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Paciente com uma aranha dentro do ouvido

Figura 1. Aranha e seu exoesqueleto trocado dentro do ouvido da paciente.

 
           Uma mulher de 64 anos de idade com hipertensão apresentou-se à clínica de otorrinolaringologia com um histórico de 4 dias de sons anormais no ouvido esquerdo. No dia da manifestação dos sintomas, ela acordou com a sensação de uma criatura se movendo dentro do ouvido. Subsequentes e incessantes barulhos de batida, cliques e sons murmurantes causaram um quadro de insônia na paciente. No exame físico, uma pequena aranha foi observada se movendo dentro do canal auditivo externo esquerdo (vídeo abaixo). Um exoesqueleto descamado da aranha também estava presente.

            

           A membrana timpânica estava normal. A aranha e seu exoesqueleto foram removidos com o uso de uma cânula de sucção colocada através de um otoscópio. Após a remoção, os sintomas da paciente imediatamente foram resolvidos.

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          O caso foi reportado e descrito no periódico The New England Journal of Medicine (Ref.1). 


   INSETOS E ARACNÍDEOS NO OUVIDO

          Corpos estranhos no ouvido representam uma das condições mais comuns encontradas em um departamento de otorrinolaringologia. Vários tipos de corpos estranhos, seja inanimados como um pedaço de algodão (1) seja animados como pequenos animais, podem ser encontrados no canal auditivo. Insetos e aracnídeos que acabam entrando acidentalmente no ouvido ficam limitados tipicamente à parte externa (Fig.2) - com ou sem contato com a membrana timpânica - e podem causar grande desconforto ao paciente como resultado de otalgia (dor no ouvido), coceira, zumbido (2) e até perda auditiva. Rápida inativação (morte) do inseto ou outro animal pode facilitar o alívio dos sintomas, assim como a remoção do invasor. Na literatura acadêmica, existem vários reportes de formigas, pequenas baratas, moscas, pulgas, carrapatos, entre outros invertebrados que resolvem visitar acidentalmente ou não o ouvido humano.  

Figura 2. Anatomia geral da estrutura auditiva humana.

Leitura complementar


           É reportado que 14-18% dos corpos estranhos encontrados no canal auditivo externo são insetos, ou seja, não parece ser um evento tão incomum (Ref.2). Talvez o caso mais dramático nesse sentido ocorreu em julho de 1957, nos EUA, no encontro dos Escoteiros da América do National Jamboree, em Valley Forge, Pensilvânia: durante um acampamento, besouros da espécie Maladera castanea entraram no ouvido de 186 pessoas enquanto dormiam (Ref.3). Os sinais e sintomas desse tipo de invasão no ouvido irão depender da espécie, tamanho e posição do invasor, e o desconforto pode variar desde uma simples irritação e otalgia até vertigem e perfuração do tímpano. Existem casos de miíase (parasitismo com larvas de mosca) (3) afetando o canal auditivo, com frequentes perfurações timpânicas; muitas vezes moscas são atraídas por quadros de otorreia (Ref.4). 

Figura 3. Paciente de 25 anos de idade (sexo masculino) com dor aguda no ouvido esquerdo durante o sono. A dor era severa e intermitente, acompanhada por zumbido. Endoscopia revelou uma pequena barata no canal auditivo externo em contato com a membrana timpânica (a). Após lavagem com lidocaína 1% e uso de gaze com creme anestésico EMLA (2,5 g), a barata imobilizada foi extraída com um fórceps e aspiração (b-c). Ref.5

Figura 4. Paciente saudável de 40 anos de idade desenvolveu otalgia após uma mosca voar para dentro do seu ouvido esquerdo enquanto estava assistindo televisão na sua sala de estar. O paciente reportou ter usado óleo mineral dentro do seu canal auditivo para matar o inseto. Após 3 minutos, quando o inseto parou de se mover dentro do ouvido, ele inclinou a cabeça para drenar o óleo mas o inseto continuou preso lá dentro. Cerca de 10 minutos depois, o paciente começou a sentir novos movimentos no ouvido, e, então, resolveu buscar ajuda médica. Otoscopia revelou uma mosca fêmea morta no canal auditivo externo esquerdo, com várias larvas de mosca saindo do corpo do inseto e se movimentando ao redor (A), inclusive no tímpano (B). A mosca pertencia à família SarcophagidaeRef.4


