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Por que algumas ovelhas possuem um traseiro gordo?

Figura 1. Ovelha de traseiro gordo, linhagem Altay. Habita o nordeste da China, caracterizada por longos e frios invernos com mínimas de temperatura que podem alcançar 51,5°C negativos. A cauda e o traseiro dessa linhagem são fusionados e a gordura acumulada nessa região pode responder por aproximadamente 25% da carcaça em massa de um macho adulto, na média, durante o outono. Ref.1

 
          Sim, humanos não são os únicos com "popozão".

          Cerca de 25% da população de ovelhas domésticas (Ovis aries) no mundo possuem um traço adaptativo para condições ambientais difíceis, como invernos extremamente frios, escassez de alimento e temporadas secas: armazenam grande quantidade de gordura na cauda ou traseiro. E, de fato, são mais tolerantes a condições severas e prolongadas de subnutrição e a maioria delas estão distribuídas nas regiões temperadas e frias da Terra. Na China, essa variação responde por aproximadamente 60-80% da população de todas as linhagens nativas de ovelhas domésticas (Ref.2). Atualmente, existem mais de 1400 linhagens de ovelhas domésticas ao redor do mundo (Fig.2), estabelecidas através de adaptação a diversos ambientes onde foram criadas e selecionadas para vários propósitos por humanos (Ref.3).

Figura 2. Variação fenotípica de 42 linhagens de ovelhas domésticas nativas da China. Ref.4

Figura 3. Variação de chifres entre ovelhas. Chifres podem ser divididos em cinco tipos gerais (a-e), incluindo linhagens sem chifres (a) ou com chifres deformados ou vestigiais (b). Os chifres desses caprinos são comumente usados para proteção contra predadores e como arma em disputas intraespecíficas (luta entre machos). Em linhagens modernas de ovelhas domésticas, fenótipos sem chifres são mais desejados como um modo de evitar o corte artificial dessas estruturas, uma prática geralmente realizada para proteger as ovelhas e os criadores de de lesões acidentais. Ref.4

Figura 4. Algumas poucas populações nativas de ovelhas domésticas exibem múltiplos chifres, uma condição conhecida como policeratia. Ovelhas com esse fenótipo - ligado a mutações em um grupo de genes Hox chamado HOXD - desenvolvem geralmente 4 chifres, mas podem existir indivíduos com 3, 5 e 6 chifres (fenótipo atípico). Ref.4

Figura 5. Ovelhas de cauda gorda da linhagem Han. Esses animais acumulam muita gordura na região da cauda durante o verão e o outono, quando pastos nutritivos estão disponíveis. No inverno, quando as temperaturas estão extremamente baixas e os campos de gramíneas estão cobertos com pesada cobertura de neve por longos períodos de tempo, esses animais obtêm energia ao decompor os depósitos de gordura na cauda para sobreviver.

Figura 6. Linhagens (A) Zel, de cauda magra, e (B) Lori-Bakhtiari,de cauda gorda. 
 
Figura 7. (a) Linhagem de cauda gorda Damara. (b) Destaque da cauda em variantes fenotípicas dessa linhagem.
 
          

Figura 8. Visão lateral de cinco padrões fenotípicos comuns da região traseira de ovelhas domésticas: (a) cauda longa gorda; (b) cauda curta gorda; (c) traseiro-cauda gorda; (d) cauda longa e magra; (e) cauda curta e magra. Ref.6

          Com base em evidência arqueológica e genômica, linhagens modernas de ovelhas foram domesticadas na região do Crescente Fértil há 9-12 mil anos, talvez antes da domesticação das cabras (1). As primeiras ovelhas domesticadas possuíam cauda e traseiro magros, assim como o ancestral selvagem (Fig.5). Linhagens com acúmulo excessivo de gordura na cauda ou traseiro emergiram há ~5 mil anos, evoluindo a partir das antigas ovelhas domésticas sem acúmulo adiposo na região traseira do corpo (Ref.7). Mudanças regulatórias e variantes em múltiplos genes estão diretamente e indiretamente envolvidas nos diferentes padrões de distribuição adiposa no corpo desses caprinos, e vários desses genes estão relacionados ao metabolismo de gordura e pelo menos um fator de crescimento. Essas mudanças foram marcadas por múltiplos processos de seleção natural e artificial (Ref.8-11). Ovelhas com diferentes distribuições e acúmulo de gordura também exibem um metabolismo e perfil lipídicos distintos. Variações no comprimento da cauda têm sido recentemente associadas com o gene VRTN (Ref.12).

