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Por que temos um saco escrotal e testículos externos?

- Atualizado no dia 2 de julho de 2023 -  

           É realmente um traço anatômico curioso. O mais importante aspecto dos seres vivos é a reprodução, a qual garante perpetuação das espécies. Nesse sentido, as gônadas são órgãos cruciais em organismos multicelulares, sendo responsáveis pela produção dos gametas (células reprodutivas) e de hormônios sexuais. Nos mamíferos, e, consequentemente, nos humanos, as gônadas femininas são os ovários, muito bem protegidos dentro da cavidade abdominal; já as glândulas masculinas são os testículos. Os testículos, em vários mamíferos, estão localizados na parte externa do corpo, protegidos apenas por uma fina camada de pele do saco escrotal. Por que ficar tão exposto e correndo o risco de levar um mortal chute? O mistério aumenta quando levamos em conta que vários outros mamíferos não possuem os testículos descidos e nem mesmo saco escrotal. 


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   ANATOMIA ESCROTAL

          O sistema genital masculino é responsável pela produção dos gametas masculinos e suas funções principais são produzir hormônios sexuais, produzir células reprodutivas e fornecê-las ao sistema reprodutor feminino. Suas principais estruturas são: um escroto, dois testículos, dois epidídimos, dois cordões espermáticos, dois ductos deferentes, uma próstata, uma uretra, um pênis e um prepúcio.  

          O escroto é um saco de tecido músculo-cutâneo bastante elástico que recobre os testículos, sendo formado por duas camadas, uma externa e uma interna. A externa é a pele e contém uma quantidade variada de pelos. Já a camada interna é a túnica dartos, uma fina camada formada por musculatura lisa, fibras elásticas e colágenas, livre de gordura e responsável por auxiliar na termorregulação (faz isso ao se expandir ou contrair, tornando o escroto superficialmente mais rugoso ou mais liso). Aderido ao escroto passa o músculo cremáster, um prolongamento em forma de fita do músculo oblíquo abdominal interno, que aproxima ou afasta o escroto da cavidade abdominal.

 

          Os testículos são dois órgãos glandulares que secretam o sêmen e estão suspensos no escroto pelos cordões espermáticos, e geralmente o testículo esquerdo é mais caído do que o direito. Os testículos são separados por um septo mediano em duas cavidades, cada uma ocupada por um testículo, pelo seu epidídimo e pela parte distal do funículo espermático. Possuem formato redondo-ovalado, o eixo longo testicular é oblíquo e estão direcionados dorsocaudalmente. O testículo está unido ao epidídimo pelo ligamento próprio do testículo. No seu centro está o mediastino testicular, que é uma área de convergência dos túbulos seminíferos e a união destes túbulos formam a rede testicular ou rete testis, que é responsável por levar os espermatozoides para os ductos deferentes na direção do polo dorsal do testículo, seguindo até a cabeça do epidídimo.

          O tamanho dos testículos na nossa espécie (Homo sapiens) depende da idade e do estágio do desenvolvimento sexual. No nascimento, os testículos medem aproximadamente 1,5 cm em comprimento e 1 cm em espessura. Antes da idade de 12 anos, o volume testicular é em torno de 1-2 cm3. Clinicamente, um indivíduo do sexo masculino é considerado de ter alcançado a puberdade quando os testículos alcançam o volume de 4 cm3. Na média, os testículos de adultos possuem 3,8 cm de comprimento, 3 cm de espessura e 2,5 cm de profundidade e um volume em torno de 30 mL (30 cm3). A massa de um testículo varia de 10,5 a 14 gramas.

           Os testículos, nos humanos, normalmente completam a descida para o escroto a partir do seu ponto de origem atrás da parede abdominal (e próximos do rins) no sétimo mês pós-concepção (gravidez, implantação do embrião no útero) (1). Em um período inicial da vida fetal, os testículos estão contidos na cavidade abdominal, atrás do peritôneo. Antes do nascimento, eles descem para o canal inguinal com o cordão espermático, e, então, para o escroto. O escroto, por sua vez, é derivado dos inchaços lábio-escrotais, uma estrutura embriônica que aparece na quarta semana do desenvolvimento embrionário. A migração dos inchaços lábio-escrotais ocorre durante a 9° até a 11° semana de gestação e seguem em uma direção caudal e medial até se fundirem na 12° de gestação e finalmente formar o escroto (ou saco escrotal).

