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Qual a função da cauda e do padrão preto-e-branco nos membros anteriores do tamanduá-bandeira?

Figura 1. Tamanduá-bandeira adulto carregando um filhote nas costas.

          O tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla) é um mamífero insetívoro que pode ser encontrado em todo o território Brasileiro, além de áreas como o norte do Uruguai, na Argentina, na Venezuela, na Colômbia e nas Guianas. A sobrevivência dessa espécie é constantemente ameaçada por ataques de cães, queimadas, caça predatória e fragmentação de seu hábitat. Em especial, o tamanduá-bandeira figura na lista de espécies brasileiras ameaçadas de extinção, classificado como vulnerável na lista da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN), demandando esforços crescentes para a conservação da espécie no país. Entre as notáveis e distintas características anatômicas dos tamanduás-bandeira temos a exuberante cauda e a coloração da parte inferior dos membros com padrões preto-e-branco - esse último traço ainda motivo de caloroso debate acadêmico e com uma recente e interessante hipótese proposta. 

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(!) Outra causa de mortalidade desses animais é o atropelamento em rodovias, que pode superar inclusive os impactos causados pela caça ou até mesmo mortes por causa natural. O comportamento letárgico e a característica dessas espécies de percorrer longas distâncias à procura de alimento aumentam seus riscos de colisão com veículos. As rodovias podem ainda constituir uma barreira física e prejudicar a movimentação, o acesso a recursos e o fluxo genético desses indivíduos, contribuindo ainda mais para a diminuição de seus exemplares. Nos últimos 10 anos, estima-se uma perda de pelo menos 30% na população de tamanduás-bandeira. Ref.1

> Machos de tamanduá-bandeira alcançam a maturidade sexual ao redor de 3 anos de idade e as fêmeas dão à luz apenas 1 filhote por ano. Essas características acentuam outros fatores de declínio populacional.

> Uma curiosa característica dos machos de tamanduás-bandeira - compartilhada por todos os outros machos da superordem Xenarthra - é a presença de testículos internos (posição intra-abdominal), divergente em relação a vários outros mamíferos onde os testículos são externos e envoltos apenas pelo saco escrotal (1). O curto pênis dos machos também não exibem báculo (osso peniano) (2). 

Para mais informações

> Aliás, a anatomia única e características fisiológicas dos tamanduás, como taxas metabólicas relativamente baixas, tornam esses animais difíceis de serem anestesiados, sendo necessários protocolos especiais de imobilização química (Ref.2).

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           A superordem Xenarthra possui uma distribuição Neotropical e é composta por duas ordens: Pilosa (tamanduás e bichos-preguiças) e Cingulata (tatus) (3). Esse grupo compreende mamíferos terrestres com atributos morfológicos únicos que são principalmente relacionados com uma dieta especializada e atividades de escavação. O tamanduá-bandeira (M. tridactyla) é o maior representante vivo dessa superordem e atua de forma importante no equilíbrio do ecossistema onde está inserido. Os hábitos peculiares de alimentação dos tamanduás-bandeiras influenciam o comportamento, metabolismo, anatomia e função locomotiva desses animais, trazendo fenótipos como um estranho e alongado focinho que acomoda uma língua extremamente longa (~45 cm) usada para alcançar formigas e cupins (4) nos ninhos desses insetos. Além disso, esses animais não exibem dentes. E, apesar de não ser considerado agressivo, os tamanduá-bandeira pode ser perigosos: possui longas garras e poderosos antebraços usados para destruir cupinzeiros que podem causar lesões graves em predadores tentando atacá-los ou mesmo tratadores humanos (!).

Figura 2. Relações filogenéticas da superordem Xenarthra. Esse clado de mamíferos eutérios evoluiu na América do Sul desde o Paleoceno médio e subsequentemente radiou com sucesso para dois distintos grupos [divergência estimada há ~63 milhões de anos]: Cingulata (incluindo tatus modernos e extintos da família Chlamyphoridae) e Pilosa (incluindo preguiças das famílias Bradypodidae e Megalonychidae e tamanduás das famílias Myrmecophagidae e Cyclopedidae). Xenarthra é considerada a linhagem mais antiga dos mamíferos placentários, emergindo há 59-65 milhões de anos.  Atualmente, existem 31 espécies vivas nessa superordem, todas exibindo redução dentária e com extremo observado nos tamanduás (ausência de dentes). Existem hoje quatro espécies de tamanduás: Cyclopes didactylus, Myrmecophaga tridactylaTamandua tetradactyla e Tamandua mexicanaRef.4

Sugestão de leitura:


Figura 3. Língua (A) e garras anteriores (B) do Myrmecophaga tridactyla. Ocupando principalmente áreas de savana e florestais, a dieta desses animais é composta essencialmente ou quase exclusivamente de formigas (Hymenoptera) e cupins (Blattodea). No sentido de aumentar a eficiência de busca e captura de presas, o tamanduá-bandeira possui um focinho longo, um aguçado senso de olfato, uma língua longa e protrátil, garras longas e fortes para cavar cupinzeiros ou solo, e glândulas de muco salivar bem desenvolvidas. Ref.5

