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Qual é a relação entre paracetamol, danos hepáticos e autismo?

Figura 1. Estrutura e fórmula química do paracetamol.
 
- Atualizado no dia 22 de setembro de 2025 -

          O paracetamol, acetaminofeno ou N-acetil-p-aminofenol, mostrado na Fig.1, foi introduzido na terapêutica depois de uma descoberta acidental da acetanilida, ao mesmo tempo em que os salicilatos eram descobertos. Produzido e comercializado inicialmente no Reino Unido, esse fármaco é utilizado como medicamento desde 1878 até hoje em muitos países como analgésico (1) e antipirético (2), em apresentações farmacêuticas como único princípio ativo ou em associação, no alívio de sintomas relacionados a processos inflamatórios dolorosos, dores crônicas e odontológicas, sendo ainda muito difundido em pediatria. É extensamente usado e livremente comercializado na maioria dos países, ganhando popularidade como analgésico a partir da década de 1970.

          Nesse último ponto, o uso abusivo desse fármaco se tornou a principal causa de falência hepática em países como EUA e Reino Unido. Aliás, o paracetamol se tornou a segunda causa mais comum de transplante de fígado ao redor do mundo (Ref.2).


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           Muitas pessoas acreditam erroneamente que esse fármaco é totalmente seguro, uma perigosa noção que favorece abusos. Aliás, o mecanismo de funcionamento do paracetamol não é nem mesmo totalmente entendido, mas parece envolver a inibição da enzima ciclo-oxigenase no cérebro. Metabolizado no fígado, dose excessiva a partir de 7.5 g/dia a 10 g/dia ou 140 mg/kg é tóxica para o órgão (Ref.2). Historicamente, é recomendado que adultos não excedam 650-1000 mg a cada 4-6 horas e 4 g/dia, e que crianças limitem a 15 mg/kg a cada 6 horas, até um máximo de 60 mg/kg. O risco de hepatoxicidade é aumentado em pacientes consumindo mais de 4 g ao longo de 24 horas sob fatores de risco de suscetibilidade como má nutrição, uso crônico de bebidas alcoólicas, jejum e uso de medicamentos P450-indutores. A Administração de Drogas e Alimentos (FDA) nos EUA inclusive sugere um consumo máximo de 3 g, não excedendo 650 mg a cada 6 horas, uma recomendação corroborada por dados recentes coletados na Nigéria (Ref.3).

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> A meia-vida de eliminação do paracetamol circulante é de 2 horas. Esse tempo pode aumentar para 17 horas em indivíduos com disfunção hepática prévia, aumentando o risco de hepatoxicidade após o consumo de paracetamol.

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           Durante o metabolismo oxidativo, em que o paracetamol é metabolizado através de um sistema enzimático oxidativo de função mista, contendo citocromo P-450 (CP450) formando os intermediários do tipo semiquinona e quinona imina, denominados N-acetil-p-benzosemiquinona imina (NAPSQI) e N-acetil-p-benzoquinona imina (NAPQI), respectivamente (Ref.4). O composto NAPQI causa hetatoxicidade via estresse oxidativo e lesão hepática (Ref.5). Após a ingestão de doses alta de paracetamol - com a produção de NAPQI superando o níveis hepáticos de GSH (glutationa reduzida, a qual neutraliza as moléculas de NAPQI) -, o principal evento é a hepatotoxidade centrolobular dependente do sistema CP450, apontada pelo aumento dos níveis de alanina aminotransferase plasmática.

          E um estudo mais recente publicado no periódico Arthritis Care and Research (Ref.9) encontrou que doses repetidas de paracetamol em pessoas com 65 anos ou mais de idade pode aumentar o risco de complicações gastrointestinais, cardiovasculares e renais. Os autores do estudo analisaram os dados médicos de >180 mil pessoas com prescrição de paracetamol (≥2 prescrições dentro de seis meses). Comparado com um grupo de controle (>402 mil indivíduos), uso prolongado de paracetamol estava associado com um aumento de risco para úlceras pépticas, falha cardíaca, hipertensão doença crônica renal. 

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(1) O efeito analgésico do paracetamol para várias condições crônicas e agudas de dor (ex.: dor lombar) parece não ser significativamente superior ao placebo ou sua eficácia além do placebo não é suportada por suficiente evidência científica (Ref.6-8). A insistente prescrição de paracetamol ou uso desse fármaco para tratar condições de dor diversas sem suporte científico para tal acaba aumentando de forma desnecessária o risco de danos hepáticos na população. Aliás, muitas intervenções farmacológicas ou terapêuticas (tradicionais e alternativas) para quadros de dor crônica frequentemente não trazem benefício maior do que placebo, efeito este subestimado pelo público. Fica a sugestão de leitura: O que é o efeito placebo? E qual a relação entre vudu e nocebo?