Desenvolvimento da genitália masculina externa. Até a 7° semana de desenvolvimento fetal, a anatomia genital de ambos os sexos é idêntica (estágio indiferenciado); na 7° semana, o tubérculo genital se alonga e dá origem ao falo, mas ainda sem diferenciação sexual. Na 8° semana, é iniciada a secreção de testosterona, com consequente alongamento do falo e fechamento das dobras do inchaço lábio-escrotal - um processo chamado de "masculinização", eventualmente dando origem ao pênis e ao saco escrotal. O sulco uretral é totalmente fechado na 12° semana. Ref.17-18

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> No feto do sexo feminino, os inchaços lábio-escrotais dão origem aos lábios maiores (estruturas homólogas ao escroto).
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           Falha em qualquer uma das fases de descida dos testículos resulta em uma condição patológica chamada de criptorquidia (testículo não-descido ou ausência de testículos no escroto). A criptorquidia é um defeito congênito de nascimento observado com significativa frequência nos indivíduos humanos do sexo masculino (2-4% no nascimento) e em outros animais (até 10% nos cães, 2% nos gatos, 2-8% nos cavalos) (Ref.5).

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   SACO PARA FORA

           Provavelmente seria um absurdo sugerir que os ovários, durante o desenvolvimento embrionário, descessem e emergissem fora da cavidade abdominal do corpo feminino protegidos apenas por uma camada fina de tecido (característica do saco escrotal). Evolução biológica é baseada em competição reprodutiva entre indivíduos para representação genética em gerações futuras. A integridade das gônadas é, nesse sentido, de extrema importância. Devido à vulnerabilidade a danos, insultos e variações de temperatura ambiente, ovários localizados fora da cavidade abdominal estariam sobre séria desvantagem reprodutiva. O mesmo raciocínio deveria se aplicar aos testículos, porém, na prática, observamos que a maior parte das espécies/clados de mamíferos exibem as gônadas masculinas localizadas no escroto e fora do corpo.

           A Hipótese do Resfriamento sugere que o escroto fornece um ambiente 2-4°C mais frio do que a temperatura corporal normal do corpo; epitélio germinal e espermatozoides são sensíveis ao aquecimento, e, portanto, o resfriamento extra é ótimo para a espermatogênese e armazenamento de esperma. De fato, em mamíferos placentários - grupo consistindo dos clados Afrotheria, Xenarthra e Boreoeutheria - função testicular ótima requer uma temperatura que é menor do que a temperatura corporal e uma forma para se conseguir isso é justamente "expor" os testículos ao ambiente externo, e isso é observado em primatas, a maior parte dos roedores, lagomorfos, a maior parte dos carnívoros, marsupiais e a maioria dos artiodátilos terrestres (mamíferos ungulados com um número par de dedos nas patas, como girafas, antílopes e camelos).

          Porém, contudo, todavia, existe um bom número de mamíferos que rejeitaram essa estratégia anatômica ao longo do processo evolutivo. Testículos são localizados dentro da cavidade abdominal (inferior ou superior) em golfinhos, focas verdadeiras, pangolins, elefantes, rinocerontes, e muitos outros mamíferos. Nesse ponto, os testículos em diferentes mamíferos podem ser classificados como:

i) Descidos e escrotais, representando a disposição prevalente entre os mamíferos.

ii) Descidos mas sem escroto, ou descidos de forma incompleta. Aqui podemos citar o porco-formigueiro (Orycteropus afer afer), tatu-galinha (Dasypus novemcinctus), e várias linhagens na divisão Boreoeutheria (ex.: cetáceos, raposas-voadoras, alguns pinípedes, infraordem Eulipotyphla, e alguns roedores); nas focas (um pinípede), os testículos estão localizados em uma região subcutânea.

iii) Não descidos, permanecendo profundamente embebidos na cavidade abdominal. Aqui temos o ornitorrinco (Ornithorhynchus anatinus), as equidnas (gêneros Tachyglossus e Zaglossus) e a maioria das espécies no clado Afrotheria, incluindo elefantes, toupeiras e peixes-bois. Nos ornitorrincos, um monotremo, os testículos permanecem na mesma posição inicial do desenvolvimento embrionário inicial, similar aos ovários.

