Qual é a duração ideal e a função do sono em humanos?
Figura 1. Aproximadamente um terço da vida humana é devotada ao sono, enfatizando o papel vital do sono em várias funções fisiológicas essenciais para a saúde. |
O sono parece possuir funções críticas no processamento cognitivo e na manutenção da saúde psicológica, incluindo recuperação de memórias e processamento emocional. O sono também parece fornecer uma crucial função neuroprotetora através da limpeza de resíduos produzidos pela atividade cerebral. Mudanças na duração do sono, uma característica fundamental do sono, estão ligadas a várias doenças e transtornos psiquiátricos, incluindo doença vascular cardio-cerebral e demência. Duração do sono inferior a 4-5 horas por noite - além de efeitos de curto prazo como sonolência diurna, fatiga diurna, humor deprimido e prejuízos funcionais diurnos - está associada a longo prazo com maior risco de obesidade, diabetes tipo 2, hipertensão, doença cardiovascular, depressão, outras doenças crônicas, problemas de memória e cognitivos, multimorbidade e mortalidade por todas as causas. E, no outro extremo, duração prolongada do sono tem sido reconhecida como um potencial marcador de demência e outras condições deletérias.
Sono não é uma "perda de tempo" ou simples descanso como comumente percebido, é um período essencial à saúde e ao bem-estar em crianças, adolescentes e adultos e precisa receber o mesmo nível de atenção dado a fatores como nutrição e exercícios físicos no sentido de promover um estilo de vida saudável (Ref.1-2).
Alteração nos padrões de sono, incluindo dificuldade para adormecer e permanecer adormecido; qualidade e quantidade de sono reduzidas; e reduzida eficiência de sono são importantes características do processo de envelhecimento (1). Nesse sentido, distúrbios do sono são prevalentes na população com idade mais avançada e podem ser acompanhados por declínio cognitivo e baixo bem-estar. Mesmo em idades mais jovens (30-50 anos), pior qualidade de sono está associada a um risco significativamente elevado de desenvolver problemas de memória e cognitivos em idades mais avançadas (Ref.13).
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(1) Leitura recomendada:
- Apneia do sono acelera o envelhecimento, mas uso de aparelho que ajuda a respirar ameniza o problema
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Múltiplos estudos nas últimas décadas têm buscado estabelecer uma recomendação ótima de duração do sono para diferentes fases da vida (infância, adolescência, fase adulta). Porém, a noção de "duração ótima de sono" é controversa na literatura acadêmica e especialistas sugerem que não existe um número mágico ou quantidade ideal de sono que possa ser aplicada de forma generalizada (Ref.3). Segundo recomendações oficiais de agências de saúde nos EUA e no Canadá, a duração de sono para diferentes grupos de idade varia da seguinte forma (Ref.3):
- Recém-nascidos (0-3 meses): 14-17 horas
- Bebês com 4-11 meses: 12-16 horas
- Bebês com 1 a 2 anos: 11-14 horas
- Pré-escolares (3-6 anos): 10-13 horas
- Crianças (6-13 anos): 9-12 horas
- Adolescentes (14-17 anos): 8-10 horas
- Adultos (18-64 anos): 7-9 horas
- Adultos com ≥65 anos: 7-8 horas
Apesar dessas referências, as necessidades de sono são determinadas por um complexo conjunto de fatores, incluindo genéticos, ambientais e comportamentais. Por exemplo, evidência acumulada aponta que atletas de alta performance precisam de mais tempo de sono para manter o alto nível de atividade física e se recuperar do intenso treino físico, em torno de 8,3 horas de sono (Ref.4). Para adultos em geral, a faixa de 7-8 horas de sono parece ser a mais associada com ótima saúde (Ref.5). Um robusto estudo publicado em 2022 no periódico Nature Aging (Ref.6), analisando dados genéticos de participantes do UK Biobank com idades de 38-73 anos e ancestralidade primariamente Europeia, encontrou que aproximadamente 7 horas é a duração ótima de sono em termos de saúde mental e cognitiva.
Em humanos modernos vivendo um estilo de vida caçador-coletor (ex.: grupos tribais na África e aqui na América do Sul) duração de sono reportada é de 6-8 horas, com picos de mais longa duração no inverno (Ref.7). Curioso também apontar que a prevalência de insônia em populações de caçadores-coletores é muito baixa (ao redor de 2%) comparado com a prevalência de insônia em sociedades industriais (ao redor de 10-30%).
