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O pelo do urso-polar não é branco e, sim, transparente!


- Atualizado no dia 5 de dezembro de 2020 -

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         Os Ursos-Polares (Thalarctos maritimus) são os maiores carnívoros terrestres (1) do mundo e possuem poderosas adaptações para sobreviverem no tenebroso frio do Ártico, o qual pode alcançar os 50°C negativos em determinadas épocas do ano. Possuindo um ancestral comum com os Ursos-Pardos (Ursus arctos), esses animais tiveram sua divergência evolutiva há menos de 500 mil anos, um período bem curto de adaptação apesar das drásticas mudanças corporais sofridas pelos ursos-polares. Porém, uma das características mais marcantes desses animais, e que geraram a maior confusão tanto no meio acadêmico quanto no meio popular, refere-se à natureza da sua pelagem. Sim, apesar da maioria achar que a cobertura de pelos desses animais é branca, na verdade seus pelos individuais são transparentes e a pele desses ursos é preta!

Para suportar o intenso frio do Ártico, e manter sua temperatura corporal em torno de 37°C, o urso-polar sofreu profundas adaptações corporais desde sua divergência do urso-pardo; uma característica única deles, por exemplo, é ativar diferentes graus de hibernação (grandes mudanças metabólicas no corpo para economizar energia gasta) a qualquer momento

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   DIVERGÊNCIA EVOLUTIVA

          A divergência dos ursos-polares (U. maritimus) dos ursos-marrons (U. arctos) e suas adaptações a um novo ambiente e nicho ecológico no Ártico é um exemplo bem conhecido de rápida evolução. Apesar de terem divergido relativamente recente (479-343 mil anos atrás), os ursos-polares evoluíram de forma dramática novas e distintas ecologia, comportamento e morfologia. Existem evidências de seleção positiva atuando fortemente em vários genes do urso-polar - tanto variações genéticas (alelos) quanto mutações de novo (!) - envolvendo funções no desenvolvimento de tecido adiposo, metabolismo de ácidos graxos, funções cardíacas e pigmentação da pelagem (Ref.17). Aliás, análises fósseis indicam que essa espécie já tinha se adaptado a uma dieta marinha e vida nas altas latitudes do Ártico há pelo menos 110 mil anos. 


          Portanto, talvez em apenas ~20 mil gerações, os ursos-polares evoluíram um conjunto de adaptações únicas que permitiram a esses animais manter homeostase sob temperaturas muito baixas, ocupar um nicho hipercarnívoro (!), subsistir sobre uma dieta primariamente de focas e gordura associada, processar lipídios como a fonte predominante de energia, e se camuflar no ambiente ao redor com uma pelagem livre de pigmentação. E é nesse último traço adaptativo - associado com mutações nos genes LYST e AIM1 -  que reside um curioso aspecto morfológico dessa espécie.

(!) Dieta onde mais de 70% do alimento possui origem de predação. Para mais informações: Humanos foram hipercarnívoros durante a maior parte da nossa linhagem evolutiva  


   PELAGEM BRANCA?

         Como todos os mamíferos com real pelagem, os pelos do urso-polar são compostos por uma camada primária bem densa de pelos mais finos e curtos, e uma camada secundária (exterior) de pelos mais longos, e que tampam a camada primária. Ambos os tipos de pelo não possuem pigmentação alguma e são incolores em sua, virtualmente, completa extensão. Ainda nos pelos longos, temos uma característica bastante peculiar, e compartilhada por outros animais que habitam o frio extremo: eles possuem uma estrutura oca! Esse espaço oco, preenchido com ar, ajuda a diminuir a perda de calor corporal por convecção e também faz com que parte da luz solar incidente seja espalhada, resultando em uma aparente coloração branca dos pelos (a soma de todas as cores é o branco). Assim, a luz solar consegue chegar em boa quantidade à pele devido à transparência dos pelos, esquentando com boa eficiência por ser escura (absorve vários comprimentos da luz solar, incluindo todo o espectro visível), e, ao mesmo tempo, permite que o urso-polar se camufle bem na neve do seu habitat por emitir uma resultante branca de cores, facilitando o ataque às suas presas. Caso sua robusta pelagem fosse, de fato, branca, ela iria refletir quase toda a radiação solar incidente, desperdiçando uma boa fonte de energia externa.