 
 

           Em outras palavras, várias linhagens de mamíferos não expressam saco escrotal e os testículos ficam protegidos dentro do corpo. Esse cenário levanta uma primeira e óbvia questão: os primeiros mamíferos possuíam testículo descido e saco escrotal (traço ancestral), ou esse traço evoluiu posteriormente? Como estruturas testiculares e escrotais não são fossilizadas, cientistas têm explorado essa questão via estudos genômicos comparativos. O mecanismo de descida dos testículos é poligênico (ex.: atuação de genes como o RXFP2 e o INSL3, responsáveis por fertilização interna e viviparidade nos mamíferos, e do caminho de sinalização DHH, um importante regulador do desenvolvimento testicular), e evidências acumuladas até o momento fortemente apontam que os mamíferos primordialmente expressavam um saco escrotal e testículos descidos, com múltiplas linhagens posteriormente evoluindo de forma independente e convergente "criptorquidia não-patogênica" (Ref.9-10). 

          Esse caminho evolucionário, à princípio, tende a argumentar favoravelmente pela Hipótese do Resfriamento, a qual sugere que a descida dos testículos e fisiologia/funcionalidades do saco escrotal emergiram como uma resposta à evolução da endotermia e mais altas temperaturas corporais que acompanharam a ascensão do clado Mammalia. De fato, criptorquidia em humanos leva à infertilidade e aumento de risco no desenvolvimento de tumores malignos no testículo. Existe uma grande faixa de variação na temperatura corporal normal entre mamíferos (~10°C), e podemos citar que os monotremos (equidna e ornitorrinco) (1) possuem temperaturas corporais relativamente baixas - um dos prováveis fatores permitindo a manutenção saudável dos testículos dentro da cavidade abdominal (2). Porém, para citar um exemplo de contradição, elefantes possuem testículos internos e possuem uma temperatura corporal central maior do que gorilas e marsupiais que possuem testículos externos (3).

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(1) Leitura recomendadaCientistas revelam os segredos do pênis de quatro cabeças da equidna

(2) CURIOSIDADE: Os marsupiais parecem ter evoluído o escroto de forma totalmente independente em relação aos mamíferos placentários. Em parte, isso é suportado pela observação de que os testículos desses animais ficam na frente/acima do pênis.




(3) Em espécies com os testículos descidos mas sem escroto (na parte inferior do abdômen), como nos golfinhos, focas verdadeiras e pangolins, o resfriamento testicular é alcançado via sistemas vasculares de troca de calor com o meio externo (ex.: golfinhos), ou via resfriamento direto com sangue oriundo dos membros traseiros (ex.: focas).
 

> RECORDE: Baleias do gênero Eubalena - popularmente conhecidas como baleias-francas - possuem testículos com uma massa combinada de ~972 kg! Sim, quase 1 tonelada de massa testicular. Uma maior massa testicular está associada com uma maior produção de espermatozoides, aumentando a chance de fertilização efetiva. Ref.19-20

Ilustração de uma Baleia-franca-do-Atlântico-norte (Eubalaena glacialis). Essa espécie está em crítico perigo de extinção, sendo estimado que existem menos do que 250 indivíduos adultos na natureza. Baleias-francas podem alcançar um comprimento de >17 metros, massa corporal de ~74 toneladas e pênis de ~2,3 metros. Ref.19-21

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           Além disso, as aves possuem testículos internos, evoluíram de forma convergente endotermia e temperatura corporal de até 42°C; por que nenhuma ave moderna e descrita evoluiu testículos externos?


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   HIPÓTESES EVOLUCIONÁRIAS

          Desde a década de 1920, várias hipóteses têm sido propostas para explicar o posicionamento dos testículos e a presença ou ausência de saco escrotal nos mamíferos, mas até o momento nenhuma delas satisfatoriamente explica de forma compreensiva o status variante de criptorquidia nos mamíferos, apesar da endotermia representar um provável e importante fator contribuinte. Entre as principais hipóteses - as quais podem ser complementares ou não -, podemos citar:

- Hipótese do Resfriamento: Como já citado, nesta proposta a evolução do escroto é uma adaptação evolutiva que fornece um ambiente mais frio e apropriado para a espermatogênese em resposta à endotermia. A princípio, uma maior temperatura corporal dificulta a produção de espermatozoides e aumenta as taxas de mutações espontânea. No caso das mutações patogênicas, isso é de particular importância considerando que a taxa de mutações espontâneas é maior nas células germinativas masculinas em relação às fêmeas, particularmente afetando o cromossomo Y. Por exemplo, a temperatura corporal central de um camundongo é de 36,6°C, enquanto os testículos ficam a 34°C; qualquer espermatozoide produzido a 37°C possui baixa viabilidade, com altos níveis de DNA com falhas e formação crossover comprometida, enquanto espermatozoides produzidos a 38°C são eliminados por apoptose por causa da carga excessiva de mutações no DNA.