Sob condições naturais, a maioria dos primatas não-humanos diurnos começam a dormir próximo do pôr-do-sol e acordam ao redor do amanhecer (aurora), totalizando cerca de 10-12 horas de sono. Ao contrário desses primatas, humanos vivendo como caçadores-coletores raramente vão dormir no pôr-do-sol, com sono sendo iniciado [na média] 3,2 horas mais tarde. O tempo entre o pôr-do-sol e o sono é preenchido com conversação, socialização e cozimento de alimentos sobre pequenas fogueiras - e com intensidade da luz ambiente oriunda dessas fogueiras geralmente a níveis insuficientes para alterar ritmos circadianos. Nesse contexto, é proposto que humanos modernos (Homo sapiens) são biologicamente distintos de outros primatas pela característica de permanecerem acordados bem após o pôr-do-sol - algo antes tradicionalmente pensado ser limitado a sociedades humanas sedentárias e/ou vivendo em áreas urbanizadas.
A duração do sono em diferentes espécies de mamíferos varia dramaticamente em uma faixa de 2 a 20 horas (Fig.2). O elefante-Africano (Loxodonta africana) é o mamífero com a menor necessidade de sono reportada, dormindo apenas 2,1 horas por dia; já o morcego da espécie Myotis lucifugus é a espécie que exibe a maior duração de sono conhecida: média de 20 horas por dia. Essa duração não está relacionada ao tamanho cerebral ou habilidade cognitiva e, sim, ao nicho ecológico e necessidades alimentares (balanço energético) (Ref.8). Por exemplo, no caso do morcego M. lucifugus, as presas desse animal (mariposas e mosquitos) exibem alta atividade durante períodos noturnos específicos, tornando improdutivo e arriscado (vulnerabilidade a predadores) para o morcego ficar acordado e ativo pela maior parte do dia. Apesar de ser aparente que humanos e outros mamíferos precisam de uma duração mínima de sono, é ainda incerto apontar precisamente o porquê do sono ser uma parte essencial da vida além de uma estratégia ecológica de conservação de energia.
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Curiosidades:
- Pinguins da espécie Pygoscelis antarcticus dormem
mais de 11 horas por dia, porém, através de uma extrema intermitência,
dormindo e acordando a cada ~4 segundos! Os milhares de "micro-sonos" ao
longo do dia parecem ajudar na sobrevivência dessas aves, ao
permitir constante estado de alerta, especialmente durante a proteção de
ovos e criação de filhotes. Para mais informações: Esse pinguim sobrevive dormindo apenas 4 segundos - milhares de vezes ao longo do dia!
- Renas (Rangifer tarandus) conseguem dormir e comer [ruminar] ao mesmo tempo! É sugerido que essa habilidade evoluiu para garantir um mais longo período de alimentação no verão e maximizar o acúmulo de calorias no corpo para o inverno Ártico. Para mais informações: Qual a função das galhadas nos alces e outros cervídeos?
- O elefante-marinho da espécie Mirounga angustirostris passa até 7 meses no mar na busca por alimento. Em terra firme, esse mamífero marinho dorme quase 11 horas por dia, tempo total que cai para ~1,7 hora no mar (distribuído em cochilos curtos de <20 minutos no chão oceânico ou à deriva ao longo da coluna de água). O sono REM compreende cerca de 29% do tempo de sono no mar do elefante-marinho. Ref.16
- Evidência aponta que o elefante-Africano (Loxodonta africana) possui o mais curto tempo de sono conhecido entre os mamíferos: uma média diária de 2 horas. O horário de sono é tipicamente entre 2:00 e 6:00 da manhã, podendo ser feito em pé ou de forma recumbente (encostado ou deitado). Como o sono recumbente é feito a cada 3-4 dias, isso potencialmente impossibilita entrada diária no sono REM nessa espécie. Ref.17
O sono humano e de várias outras espécies de mamíferos ocorre através de duas fases: fase REM (rápido movimento dos olhos) e fase não-REM (sem rápido movimento dos olhos). Essas fases são divididas em três estágios (N1-N3) (Ref.9). Cada fase e estágio do sono inclui variações no tônus muscular, padrões de ondas cerebrais e movimentos dos olhos. Uma hipótese propõe que o processo de sono permite a drenagem de toxinas do cérebro. A evidência para essa hipótese é que o sistema glinfático funciona melhor quando o cérebro está relativamente inativo (ex.: durante o sono não-REM e anestesia). É também sugerido que durante o sono não-REM o assim chamado "excesso de sinapses é removido".