Figura 5. Paciente de 21 anos de idade (sexo masculino) reportando súbita sensação de ouvido entupido e de bater de asas dentro do ouvido esquerdo enquanto dirigia moto. Porém, o paciente não reportou otalgia, zumbido ou dificuldade auditiva. Otoscopia revelou uma mariposa viva de 1,5 cm da espécie Jankowskia taiwanensis no canal auditivo externo (foto). Ref.5

Figura 6. Paciente de 60 anos de idade (sexo feminino) com dor severa e desconforto no ouvido direito após uma formiga entrar no seu ouvido enquanto trabalhava no quintal da sua casa. Ela reportava intensa dor e chorava quando a formiga mordia. (a) Inseto na saída do canal auditivo externo. (b) Formiga removida, da espécie Lasius nigerRef.2

Figura 7. Paciente de 9 anos de idade (sexo feminino) com desconforto no ouvido direito, após sentir algo entrar no seu ouvido enquanto voltava da escola. Reportou severa e intermitente dor, associada com coceira, náusea e tontura. (a) Inseto vivo no canal auditivo externo. (b) Borboleta-pequena-das-couves (Pieris rapae) identificada após ser removida. Ref.2

Figura 8. Paciente de 24 anos de idade (sexo masculino) com zumbido e otalgia severa no ouvido esquerdo, suficiente para acordá-lo no início da manhã. O paciente suspeitava que um inseto havia entrado no seu ouvido, e exame otoendoscopia confirmou a suspeita. Uma tesourinha (ordem Dermaptera) estava se movimentando no canal auditivo externo do paciente. Ref.6

           Embora insetos sejam comumente reportados no canal auditivo externo, existem alguns raros casos de insetos que invadem o ouvido médio. Por exemplo, em um relato de caso reportado em 2000 (Ref.7), uma paciente de 9 anos de idade (sexo feminino) manifestou otalgia severa no ouvido esquerdo durante o sono, suficiente para acordá-la. A dor era intermitente e acompanhada por um barulho de crack no ouvido. Com o auxílio de um microscópio, os médicos conseguiram identificar movimento abaixo da porção anterior da membrana timpânica. Após aplicação de anestésico local (injeção de lidocaína 2%), eles usaram um fórceps e conseguiram remover um cupim adulto (Fig.9). Nenhuma perda auditiva ou infecção foi reportada. É provável que o cupim perfurou a fina metade posterior da membrana timpânica, alcançando o ouvido médio; essa perfuração teria causado a forte dor inicial que acordou a paciente.

Figura 9. Cupim sem asas (1,5 x 6 mm) removido da parte anterior do tímpano de uma paciente.

           Em casos mais raros, a introdução de insetos pode ser feita de forma intencional pela pessoa, envolvendo curiosidade infantil ou mesmo devido a transtornos mentais. Por exemplo, em 2022 foi reportado o caso de uma paciente de 17 anos de idade (sexo feminino) com leve deficiência mental e transtorno compulsivo obsessivo que foi apresentada ao hospital múltiplas vezes ao longo de um relativo curto espaço de tempo por causa do insistente hábito de colocar insetos no ouvido (Ref.8). A paciente reportava uma sensação agradável resultante da movimentação dos insetos no canal auditivo, apesar de eventualmente um quadro de otalgia se desenvolver e requerer atendimento médico urgente. Ela também exibia repetitivos comportamento de manipulação do ouvido com secagem pós-banho ou uso de fones de ouvido. 

