Por que algumas ovelhas possuem um traseiro gordo?
Sim, humanos não são os únicos com "popozão".
Cerca de 25% da população de ovelhas domésticas (Ovis aries) no mundo possuem um traço adaptativo para condições ambientais difíceis, como invernos extremamente frios, escassez de alimento e temporadas secas: armazenam grande quantidade de gordura na cauda ou traseiro. E, de fato, são mais tolerantes a condições severas e prolongadas de subnutrição e a maioria delas estão distribuídas nas regiões temperadas e frias da Terra. Na China, essa variação responde por aproximadamente 60-80% da população de todas as linhagens nativas de ovelhas domésticas (Ref.2). Atualmente, existem mais de 1400 linhagens de ovelhas domésticas ao redor do mundo (Fig.2), estabelecidas através de adaptação a diversos ambientes onde foram criadas e selecionadas para vários propósitos por humanos (Ref.3).
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Figura 2. Variação fenotípica de 42 linhagens de ovelhas domésticas nativas da China. Ref.4 |
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Figura 6. Linhagens (A) Zel, de cauda magra, e (B) Lori-Bakhtiari,de cauda gorda. |
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Figura 7. (a) Linhagem de cauda gorda Damara. (b) Destaque da cauda em variantes fenotípicas dessa linhagem. |
Com base em evidência arqueológica e genômica, linhagens modernas de ovelhas foram domesticadas na região do Crescente Fértil há 9-12 mil anos, talvez antes da domesticação das cabras (1). As primeiras ovelhas domesticadas possuíam cauda e traseiro magros, assim como o ancestral selvagem (Fig.5). Linhagens com acúmulo excessivo de gordura na cauda ou traseiro emergiram há ~5 mil anos, evoluindo a partir das antigas ovelhas domésticas sem acúmulo adiposo na região traseira do corpo (Ref.7). Mudanças regulatórias e variantes em múltiplos genes estão diretamente e indiretamente envolvidas nos diferentes padrões de distribuição adiposa no corpo desses caprinos, e vários desses genes estão relacionados ao metabolismo de gordura e pelo menos um fator de crescimento. Essas mudanças foram marcadas por múltiplos processos de seleção natural e artificial (Ref.8-11). Ovelhas com diferentes distribuições e acúmulo de gordura também exibem um metabolismo e perfil lipídicos distintos. Variações no comprimento da cauda têm sido recentemente associadas com o gene VRTN (Ref.12).
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> Ovelhas (Ovis spp.) e cabras (Capra spp.) divergiram do ancestral comum há cerca de 5-7 milhões de anos, no final do Mioceno, e estão entre os mais antigos bovídeos que foram domesticados (2). Embora exista significativa variação no número de cromossomos entre as várias espécies de ovelhas (2n = 52 até 58), evidência genômica sugere que a "ovelha ancestral" possuía um cariótipo com 60 cromossomos, assim como observado em todas as cabras. Além disso, os genomas desses dois grupos de caprinos são marcados por múltiplos processos de seleção paralela e convergente. Ref.23
Leitura recomendada:
- (1) Domesticação das cabras teve início há mais de 9 mil anos, no Irã, sugere estudo
- (2) Qual é a relação entre vacas e antílopes?
> Ovelhas e Lã. Ovelhas selvagens e várias antigas linhagens domesticadas possuíam duas camadas de pelagem: pelos grossos cobrindo fibras capilares mais curtas e finas. E ambos sendo trocados anualmente. No início, esses animais eram criados apenas para a alimentação humana. Somente milênios após a domesticação inicial das ovelhas, na Idade do Bronze, humanos começaram a selecionar linhagens com pelagem cada vez mais densa e com contínuo crescimento de fibras, visando a exploração dos pelos (lã) para a produção de tecidos. Inicialmente os pelos de lã eram pigmentados. Lã branca em tecidos apareceu na Idade do Ferro. Lã com fibras mais finas só apareceu na Era Moderna e se tornou uma comodidade valiosa e de prestígio. Ref.23-25
Linhagens de ovelhas domésticas com acúmulo excessivo de gordura na parte traseira do corpo têm sido apreciadas para criação e consumo humano por milênios em várias regiões de climas mais severos, mas as últimas décadas têm testemunhado uma desvalorização no mercado internacional dessas ovelhas (Ref.30-31). Por exemplo, produtores começaram a notar que o acúmulo adiposo excessivo no traseiro desses animais influencia negativamente no acasalamento efetivo, na locomoção e em características da carcaça. Nesse último ponto, até 20% ou mais da massa da carcaça pode corresponder à gordura acumulada na cauda, reduzindo a deposição de gordura em outras partes do corpo e causando prejuízo na qualidade da carne; e pode ser difícil vender a cauda gorda para consumidores. Além disso, essas ovelhas precisam de maior alimentação para o acúmulo adiposo e se tornam mais custosas para criar. Por fim, existe a tendência no mercado dos consumidores preferirem alimentos com baixo nível de gordura animal.