(2) Febre NÃO é um fenômeno deletério ao organismo, e, sim, uma arma de defesa contra infecções, otimizando o sistema imunológico e tornando o corpo menos convidativo a patógenos diversos. Abaixar a febre de forma indiscriminada ou sem necessidade médica através de fármacos antipiréticos pode atrapalhar a luta do corpo contra infecções. Esse tipo de automedicação é alimentado por várias desinformações, como a ideia de que toda febre tende a elevar a temperatura corporal a valores muito altos (confusão entre febre e hipertermia) e que a febre sempre induz convulsão febril em crianças. Para mais informações: Qual é a função da febre?

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   Paracetamol, Autismo e TDAH

           Medicamentos com paracetamol são amplamente usados durante a gravidez, com 41-70% das grávidas nos EUA, Europa e Ásia reportando uso do fármaco. Nesse contexto, um número de estudos observacionais e de estudos de revisão nos últimos anos têm associado o uso de paracetamol durante a gravidez (exposição pré-natal) com um aumento de risco para transtornos de neurodesenvolvimento, especialmente transtorno do espectro do autismo e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Porém, esses estudos têm sido em geral muito limitados, e geralmente confiando no autorrelato de uso de medicamentos pelas grávidas e mães. Além disso, existem evidências observacionais conflitantes.

          Por exemplo, um estudo robusto de 2024 (Ref.10), analisando dados médicos de 2,5 milhões de crianças nascidas na Suécia, onde quase 186 mil foram expostas ao paracetamol durante a gravidez, encontrou um pequeno risco aumentado para autismo, TDAH e deficiência intelectual na análise inicial. Porém, quando irmãos foram usados como grupo de controle, a evidência estatística para o aumento de risco desapareceu. Isso sugere que fatores de risco familiares (ex.: genética, condição médica, ambiente de criação, etc.), responsáveis ou não pelo uso de paracetamol (!), são muito mais relevantes.

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(!) Mulheres que tomam paracetamol durante a gravidez geralmente apresentam pior saúde do que aquelas que não o fazem, talvez por terem tido uma infecção ou uma condição subjacente. Qualquer ligação aparente entre o paracetamol e o autismo pode, portanto, ser explicada por esses outros fatores de saúde (cofatores de risco), e não pelo medicamento em si.

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          Mais recente, um estudo de alta qualidade conduzido no Japão (Ref.11), analisando dados médicos de quase 218 mil crianças acumulados de 2005 até 2022, encontrou novamente um pequeno aumento de risco para TDAH e autismo associado ao uso de paracetamol durante a gravidez. Análises subsequentes de sensibilidade, levando em conta outros fatores  (ex.: exposição a outros fármacos na gravidez e uso não declarado de paracetamol) indicaram que esse pequeno aumento de risco encontrado pode ser fruto de viés nas associações observadas.

          Um estudo de revisão publicado no periódico Obstetrics & Gynecology (Ref.16), analisando nove estudos relevantes e três meta-análises, não encontrou evidência significativa ligando uso de paracetamol com o desenvolvimento de autismo ou de TDAH.

           No outro caminho, um estudo publicado recentemente no periódico Nature Mental Health (Ref.12), usando biomarcadores no plasma para uso de paracetamol, encontrou que detecção desse fármaco no segundo trimestre de gestação estava associado com uma probabilidade 3,15 vezes maior para o diagnóstico de TDAH. Exposição pré-natal de paracetamol e TDAH mostraram estar associados com maior regulação placentária de caminhos do sistema imune em fetos do sexo feminino e menor regulação da fosforilação oxidativa em ambos os sexos. No sexo feminino, exposição pré-natal de paracetamol estava associado, estatisticamente, com 5,22% maior risco de TDAH - e probabilidade 6,16x maior de diagnóstico. Esse maior risco mostrou ser mediado por um aumento da expressão do gene IGHG1, associado com a estrutura proteica da imunoglobulina A. O estudo analisou 307 mulheres de 2006 a 2011 e os filhos dessas mães foram acompanhados por 8 a 10 anos.

          Importante notar que esse último estudo, embora tenha resolvido o problema dos "autorrelatos", é de relativo pequeno porte e não usou análise de irmãos como controle.

          Portanto, as evidências são conflitantes e nenhuma conclusão é ainda possível sobre a ligação entre paracetamol e transtornos de neurodesenvolvimento. Nesse sentido, alguns especialistas sugerem que as grávidas devem reduzir o máximo possível o uso desse fármaco e sempre sob orientação médica, pelo menos até a questão ser melhor esclarecida (Ref.13-14). Já outros especialistas, com base nas evidências acumuladas, apontam que essa preocupação não é justificada (Ref.17).