- Hipótese do Treinamento: Aqui, a descida testicular seria um mecanismo para melhorar a qualidade dos espermatozoides através da imposição de relativa hipoxia (falta de oxigênio) dentro do saco escrotal (consequência de um suprimento sanguíneo, de fato, limitado nessa região), causando uma melhora estresse-induzida no metabolismo oxidativo que pode resultar em vantagens gaméticas aeróbicas adaptativas (ex.: ao treinar e filtrar os gametas masculinos mais aptos).

- Hipótese do Armazenamento Frio: Os requerimentos de resfriamento específico dos epidídimos representariam o fator crucial para a descida testicular em suporte ao armazenamento de espermatozoides e como um local de otimização gamética em preparação para a competição entre espermatozoides.

- Hipótese do Exibicionismo: O saco escrotal com os testículos seria uma oportunidade para exibição sexual objetivando atrair fêmeas, justificando ornamentos e cores nessa região observados em algumas espécies. Ou seja, a forma, tamanho e outras características do escroto representariam uma sinalização sobre a saúde e/ou capacidade reprodutiva de um macho. Porém, na prática, essa hipótese parece ter alguma validade limitada apenas aos primatas.



- Hipótese do Galope: Animais cujas mobilidades são caracterizadas por movimentos rápidos ou de pulo, como cavalos, primatas e humanos, teriam os testículos exteriorizados para evitar efeitos deletérios nesses órgãos devido a aumentos hidrostáticos lesivos da pressão intra-abdominal decorrentes desses movimentos. Elefantes, cujos testículos são internos, não pulam e tipicamente se movimentam de forma mais vagarosa. Nessa proposta, o ajuste dos testículos às temperaturas externas inferiores representaria uma adaptação secundária.

- Hipótese da Ativação: Os testículos podem ter descido para permitir um mecanismo de ativação dos espermatozoides consistente com diferenças de temperatura entre os tratos reprodutivos masculino e feminino. Com uma diferença de 2-3°C, quando os espermatozoides saem de um ambiente mais frio (saco escrotal) e encontram um ambiente mais quente no canal vaginal previamente à fertilização do óvulo, esses gametas masculinos seriam ativados e ficariam mais capacitados para enfrentar o sistema de filtro do trato reprodutivo feminino (4). Essa hipótese também é uma tentativa de explicar o reflexo cremastérico como uma reação do coito (ou da masturbação) puxando os testículos para mais próximo do abdômen (escroto fica contraído e mais enrugado) e garantindo maior temperatura durante a excitação sexual no sentido de melhorar a motilidade dos espermatozoides em preparação para a ejaculação. O principal problema com essa hipótese é que vários mamíferos não possuem testículos descidos.

(4) Leitura recomendadaTrês mitos esclarecidos: Ciclo menstrual de 28 dias, corrida dos espermatozoides e exclusividade masculina da próstata

- Hipótese dos Pulsos Endotérmicos: A evolução do escroto e dos testículos descidos teria sido fomentada e orientada por aumentos na temperatura corporal (pulsos endotérmicos) que ocorreram no clado Boreoeutheria, um clado de mamíferos diversos que incluem roedores, primatas, coelhos, morcegos e ungulados. O modelo propõe que vantagens adaptativas favoreceram testículos escrotais ao manter uma temperatura ótima para a espermatogênese e o armazenamento de espermatozoides seguindo a extinção em massa dos dinossauros não-aviários no final do Cretáceo e os imediatos pulsos de endotermia que ocorreram associados com a dramática radiação das ordens de mamíferos placentários modernos. Esses pulsos teriam ocorrido a partir de menores níveis de temperatura que prevaleceram nos mamíferos ancestrais por pelo menos 163 milhões de anos (ao longo do Cenozoico). Porém, como já explorado, evidências genéticas acumuladas apontam que os primeiros mamíferos já possuíam escroto. Além disso, marsupiais parecem ter evoluído o escroto de forma totalmente distinta dos mamíferos placentários em geral.


   QUAL HIPÓTESE É A MAIS PLAUSÍVEL?

           Um estudo publicado em 2021 no periódico BMC Genomics (Ref.14), através de análise genômica comparativa e análise evolucionária, encontrou divergência em um substancial número de genes relacionados à espermatogênese e à função fértil dos espermatozoides correspondendo com a evolução da posição testicular em mamíferos. Em especial, foram identificadas mutações e enriquecimento em genes associados a potenciais estresses induzidos por condições termodinamicamente desfavoráveis. Esse cenário traz forte suporte para a Hipótese do Resfriamento.