Estrutura do pelo de um urso-polar sob um microscópio. O núcleo poroso - com milhares de bolsas de ar - reduz a perda de calor e, ao mesmo tempo, reduz a densidade total da pelagem. Enquanto isso, a densa camada que cerca o núcleo do pelo torna a estrutura capilar muito resistente e ajuda a manter o animal seco. Aliás, os pelos do urso-polar têm inspirado o desenvolvimento recente de roupas muito "leves" e com alta capacidade de isolamento térmico baseadas em aerogéis. Ref.19

          Por causa da transparência, do conteúdo oco dos seus longos pelos e pela alta absorção da radiação UV pelo corpo do urso-polar, por muito tempo acreditou-se que a pelagem desses animais possuía um comportamento parecido com o de uma fibra ótica, transmitindo com grande eficiência essa faixa de radiação através dos pelos até a sua pele, resultando em uma ajuda extra no aquecimento. Mas estudos subsequentes desbancaram essa ideia, não conseguindo encontrar propriedades físicas do tipo nesses pelos e mostrando que a absorção era devida à proteína de queratina presente na estrutura capilar. Mesmo assim, até hoje, esse mito ainda circula em várias fontes de pesquisa pela internet.

          Mais um fato interessante associado ao urso-polar, e que envolve outra faixa de radiação do espectro eletromagnética, é que esse animal é quase invisível às câmeras/sensores de infravermelho (como mostrado na imagem ao lado)! Apenas o ar da sua respiração é bem capturado pelos sensores infravermelhos, e observações deles à noite, sem o uso de luz visível artificial, só é bem feita quando usa-se sensores de UV, onde a neve ao redor, por exemplo, reflete bem esse comprimento de onda, mas, como já mencionado, os ursos-polares o absorvem em grande extensãoe. Com o UV, eles aparecem escuros na tela de captura. Essa invisibilidade ao infravermelho é devido à alta capacidade de retenção de calor dos seus corpos. Com uma espessa camada de gordura que possui cerca de 10 cm de largura e uma densa camada de pelos primários, os quais também refletem parte da radiação infravermelha de volta para a pele, pouco calor é perdido para as partes mais exteriores da pelagem, fazendo com que a temperatura nessa região fique próxima do ambiente em volta. Com isso, a emissão de radiação infravermelha tende a se igualar ao do ambiente ao redor, tornando o urso-polar invisível. 

           A capacidade de retenção de calor dos ursos-polares é tão grande que se a temperatura ao seu redor ultrapassar, aproximadamente, 10°C, esse animal passa a sofrer com um perigoso superaquecimento.

          Outro aspecto importante da pelagem dos ursos polares é sua notável propriedade hidrofóbica (repulsão de água), permitindo uma formidável isolamento térmico também no ambiente aquático ao impedir contato da pele com a fria água marinha. Para o propósito de predação, os ursos-polares precisam nadar nas águas geladas do Ártico, às vezes por vários dias. A habilidade de manter o corpo aquecido nessas condições através de mecanismos não-metabólicos é vital porque a transferência convectiva de calor na água é pelo menos 30 vezes maior do que no ar (ambiente terrestre) (Ref.18). Por exemplo, sem qualquer tecnologia de proteção térmica, um humano mergulhado em uma água com temperatura em torno de 0°C irá rapidamente perder a consciência dentro de 15 minutos e morrer dentro de 45 minutos. 

           Portanto, a pelagem dos ursos polares é otimizada para reter o máximo do calor corporal graças à combinação de mecanismos radiativos (transmissão de parte da luz solar para aquecer a pele preta enquanto retendo a radiação de infravermelho médio emitida do corpo) e de mecanismos não-radiativos (isolamento térmico a partir da convecção do ar e da água), e, ao mesmo tempo, fornecer uma excelente camuflagem durante o dia.

