclimatology, Palaeoecology, Volume 619, 111531. https://doi.org/10.1016/j.palaeo.2023.111531
  11. Cabrera & Stankowich (2018). Stabbing Slinkers: Tusk Evolution Among Artiodactyls. Journal of Mammalian Evolution, 27:265-272. https://doi.org/10.1007/s10914-018-9453-x
  12. Proskuryakova et al. (2023). Comparative studies of X chromosomes in Cervidae family. Scientific Reports 13, 11992. https://doi.org/10.1038/s41598-023-39088-4