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(!) Lesões causadas por tamanduás em humanos são raras e ocorrem naqueles que provocam ou tentam caçá-los e profissionais que lidam com esses animais com propósitos científicos. Em 2014, no periódico Wilderness & Environmental Medicine (Ref.6), pesquisadores reportaram a morte de um homem adulto de 47 anos por um tamanduá-bandeira. O homem, no caso, estava caçando o tamanduá com seus cães e acompanhado dos seus dois filhos. Quando os cães cercaram o tamanduá, este assumiu uma posição ereta e de defesa. O homem, então, resolveu não atirar com o seu rifle com medo de acertar algum dos seus cães e partiu para cima do tamanduá com uma faca. O tamanduá agarrou o homem e desferiu golpes fatais com suas garras na região inguinal, rasgando a artéria femoral esquerda e provocando intensa hemorragia. O evento ocorreu em Guajará, no Amazonas (Brasil).

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Figura 4. Tamanduá-bandeira cavando o solo com suas garras e introduzindo a língua no buraco criado. A língua dos tamanduás-bandeiras é bastante pegajosa e, quando inserida nos ninhos de formigas e de cupins, agarra inúmeros desses insetos pelo caminho, os quais são então arrastados para a boca. O sistema masticatório é marcado por rápidos ciclos de protrusão-retração da língua (até 160 ciclos/minuto) e associado a altas taxas de transporte de alimento e quase contínua deglutição. Até 35 mil formigas ou cupins podem ser consumidos diariamente por um tamanduá-bandeira. A língua é fina, com um diâmetro de apenas 10-15 mm no ponto mais grosso, mas exibindo uma musculatura bem desenvolvida. A língua pode se estender até 61 cm além da boca, graças ao fato de estar desprendida do hioide e anexada ao esterno. Ref.7

          Os tamanduás-bandeira são em sua maior parte noturnos, mas aumentam a atividade diurna em períodos de mais baixa temperatura. Devido ao grande tamanho - massa corporal na faixa de 22-45 kg (média = 33 kg) e comprimento de até 2 metros - e poderosos membros e garras, os únicos animais conhecidos de predar tamanduás-bandeira adultos são onças-pintadas (Panthera onca) e onças-pardas (Puma concolor). Com locomoção quadrúpede, o tamanduá-bandeira normalmente se movimenta com as patas posteriores abertas e tipicamente com as patas anteriores fechadas em punho; raramente essa espécie usa seus membros para nadar e escalar árvores, cupinzeiros e outras estruturas. A espécie pode efetivamente ficar na posição bípede, sendo esta a posição geralmente associada a momentos de alerta, defesa, escavação e alimentação.


   CAUDAS "CABELUDAS"

          A grande e volumosa [pelagem] cauda dos tamanduás-bandeira possui duas funções: termorregulação e camuflagem. Devido provavelmente à alimentação relativamente pouco nutritiva em termos calóricos (formigas e cupins), o tamanduá-bandeira possui uma menor temperatura corporal e menor taxa metabólica basal em relação a outros vertebrados de mesma massa corporal (uma adaptação fisiológica). Sua longa e densa pelagem também parece ter a função de prevenir ao máximo a perda de calor corporal, e a cauda em particular atua como uma coberta durante o período de sono (Fig.5). Em raras ocasiões o tamanduá-bandeira parece dormir sem a cobertura da cauda durante exposição solar direta (Ref.8-9).

Figura 5. Tamanduá-bandeira dormindo em área florestal do Pantanal, Brasil, com a cauda cobrindo o corpo. (Foto: Alessandra Bertassoni). Ref.10 

Figura 6. Ilustração de uma típica posição de sono de um tamanduá-bandeira. Ref.8

           O tamanduá-bandeira geralmente dorme em pequenas e rasas cavidades que ele cava com suas garras no solo arenoso, e tipicamente em faixas florestais e savanas e em meio a densos grupos de arbustos. A cauda "arbustiva" também acaba servindo como uma camuflagem nesses ambientes (Fig.5).


   PERNAS IMITANDO CABEÇAS?

           Tradicionalmente, os padrões de cor na pelagem do tamanduá-bandeira têm sido ligados a funções anti-predatórias através de aposematismo e camuflagem disruptiva, ou seja, visando dificultar sua visualização por predadores. Por outro lado, o padrão preto-e-branco nos poderosos membros anteriores dessa espécie se destaca bastante, e já foi sugerido que pode servir como uma sinalização alertando sobre o perigo associado às garras letais para potenciais predadores (ex.: onças e pumas). Porém, em uma publicação de 2023 no periódico Frontiers in Ecology and the Environment (Ref.12), pesquisadores sugeriram outra função para o padrão preto-e-branco após observarem a foto de dois tamanduás-bandeira no Pantanal Brasileiro (Fig.7): mimetismo.