          A Hipótese do Resfriamento - a qual efetivamente explica a função do escroto ligada à termorregulação durante a espermatogênese, e corrobora a emergência desse órgão como inerente à evolução inicial dos mamíferos - possui, portanto, forte suporte baseado em observações fisiológicas e ecológicas, e também suporte sob uma perspectiva molecular evolucionária.

          Além disso, enquanto o escroto garante uma área de "treinamento"/hostil para os espermatozoides (pobre em oxigênio e em suprimento sanguíneo), o estudo encontrou que mamíferos sem escroto (testículos internos) evoluíram uma estratégia alternativa para resolver essa deficiência, ao identificar um número de genes associados à posição testicular com funções benéficas para a fertilização (ex.: motilidade dos espermatozoides). Esse último cenário traz suporte para a Hipótese do Treinamento. Um estudo mais recente, publicado no periódico Frontiers of Ecology and Evolution (Ref.15), também encontrou forte pressão seletiva em mamíferos sem escroto sobre genes associados com motilidade e competitividade dos espermatozoides - especialmente em mamíferos com testículos não descidos, como monotremos e elefantes.

          Em humanos a criptorquidia é um fator de risco bem estabelecido para tumores em células germinativas testiculares - em indivíduos jovens do sexo masculino, câncer testicular é a malignância mais comum, com testículos não descidos ou parcialmente descidos associado a um risco 2-4 vezes maior para esse tipo de tumor maligno. Em parte, isso é devido à maior sensibilidade e vulnerabilidade dessas células germinativas ao estresse térmico. Nesse sentido, o estudo na BCM Genomics encontrou também várias linhas de evidência apontando mecanismos responsáveis por maior resistência a cânceres e maior capacidade de reparos no DNA em mamíferos sem escroto. Por exemplo, os pesquisadores identificaram seleção positiva no gene BMP4 (Proteína Morfogenética do Osso 4) nos mamíferos sem escroto, o qual codifica uma proteína envolvida em múltiplos cânceres em humanos, especialmente câncer na genitália masculina externa, e também no processo de criptorquidia.

   (!) ELEFANTE E CÂNCER

          Um estudo publicado no periódico Trends in Ecology & Evolution (Ref.16) argumentou que o testículo internalizado nos elefantes é responsável pela anômala resistência ao câncer nesses animais. Apesar do enorme porte e grande número de divisões de células somáticas - fatores que tipicamente aumentam significativamente o risco de câncer - elefantes desafiam as expectativas. Esse fenômeno é conhecido como Paradoxo de Peto. Em especial, os elefantes carregam 20 cópias do gene TP53, enquanto todos os outros animais, incluindo humanos, possuem apenas uma única cópia. Esse gene produz uma proteína (pS3) que identifica e neutraliza danos no DNA durante divisões celulares e, portanto, dificulta a disseminação de mutações e o desenvolvimento de tumores malignos.

          Mas como processos evolucionários atuaram no sentido de fixar tantas cópias desse gene 'anticâncer' nos elefantes?

          Seleção positiva sobre células somáticas - constituintes de órgãos e tecidos no corpo - é um processo relativamente fraco e lento devido à intricada mistura de células saudáveis e deletérias. Além disso, evolução tende a progredir de forma gradual quando limitada a desenvolvimentos ocorrendo em idades mais avançadas, após picos reprodutivos em idades mais jovens. Em contraste, pressão seletiva sobre células reprodutivas, como espermatozoides e óvulos, tende a ser mais forte e rápida, já que diretamente impacta a sobrevivência de cada célula individual e ocorre antes do potencial organismo ter oportunidade de reprodução.


Localização estimada dos testículos em um jovem elefante macho apontada pela seta, nessa imagem de infravermelho (cores artificiais variantes em termos da temperatura). O ar do ambiente da foto está a uma temperatura de 28,6°C, enquanto a pele acima dos testículos está a uma temperatura de 37,6°C - espelhando a alta temperatura interna na região onde ocorre a produção de espermatozoides. Temperatura de até 40°C na circulação sanguínea de um Elefante-Africano de 4 toneladas durante atividade física já foi registrada, e pode chegar temporariamente até 44°C durante atividades físicas mais intensas. Ref.16

          Nesse contexto, como os testículos dos elefantes são internos e submetidos a elevadas temperaturas corporais - devido ao grande porte, pele grossa, razão superfície/volume desfavorável, habitat de clima quente e mecanismos de troca de calor centrados no fluxo sanguíneo nas orelhas -, o novo estudo propôs que a proliferação de genes TP53 evoluiu primariamente não no sentido de combater cânceres, mas para promover maior estabilização do DNA durante a produção de espermatozoides na estrutura testicular - garantindo quantidade suficiente de células reprodutivas masculinas saudáveis. Como efeito secundário, elefantes acabaram ganhando também maior resistência ao desenvolvimento de cânceres ao longo da vida. 