No geral, as seguintes funções do sono propostas por hipóteses diversas são (Ref.9):
- Maturação neural;
- Facilitação de aprendizado ou memória;
- Eliminação sistemática de sinapses carregando informações desimportantes que podem "congestionar" a rede sináptica no cérebro;
- Cognição;
- Limpeza de toxinas e de resíduos metabólicos gerados pela atividade neural no cérebro despertado, através de um sistema circulatório que operaria de forma mais eficiente durante o sono;
- Conservação de energia metabólica.
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ATUALIZAÇÕES:
> Um estudo publicado no Journal of Proteome Research (Ref.10) encontrou que em camundongos e provavelmente humanos, o nível de uma proteína chamada de pleiotrofina (PTN) é reduzido no hipocampo após privação de sono e sua expressão está associada com funções cognitivas. Essa redução mostrou engatilhar uma cascata de sinalizações causando apoptose de neurônios. Em humanos, essa proteína está implicada no desenvolvimento de Alzheimer e outras doenças neurodegenerativas.
> Evidência experimental mostrou que o aumento de ondas lentas no cérebro durante o sono profundo na fase não-REM melhora a função cardíaca ao induzir contrações e relaxamentos mais vigorosos no ventrículo esquerdo do coração. O ventrículo esquerdo supre a maioria dos órgãos, as extremidades e o cérebro com sangue arterial rico em oxigênio. Esse fenômeno fisiológico sono-induzido aumenta a circulação sanguínea no corpo, com efeitos positivos no sistema cardiovascular, e pode ser um mecanismo que ajuda a explicar por que o sono é benéfico para a saúde cardiovascular. Ref.11
> Evidência de um controverso estudo experimental com ratos desafiou a hipótese de "limpeza do cérebro durante o sono", sugerindo que limpeza de resíduos cerebrais é mais eficiente durante o estado despertado. Os resultados do estudo estão sendo alvos de ceticismo e a metodologia do experimento está sendo questionada na comunidade científica. Ref.14-15
(2) Leitura recomendada: Edison e Dalí estavam certos: Acordar logo após cochilar anaboliza a criatividade
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Sobre o sono REM em específico, neste o cérebro entra em um estado de atividade metabólica muito alta e similar ao período despertado. Evidências sugerem que esse estado funciona primariamente como uma forma de restabelecer uma temperatura ideal no tecido cerebral, evitando prejuízos às suas funções, mas com o corpo como um todo mantendo baixa atividade e economia de energia. Não existe convincente evidência de que o sono REM promova benefícios cognitivos específicos (ex.: consolidação de memórias e de aprendizado) como comumente alegado.
Por exemplo, monotremos (ex.: ornitorrinco) possuem uma temperatura corporal e cerebral de ~31°C, enquanto mamíferos placentários possuem uma temperatura corporal e cerebral de ~37°C. Isso pode explicar por que os monotremos exibem uma longa duração de sono REM relativo ao sono total e, em termos absolutos, relativo aos outros mamíferos. Deixar a temperatura cerebral cair para menos de 31°C por muito tempo pode ser deletério, pelo menos no clado Mammalia. Essa relação entre temperatura corporal e duração do sono REM também é observada em outros grupos de mamíferos (Ref.8). Além disso, aves possuem a maior temperatura corporal e cerebral entre os homeotérmicos (~41°C), assim como as mais altas taxas metabólicas, e exibem as menores quantidades diárias de sono REM (~0,7 hora por dia). Cetáceos podem não exibir sono REM, mas alternam os estados (despertado ou adormecido) entre os hemisférios cerebrais.
Aliás, existe evidência científica recente de que durante o inverno (tempo mais frio), o sono REM em humanos possui duração significativamente maior do que no verão - diferença média de 30 minutos (Ref.9).