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           No caso de invasores aracnídeos, temos em especial uma condição chamada de otoacaríase, caracterizada pela fixação de carrapatos e outros ácaros no interior do canal auditivo (!). É uma condição tipicamente veterinária (ex.: afetando cães e gatos), mas existem raros casos envolvendo humanos (Ref.9). Sintomas geralmente englobam coceira e zumbido, mas otalgia é comum no caso de carrapatos (Fig.10).

Figura 10. Paciente de 12 anos de idade (sexo feminino) com otalgia no ouvido direito. Exame otológico revelou um carrapato anexado, inchado e bloqueando o canal auditivo externo (A). Esse carrapato estava com suas partes bucais embebidas na membrana timpânica e foi removido sob anestesia local e com o auxílio de um microscópio de luz. Após a remoção, outro carrapato foi detectado no canal auditivo externo (B). Esse segundo carrapato não estava aderido à pele e estava móvel. Após a segunda remoção, os dois carrapatos foram identificados como pertencentes ao gênero Hyalomma. É provável que os carrapatos foram transmitidos via contato com um cão que vivia na mesma casa da paciente. Ref.9

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(!) Importante lembrar que carrapatos são ácaros, aliás, estão entre os maiores ácaros conhecidos. Para mais informações, fica a sugestão de leitura: Qual é o maior ácaro conhecido?

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             Em casos de aracnídeos e insetos de relativas grandes dimensões no canal auditivo externo, aplicação de lidocaína ou etanol em ambiente hospitalar é recomendada para matar o animal antes da remoção em ordem de prevenir movimentos excessivos e subsequentes danos em estruturas do ouvido. No entanto, líquidos não devem ser introduzidos no ouvido se a membrana timpânica tiver sido perfurada. No geral, indivíduos afetados pela invasão de pequenos animais no ouvido devem procurar atendimento médico urgente sempre que possível. Tentativas de remoção por conta própria podem ser perigosas e potencialmente causar infecções, sangramentos, intensa dor e danos timpânicos.


Leitura recomendada:


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. Weng & Wang (2023). A Spider and Its Exoskeleton in the Ear Canal. New England Journal of Medicine, 389:e35. https://doi.org/10.1056/NEJMicm2307942 
  2. Alfaifi et al. (2019). Light-assisted removal of ear canal live insect–A noninvasive approach for first level responders. Journal of Family Medicine, 8(9):3042–3044. https://doi.org/10.4103%2Fjfmpc.jfmpc_443_19 
  3. Giltmier et al. (2022). Management of Live Insects in the External Auditory Canal: A Wilderness Perspective. Wilderness & Environmental Medicine, Volume 33, Issue 3, Pages 318-323. https://doi.org/10.1016/j.wem.2022.03.013 
  4. Lin & Hu (2019). Aural Myiasis Caused by a Flesh Fly in the Ear Canal: Do Not Drain the Oil Too Soon. Ear, Nose & Throat Journal. 2019;98(2):64-65. https://doi.org/10.1177/0145561318824888
  5. Chiu & She (2021). Moth in the Left Ear. Ear, Nose & Throat Journal, 100(6):NP310-NP310. https://doi.org/10.1177/0145561319872170
  6. Jeong et al. (2021). Earwig Crawling in the Ear: Myth or Truth. Cureus, 13(5): e14827. https://doi.org/10.7759/cureus.14827
  7. Supiyaphun & Sukumanpaiboon (2000). Acute otalgia: a case report of mature termite in the middle ear. Auris Nasus Larynx 27(1), 77–78. https://doi.org/10.1016/S0385-8146(99)00035-8
  8. Venkatesha et al. (2022). "Itch" Gratification-Insect Polyembolokoilamania of the Ear. Indian Journal of Otology 28(2):p 171-173. https://doi.org/10.4103/indianjotol.indianjotol_103_21
  9. Vishak et al. (2023). Ear Mites as an Overlooked Source of Ear Itching and Tinnitus - A Case Series. Indian Journal of Otolaryngology and Head & Neck Surgery. https://doi.org/10.1007/s12070-023-04268-1