Apesar disso, linhagens de cauda ou bunda gorda continuam ainda sendo preferíveis em pastoreios locais, desertos e condições semi-desérticas em várias sociedades humanas (Ref.4).
Essas adaptações são semelhantes àquelas observadas em camelídeos (corcovas de gordura), concentrando muita gordura em uma parte do corpo para suprir energia em contextos de escassez alimentar (reserva energética) e facilitar a perda de calor corporal em ambientes muito quentes (3).
Evidências científicas sugerem que adaptação similar ocorreu em humanos quando nossos ancestrais hominídeos invadiram as savanas na África. Esse seria o motivo para termos nádegas (bunda) farta e, talvez, as notáveis grandes mamas nas fêmeas - junto ou não com processos marcados por seleção sexual (4).
Leitura recomendada:
- (3) Mitos e verdades sobre os camelos
- (4) Por que homens são atraídos por mulheres com seios e bunda grandes e cintura fina?
REFERÊNCIAS
- Zhang et al. (2024). Profile of miRNAs induced during sheep fat tail development and roles of four key miRNAs in proliferation and differentiation of sheep preadipocytes. Frontiers in Veterinary Science, Volume 11. https://doi.org/10.3389/fvets.2024.1491160
- Han et al. (2021) Quantitative proteomic analysis identified differentially expressed proteins with tail/rump fat deposition in Chinese thin- and fat-tailed lambs. PLoS ONE, 16(2): e0246279. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0246279
- Abbasabadi et al. (2024). RNA-Seq based selection signature analysis for identifying genomic footprints associated with the fat-tail phenotype in sheep. Frontiers in Veterinary Science, Volume 11. https://doi.org/10.3389/fvets.2024.1415027
- Kalds et al. (2022). Genetics of the phenotypic evolution in sheep: a molecular look at diversity-driving genes. Genetics Selection Evolution 54, 61. https://doi.org/10.1186/s12711-022-00753-3
- https://www.nature.com/articles/s41598-020-70527-8
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- Ma et al. (2021). Genome wide association study for the identification of genes associated with tail fat deposition in Chinese sheep breeds. Biology Open, 10 (5): bio054932. https://doi.org/10.1242/bio.054932
- Alves et al. (2013). "Does the Fat Tailed Damara Ovine Breed Have a Distinct Lipid Metabolism Leading to a High Concentration of Branched Chain Fatty Acids in Tissues?" PLoS ONE 8(10): e77313. https://doi.org/10.1371/journal.pone.007731
- Moradi et al. (2022). Hitchhiking Mapping of Candidate Regions Associated with Fat Deposition in Iranian Thin and Fat Tail Sheep Breeds Suggests New Insights into Molecular Aspects of Fat Tail Selection. Animals 12(11), 1423. https://doi.org/10.3390/ani12111423
- Bakhtiarizadeh, M.R. (2024). Deciphering the role of alternative splicing as a potential regulator in fat-tail development of sheep: a comprehensive RNA-seq based study. Scientific Reportes 14, 2361. https://doi.org/10.1038/s41598-024-52855-1
- Zhang et al. (2024). Comprehensive multi-tissue epigenome atlas in sheep: A resource for complex traits, domestication, and breeding. iMeta, Volume 3, Issue 6, e254. https://doi.org/10.1002/imt2.254
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