 

Figura 5. Em (A), ovelha selvagem da espécie Ovis gmelini (2n = 54 cromossomos), encontrada tipicamente em regiões montanhosas do Irã. Evidência genética aponta que essa espécie é o ancestral das ovelhas domésticas, e com o ancestral direto provavelmente representado por múltiplas subespécies, como a O. g. gmelinii - nativa do oeste do Irã e do leste da Turquia. Mas evidência mitocondrial aponta também contribuição [fluxo genético] da espécie (BOvis vignei (2n = 58 cromossomos) em linhagens de ovelhas domésticas através de hibridização. A domesticação das ovelhas provavelmente começou há ~10-11 mil anos em regiões hoje pertencentes à Turquia, Irã e Iraque, com subsequente expansão para o ocidente das linhagens domesticadas há aproximadamente 5-7 mil anos. Em (C), ovelha doméstica da linhagem Kihnu, nativa da Estônia. Ref.13-21


Figura 6. Vaso suportado por duas ovelhas, datado do período de 2600 até 2500 a.C. A partir de ~8 mil anos, criadores de ovelhas no Crescente Fértil começaram a deliberadamente selecionar animais nos rebanhos - em particular para genes codificantes de cor branca na pelagem. A ascensão de pastoreiros nas estepes da Eurásia e o avanço dessas pessoas para a Europa teve início há ~5 mil anos e profundamente transformou as populações humanas Europeias ancestrais em termos demográficos e culturais. Por exemplo, a ancestralidade dos Britânicos foi alterada em torno de 90%, e o processo introduziu a linguagem Indo-Europeia que é ancestral das línguas faladas hoje ao redor do continente. Ref.22

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> Ovelhas (Ovis spp.) e cabras (Capra spp.) divergiram do ancestral comum há cerca de 5-7 milhões de anos, no final do Mioceno, e estão entre os mais antigos bovídeos que foram domesticados (2). Embora exista significativa variação no número de cromossomos entre as várias espécies de ovelhas (2n = 52 até 58), evidência genômica sugere que a "ovelha ancestral" possuía um cariótipo com 60 cromossomos, assim como observado em todas as cabras. Além disso, os genomas desses dois grupos de caprinos são marcados por múltiplos processos de seleção paralela e convergente. Ref.23

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> Ovelhas e Lã. Ovelhas selvagens e várias antigas linhagens domesticadas possuíam duas camadas de pelagem: pelos grossos cobrindo fibras capilares mais curtas e finas. E ambos sendo trocados anualmente. No início, esses animais eram criados apenas para a alimentação humana. Somente milênios após a domesticação inicial das ovelhas, na Idade do Bronze, humanos começaram a selecionar linhagens com pelagem cada vez mais densa e com contínuo crescimento de fibras, visando a exploração dos pelos (lã) para a produção de tecidos. Inicialmente os pelos de lã eram pigmentados. Lã branca em tecidos apareceu na Idade do Ferro. Lã com fibras mais finas só apareceu na Era Moderna e se tornou uma comodidade valiosa e de prestígio. Ref.23-25

Figura 7. (A) Linhagem Merino, criada na Espanha ao redor do século XII e famosa pela produção de lã fina e macia de alta qualidade. (B) Linhagem Letelle, derivada da linhagem Merino e adaptada ao ambiente da África do Sul. Em contraste com ovelhas selvagens e ovelhas domésticas primitivas, a pelagem de ovelhas modernas usada para a produção de lã cresce continuamente - ou seja, não passa por ciclos anuais de crescimento e queda - e exibe fios com diâmetros mais uniformes. E diâmetro dos fios de lã é um traço que varia amplamente entre as linhagens de ovelhas domésticas, visando a produção de diferentes tipos de tecido. Ref.26-28

Figura 8. Ovelhas da linhagem Shumen Copper-red, nativa da Bulgária e criada para a produção de lã. Essa linhagem é totalmente pigmentada, exibindo tipicamente uma pelagem longa (~14 cm) cor de chocolate ou marrom-avermelhada e com o rosto, orelhas e pernas cobertas com pelos curtos pretos. Hoje existem várias linhagens de ovelhas domésticas que produzem lã com cores diversas além do branco, determinadas pela concentração de diferentes melaninas nos pelos. Ref.28
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          Linhagens de ovelhas domésticas com acúmulo excessivo de gordura na parte traseira do corpo têm sido apreciadas para criação e consumo humano por milênios em várias regiões de climas mais severos, mas as últimas décadas têm testemunhado uma desvalorização no mercado internacional dessas ovelhas (Ref.30-31). Por exemplo, produtores começaram a notar que o acúmulo adiposo excessivo no traseiro desses animais influencia negativamente no acasalamento efetivo, na locomoção e em características da carcaça. Nesse último ponto, até 20% ou mais da massa da carcaça pode corresponder à gordura acumulada na cauda, reduzindo a deposição de gordura em outras partes do corpo e causando prejuízo na qualidade da carne; e pode ser difícil vender a cauda gorda para consumidores. Além disso, essas ovelhas precisam de maior alimentação para o acúmulo adiposo e se tornam mais custosas para criar. Por fim, existe a tendência no mercado dos consumidores preferirem alimentos com baixo nível de gordura animal.

           Apesar disso, linhagens de cauda ou bunda gorda continuam ainda sendo preferíveis em pastoreios locais, desertos e condições semi-desérticas em várias sociedades humanas (Ref.4).

          Essas adaptações são semelhantes àquelas observadas em camelídeos (corcovas de gordura), concentrando muita gordura em uma parte do corpo para suprir energia em contextos de escassez alimentar (reserva energética) e facilitar a perda de calor corporal em ambientes muito quentes (3).