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   CONCLUSÃO

          Ainda permanece não totalmente esclarecido a evolução do saco escrotal e da descida dos testículos nos mamíferos, mas o acúmulo de evidências aponta fortemente que esse curioso fenótipo evoluiu junto com a emergência do clado Mammalia e como resposta à evolução de endotermia nesses animais - ou seja, uma adaptação no sentido de tornar o ambiente testicular mais frio e ótimo para a espermatogênese, além de garantir um ambiente "hostil" (privado parcialmente de oxigênio) para melhor preparar os espermatozoides (motilidade, competitividade, etc). Criptorquidia (testículos não descidos) em mamíferos com escroto (ex.: humanos) leva a vários prejuízos testiculares e reprodutivos, incluindo maior risco de câncer; mamíferos sem escroto e com testículos internos (ex.: elefantes) evoluíram mecanismos compensatórios para driblar esses problemas e garantir uma criptorquidia saudável.


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS 

  1. Liguori et al. (2011). Anatomy of the Scrotum. Strotal Pahology [Book], pp. 27-34. http://dx.doi.org/10.1007/174_2011_170
  2. Garcia & Sajjad (2019). Anatomy, Abdomen and Pelvis, Scrotum. StatPearls Publishing, Treasure Island (FL); 2021. PMID: 31751083
  3. http://www.oncoguia.org.br/conteudo/os-testiculos/718/157/
  4. Gallup et al. (2009). On the Origin of Descended Scrotal Testicles: The Activation Hypothesis. Evolutionary Psychology. https://doi.org/10.1177/147470490900700402
  5. Hiller et al. (2018). Loss of RXFP2 and INSL3 genes in Afrotheria shows that testicular descent is the ancestral condition in placental mammals. Plos Biology, 16(6): e2005293. https://doi.org/10.1371/journal.pbio.2005293
  6. Shoshani, J. (2000). Anatomy and physiology. In Shoshani, J. (ed) Elephants. Checkmark Books (New York), pp. 66-81.
  7. Ivell et al. (2020). Physiology and evolution of the INSL3/RXFP2 hormone/receptor system in higher vertebrates. General and Comparative Endocrinology, Volume 299, 1 December 2020, 113583. 
  8. Chai et al. (2021). Enhanced Negative Regulation of the DHH Signaling Pathway as a Potential Mechanism of Ascrotal Testes in Laurasiatherians. Evolutionary Biology, 48, pages 335–345. https://doi.org/10.1007/s11692-021-09542-0
  9. Sharma et al. (2018). Loss of RXFP2 and INSL3 genes in Afrotheria shows that testicular descent is the ancestral condition in placental mammals. PLoS Biol 16(6): e2005293. https://doi.org/10.1371/journal.pbio.2005293
  10. Chai et al. (2021). Rapid evolution and molecular convergence in cryptorchidism-related genes associated with inherently undescended testes in mammals. BMC Ecology and Evolution 21, 22. https://doi.org/10.1186/s12862-021-01753-5
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  12. Miller & Torday (2019). Reappraising the exteriorization of the mammalian testes through evolutionary physiology. Communicative & Integrative Biology, Volume 12, Issue 1. https://doi.org/10.1080/19420889.2019.1586047
  13. Lovegrove, B. G. (2014). Cool sperm: why some placental mammals have a scrotum. Journal of Evolutionary Biology, Volume 27, Issue 5, Pages 801-814. https://doi.org/10.1111/jeb.12373 
  14. Chai et al. (2021). Comparative genomics reveals molecular mechanisms underlying health and reproduction in cryptorchid mammals. BMC Genomics 22, 763. https://doi.org/10.1186/s12864-021-08084-1
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  20. Fraster et al. (2007). Patterns of male reproductive success in a highly promiscuous whale species: the endangered North Atlantic right whale. Molecular Ecology, 16(24), 5277–5293. https://doi.org/10.1111/j.1365-294X.2007.03570.x
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