Essas evidências sugerem que o sono REM possui um papel primário de termorregulação cerebral, sendo engatilhado por uma redução da temperatura no tronco cerebral durante o sono não-REM, cessando quando a temperatura ideal é alcançada, em um ciclo de repetição (Ref.8). Seria uma função similar ao tremor corporal em um ambiente frio, e, além da função neuroprotetora, também torna o cérebro capaz de rapidamente acordar em situações de emergência.
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> Importante realçar que a termorregulação é mantida durante o sono não-REM, apesar de uma redução significativa da temperatura corporal em relação ao estado despertado. No sono REM, o tônus muscular (3) e a termorregulação corporais são fortemente reduzidos.
(3) Leitura recomendada: O que é a aterrorizante Paralisia do Sono?
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SONO E MEMÓRIA
É sabido que a consolidação de memórias é beneficiada com o sono. Reativação e replay de experiências no estado despertado durante sinais elétricos hipocampais [ondas SWRs] que ocorrem durante o sono de ondas lentas são considerados cruciais para esse processo. No entanto, pouco é conhecido sobre como esses padrões são impactados pela insuficiência de sono.
Em um estudo recentemente publicado na Nature (Ref.18), experimentos com ratos mostraram que as ondas SWRs, de fato, sofrem disrupção durante privação de sono (ex.: ficam menos intensas), atrapalhando a formação de memória. Padrões neuronais de reativação e de replay diminuíam durante a privação de sono e, em alguns casos, eram completamento suprimidos.
E, segundo os resultados do estudo, mesmo uma noite de sono adequado após o evento de privação não é suficiente para reverter o prejuízo, apenas amenizar a disrupção - mas os sinais hipocampais ainda continuam bagunçados.
Sono insuficiente, portanto, traz consequências adversas na função hipocampal, prejudicando a formação de memórias. Ou seja, se você está estudando para um prova complicada, priorize o sono todos os dias.
REFERÊNCIAS
- Sabia et al. (2022). Association of sleep duration at age 50, 60, and 70 years with risk of multimorbidity in the UK: 25-year follow-up of the Whitehall II cohort study. PLoS Medicine 19(10): e1004109. https://doi.org/10.1371/journal.pmed.1004109
- Ramar et al. (2021). Sleep is essential to health: an American Academy of Sleep Medicine position statement. Journal of Clinical Sleep Medicine, Volume 17, Issue 10. https://doi.org/10.5664/jcsm.9476
- Chaput et al. (2018). "Sleeping hours: what is the ideal number and how does age impact this?" Nature and Science of Sleep, 10:421-430. https://doi.org/10.2147%2FNSS.S163071
- Sargent et al. (2021). "How Much Sleep Does an Elite Athlete Need?" International Journal of Sports Physiology and Performance, Volume 16, Issue 12, Pages 1746-1757. https://doi.org/10.1123/ijspp.2020-0896
- Chaput et al. (2020). Sleep duration and health in adults: an overview of systematic reviews. Applied Physiology, Nutrition, and Metabolism, Volume 45, Number 10. https://doi.org/10.1139/apnm-2020-0034
- Li et al. (2022). The brain structure and genetic mechanisms underlying the nonlinear association between sleep duration, cognition and mental health. Nature Aging 2, 425–437. https://doi.org/10.1038/s43587-022-00210-2
- Siegel, J. M. (2022). Sleep function: an evolutionary perspective. The Lancet Neurology, Volume 21, Issue 10, P937-946. https://doi.org/10.1016/S1474-4422(22)00210-1
- https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK526132/
- Seidler et al. (2023). Seasonality of human sleep: Polysomnographic data of a neuropsychiatric sleep clinic. Frontiers in Neuroscience, Volume 17. https://doi.org/10.3389/fnins.2023.1105233
- Zhou et al. (2023). The Combination of Quantitative Proteomics and Systems Genetics Analysis Reveals that PTN Is Associated with Sleep-Loss-Induced Cognitive Impairment. Journal of Proteome Research, 22, 9, 2936-2949. https://doi.org/10.1021/acs.jproteome.3c00269
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- https://diabetesjournals.org/care/article-abstract/doi/10.2337/dc23-1156/153802/Chronic-Insufficient-Sleep-in-Women-Impairs
- Leng et al. (2024). Association Between Sleep Quantity and Quality in Early Adulthood With Cognitive Function in Midlife. Neurology, 102 (2). https://doi.org/10.1212/WNL.0000000000208056
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