        Evidências científicas sugerem que adaptação similar ocorreu em humanos quando nossos ancestrais hominídeos invadiram as savanas na África. Esse seria o motivo para termos nádegas (bunda) farta e, talvez, as notáveis grandes mamas nas fêmeas - junto ou não com processos marcados por seleção sexual (4).

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REFERÊNCIAS

  1. Zhang et al. (2024). Profile of miRNAs induced during sheep fat tail development and roles of four key miRNAs in proliferation and differentiation of sheep preadipocytes. Frontiers in Veterinary Science, Volume 11. https://doi.org/10.3389/fvets.2024.1491160 
  2. Han et al. (2021) Quantitative proteomic analysis identified differentially expressed proteins with tail/rump fat deposition in Chinese thin- and fat-tailed lambs. PLoS ONE, 16(2): e0246279. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0246279
  3. Abbasabadi et al. (2024). RNA-Seq based selection signature analysis for identifying genomic footprints associated with the fat-tail phenotype in sheep. Frontiers in Veterinary Science, Volume 11. https://doi.org/10.3389/fvets.2024.1415027
  4. Kalds et al. (2022). Genetics of the phenotypic evolution in sheep: a molecular look at diversity-driving genes. Genetics Selection Evolution 54, 61. https://doi.org/10.1186/s12711-022-00753-3
  5. https://www.nature.com/articles/s41598-020-70527-8
  6. Kalds et al. (2021). Trends towards revealing the genetic architecture of sheep tail patterning: Promising genes and investigatory pathways. Animal Genetics, Volume 52, Issue 6, Pages 799-812. https://doi.org/10.1111/age.13133
  7. Ma et al. (2021). Genome wide association study for the identification of genes associated with tail fat deposition in Chinese sheep breeds. Biology Open, 10 (5): bio054932. https://doi.org/10.1242/bio.054932
  8. Alves et al. (2013). "Does the Fat Tailed Damara Ovine Breed Have a Distinct Lipid Metabolism Leading to a High Concentration of Branched Chain Fatty Acids in Tissues?" PLoS ONE 8(10): e77313. https://doi.org/10.1371/journal.pone.007731
  9. Moradi et al. (2022). Hitchhiking Mapping of Candidate Regions Associated with Fat Deposition in Iranian Thin and Fat Tail Sheep Breeds Suggests New Insights into Molecular Aspects of Fat Tail Selection.  Animals 12(11), 1423. https://doi.org/10.3390/ani12111423  
  10. Bakhtiarizadeh, M.R. (2024). Deciphering the role of alternative splicing as a potential regulator in fat-tail development of sheep: a comprehensive RNA-seq based study. Scientific Reportes 14, 2361. https://doi.org/10.1038/s41598-024-52855-1
  11. Zhang et al. (2024). Comprehensive multi-tissue epigenome atlas in sheep: A resource for complex traits, domestication, and breeding. iMeta, Volume 3, Issue 6, e254. https://doi.org/10.1002/imt2.254
  12. Qi et al. (2024). Selection signature analysis reveals genes associated with tail phenotype in sheep. Frontiers in Genetics, Volume 15. https://doi.org/10.3389/fgene.2024.1509177
  13. Sanna et al. (2015) The First Mitogenome of the Cyprus Mouflon (Ovis gmelini ophion): New Insights into the Phylogeny of the Genus Ovis. PLoS ONE 10(12): e0144257. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0144257
  14. https://www.mdpi.com/2073-4425/13/8/1421
  15. Her et al. (2022). Broad maternal geographic origin of domestic sheep in Anatolia and the Zagros. Animal Genetics, Volume 53, Issue 3, Pages 452-459. https://doi.org/10.1111/age.13191
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  17. https://www.mdpi.com/1424-2818/15/5/627
  18. Miranda et al. (2023). Demographic reconstruction of the Western sheep expansion from whole-genome sequences. G3 Genes|Genomes|Genetics, Volume 13, Issue 11, jkad199. https://doi.org/10.1093/g3journal/jkad199
  19. Sandoval-Castellanos et al. (2024). Ancient mitogenomes from Pre-Pottery Neolithic Central Anatolia and the effects of a Late Neolithic bottleneck in sheep (Ovis aries). Science Advances, Vol. 10, No. 15. https://doi.org/10.1126/sciadv.adj0954
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  21. Rannamäe et al. (2016). Three Thousand Years of Continuity in the Maternal Lineages of Ancient Sheep (Ovis aries) in Estonia. PLoS ONE 11(10): e0163676. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0163676
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  24. Hirata et al. (2023). Mitochondrial DNA analyses revealed distinct lineages in an alpine mammal, Siberian ibex (Capra sibirica) in Xinjiang, China. Ecology and Evolution, Volume 13, Issue 8, e10288. https://doi.org/10.1002/ece3.10288
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  27. https://www.thewoolcompany.co.uk/blogs/the-wool-company-inspiration/timeless-merino
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