> Existe também evidência sugestiva de que o paracetamol está associado com o desenvolvimento de transtornos de neurodesenvolvimento quando usado por bebês e crianças muito novas suscetíveis (exposição pós-natal). Mas a evidência é muito limitada. Ref.15

> É de fundamental importância realçar que o autismo possui uma etiologia complexa e multifatorial, envolvendo fatores ambientais e, especialmente, genéticos. Fatores ambientais, como potencialmente deficiência de ácido fólico, poluição do ar, e diabetes gestacional, possuem um efeito pequeno a moderado no risco de autismo. Genética possui a influência mais forte e relevante. E é provável que fatores genéticos e ambientais interagem entre si no desenvolvimento de autismo. O mesmo é válido para o TDAH. Por fim, vários potenciais fatores de risco têm sido apontados para as duas condições. Mais informações:


   Paracetamol e Selênio

          Para adultos, o consumo máximo recomendado de selênio é de 4 g. Pesquisadores da Universidade de Bath, Inglaterra, encontraram que o micronutriente selênio afeta a velocidade na qual o fármaco é eliminado do corpo, ao interferir de forma dose-dependente com os níveis de atividade da redutase tioredoxina da selelenoproteína (TrxR) e da glutationa (GSH) presentes no fígado. Como resultado, tomar 4 gramas de paracetamol em um dado dia pode ser perigoso se a pessoa estiver com níveis baixos desse nutriente no corpo. 

          É estimado que até 1 bilhão de pessoas ao redor do mundo possuem um consumo diário insuficiente de selênio. Nesse sentido, pode ser uma péssima ideia consumir o nível máximo de paracetamol considerado "seguro" na bula.

          O alerta foi reportado em 2021, em um estudo publicado no periódico Antioxidants & Redox Signaling (Ref.18), e baseando-se em experimentos com roedores.

          O estudo também encontrou que o consumo de selênio não apenas abaixo do ideal mas também em excesso aumenta a severidade de lesões hepáticas com o consumo de paracetamol. 

> Fontes alimentares ricas em selênio incluem castanhas e outras sementes similares, óleo de peixe, ovos, arroz castanho, sementes de girassol, cogumelos queijo cottage, lentilhas e carne. O selênio ajuda a manter um balanço redox saudável no corpo via enzimas antioxidantes chamadas de selenoproteínas (proteínas contendo selênio).


REFERÊNCIAS

  1. https://www.bbc.com/portuguese/articles/czdvyl8vdx3o.amp
  2. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK441917/
  3. Orisakwe et al. (2022). Potential deleterious effects of paracetamol dose regime used in Nigeria versus that of the United States of America. Toxicology Reports, Volume 9, Pages 1035-1044. https://doi.org/10.1016/j.toxrep.2022.04.025
  4. Borges et al. (2018). Avanços químicos no planejamento e desenvolvimento de derivados do paracetamol. Química Nova, 41(10). https://doi.org/10.21577/0100-4042.20170282
  5. Bhatt et al. (2021). Glabridin attenuates paracetamol-induced liver injury in mice via CYP2E1-mediated inhibition of oxidative stress. Drug and Chemical Toxicology, 1–9. https://doi.org/10.1080/01480545.2021.1945004
  6. Shaheed et al. (2021). The efficacy and safety of paracetamol for pain relief: an overview of systematic reviews. The Medical Journal of Australia, Volume 214, Issue 7, Pages 324-331. https://doi.org/10.5694/mja2.50992
  7. Day et al. (2019). "Is it ethical to prescribe paracetamol for acute low back pain and osteoarthritis?" The Lancet Rheumatology, Volume 1, Issue 3, E140-E142. https://doi.org/10.1016/S2665-9913(19)30041-4
  8. https://www.cochranelibrary.com/cdsr/doi/10.1002/14651858.CD013273/full
  9. Diploma et al. (2024). Incidence of side effects associated with acetaminophen in people aged 65 years or more: a prospective cohort study using data from the Clinical Practice Research Datalink. Arthritis Care and Research. https://doi.org/10.1002/acr.25471
  10. Ahlqvist et al. (2024). Acetaminophen Use During Pregnancy and Children’s Risk of Autism, ADHD, and Intellectual Disability. JAMA, Vol. 331, No. 14. https://doi.org/10.1001/jama.2024.3172
  11. Okubo et al. (2025). Maternal Acetaminophen Use and Offspring's Neurodevelopmental Outcome: A Nationwide Birth Cohort Study. Paediatric and Perinatal Epidemiology. https://doi.org/10.1111/ppe.70071
  12. Baker et al. (2025). Associations of maternal blood biomarkers of prenatal APAP exposure with placental gene expression and child attention deficit hyperactivity disorder. Nature Mental Health 3, 318–331. https://doi.org/10.1038/s44220-025-00387-6
  13. https://link.springer.com/article/10.1186/s12940-025-01208-0
  14. https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC12429359/
  15. https://www.endocrine-abstracts.org/ea/0110/ea0110ep714
  16. Damkier et al. (2025). Acetaminophen in Pregnancy and Attention-Deficit and Hyperactivity Disorder and Autism Spectrum Disorder. Obstetrics & Gynecology, 145(2):p 168-176. https://doi.org/10.1097/AOG.0000000000005802
  17. https://www.nature.com/articles/d41586-025-02876-1
  18. Li et al. (2021). Selenium Status in Diet Affects Acetaminophen-Induced Hepatotoxicity via Interruption of Redox Environment. Antioxidants & Redx Signaling, Vol. 34, No. 17. https://doi.org/10.1089/ars.2019.7909