         Figura 7. Par de tamanduás-bandeira fotografados no Pantanal.


          Como observado na foto acima, os "braceletes" e manchas pretas nos membros anteriores criam um padrão similar àquele observado em pandas, com um "nariz" preto, manchas pretas nos "olhos" e "orelhas". Isso tudo cria a ilusão de um animal menor e separado do corpo do tamanduá. Os tamanduás-bandeira possuem uma movimentação relativamente lenta, cabeça pequena, longos focinhos e ausência de dentes, tornando-os especialmente vulneráveis a grandes predadores. Procionídeos como guaxinins (gênero Procyon) e coatis (gênero Nasua) são menores do que o tamanduá-bandeira e ocorrem comumente no habitat desse último; notavelmente, algumas espécies de procionídeos possuem nariz preto, manchas pretas nos olhos e orelhas (Fig.8), e são regularmente presas de grandes felinos. 


Figura 8. Procionídeo da espécie Procyon cancrivorus, popularmente conhecido como mão-pelada. Ocorrem em florestas ombrófilas densas, semidecíduas, decíduas e mistas, Caatinga, Cerrado, mangues, restingas e Pantanal. 

           Ao projetar uma presa menor nos membros anteriores, o tamanduá-bandeira pode atrair um atacante para uma parte menos vulnerável do corpo, permitindo também uma resposta de defesa mais eficiente das suas poderosas garras. Aliás, a musculatura dos membros anteriores possui duas vezes a massa dos músculos dos membros posteriores.


REFERÊNCIAS

  1. Oliveira et al. (2020). Caracterização da fauna helmintológica de tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla) e tamanduá-mirim (Tamandua tetradactyla) atropelados nas rodovias BR-050 e BR-455 (Minas Gerais, Brasil). Arquivo Brasileiro de Medicina Veterinária e Zootecnia, 72(6). https://doi.org/10.1590/1678-4162-11833 
  2. Fromme et al. (2023). Spermatogenesis in the giant anteater (Myrmecophaga tridactyla). Theriogenology Wild, Volume 2, 100018. https://doi.org/10.1016/j.therwi.2023.100018
  3. Kluyber et al. (2021). Physical capture and chemical immobilization procedures for a mammal with singular anatomy: the giant anteater (Myrmecophaga tridactyla). European Journal of Wildlife Research 67, 67. https://doi.org/10.1007/s10344-021-01503-4
  4. Ruiz-García et al. (2021). Comparative mitogenome phylogeography of two anteater genera (Tamandua and Myrmecophaga; Myrmecophagidae, Xenarthra): Evidence of discrepant evolutionary traits. Zoological Research 18; 42(5): 525-547. https://doi.org/10.24272%2Fj.issn.2095-8137.2020.365 
  5. Santana et al. (2023). The diet of the giant anteater, Myrmecophaga tridactyla Linnaeus 1758, in the Cerrado of Mato Grosso do Sul, Brazil. [Research Square, preprint]. https://doi.org/10.21203/rs.3.rs-3408982/v1
  6. Haddad et al. (2014). Human Death Caused by a Giant Anteater (Myrmecophaga tridactyla) in Brazil. Wilderness & Environmental Medicine, Volume 25, Issue 4, Pages 446-449. https://doi.org/10.1016/j.wem.2014.04.008
  7. Gaudin et al. (2018). Myrmecophaga tridactyla (Pilosa: Myrmecophagidae), Mammalian Species, Volume 50, Issue 956, Pages 1–13. https://doi.org/10.1093/mspecies/sey001
  8. Medri & Mourão (2005). Breve nota sobre hábitos de dormir do tamanduá-bandeira - Myrmecophaga tridactyla Linnaeus (Xenarthra, Myrmecophagidae). Revista Brasileira de Zoologia, 22(4). https://doi.org/10.1590/S0101-81752005000400061
  9. Schmidt, T. L. (2012). Ethogram of the Giant Anteater (Myrmecophaga tridactyla) in Captivity: An Experience in the Temaikèn Foundation. Edentata, 13(1):38-48. https://doi.org/10.5537/020.013.0105
  10. Bertassoni et al. (2020). Tamanduás (Vermilingua, Pilosa) da Bacia do Alto Paraguai: uma revisão do conhecimento do planalto à planície pantaneira.  Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Naturais 17(1), 71-93. http://doi.org/10.46357/bcnaturais.v17i1.833
  11. https://www.wwf.org.br/?26222/The-Giant-Anteater-a-voracious-devourer-of-ants
  12. Pitman & Safina (2023). "Identity theft: anti-predator mimicry by the giant anteater?" Frontiers in Ecology and the Environment, Volume 21, Issue 4, Pages 181-181. https://doi.org/10.1002/fee.2630