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          Mas alguns podem estar se perguntando sobre a existência de uma coloração meio amarelada (praticamente sempre presente em alguma intensidade) e até mesmo esverdeada que pode acompanhar esses animais. Bem, essas colorações podem surgir por causa de vários fatores:

I. Amarelado: Manchas diversas, como secreções do corpo, óleo de focas e sujeira do ambiente, ou através da oxidação da estrutura capilar pelos raios solares. O óleo de foca é o principal responsável pelo amarelado, o qual impregna no corpo do animal enquanto a devora. Quanto mais focas sendo consumidas, mais amarelado esse urso tenderá a ser. Como os ursos-polares trocam de pelo anualmente (geralmente começam na primavera e terminam no verão), a nova pelagem que vai nascendo é normalmente bem "branca" no início (bem, tecnicamente, transparente). Outro fato interessante é que eles são um dos poucos animais que não passam por uma mudança de pigmentação quando saem do inverno: estão sempre brancos independentemente se a neve no seu território derreteu ou não. 


Na foto, as setas indicam um adulto com a pelagem bem amarelada em várias partes e um filhote com a pelagem bem branca.


II. Esverdeado: Ursos-polares mantidos em zoológicos normalmente adquirem uma pelagem bem esverdeada. Foi no final da década de 1970 que os cientistas descobriram que algas como as do gênero Chlorella Scenedesmus ocupavam os espaços ocos dentro dos fios longos da pelagem desses animais. Como as algas são verdes e os pelos transparentes, elas ficam bem visíveis e bem fixadas lá dentro. Essas algas são produzidas em grande quantidade nesses ambientes quando comparado com o habitat natural dos ursos-polares, devido às maiores temperaturas e acúmulo de resíduos nitrogenados nas águas das piscinas.


Na foto, um urso-polar mantido em um zoológico e apresentando a pelagem colonizada por algas


          Bem, no final, é válido mencionar que por causa das características tão especiais da pelagem do urso-polar, ela serve até de modelo para pesquisas científicas em materiais com propriedades térmicas. Infelizmente, também, esses animais estão muito ameaçados de conservação por causa da perda massiva de território gelado gerada pelo crescente processo de aquecimento global  Lutar pela causa ambiental e salvar essas fantásticas criaturas vale mais do que a pena.

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(1) Os ursos-polares são classificados como mamíferos marinhos porque eles passam mais tempo na água do mar do que no ambiente terrestre, mas eles são bem adaptados em ambos os ambientes. Nadando, eles podem alcançar os 10 km/h de velocidade. Já no solo, correndo, eles podem bater os 40 km/h.


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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. https://www.loc.gov/rr/scitech/mysteries/polarbear.html
  2. http://www.synergypublishers.com/jms/index.php/jabb/article/view/913
  3. http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/0165163390900567
  4. http://link.springer.com/article/10.1007/s00360-013-0794-8
  5. http://www.polarbearsinternational.org/about-polar-bears/essentials/fur-and-skin
  6. https://www.researchgate.net/publication/228489376_Radiative_Properties_of_Polar_Bear_Hair
  7. http://thermalscience.vinca.rs/pdfs/papers-2015/TSCI15S1S43W.pdf
  8. http://proceedings.asmedigitalcollection.asme.org/proceeding.aspx?articleid=1583391
  9. http://it.stlawu.edu/~koon/polar.html
  10. http://it.stlawu.edu/~koon/mar_ref.html
  11. http://www.cell.com/cell/abstract/S0092-8674(14)00488-7
  12. http://rsta.royalsocietypublishing.org/content/367/1894/1749.short
  13. https://seaworld.org/Animal-Info/Animal-InfoBooks/Polar-Bears/Physical-Characteristics
  14. https://www.osapublishing.org/ao/abstract.cfm?uri=ao-37-15-3198
  15. http://www.nature.com/nature/journal/v278/n5703/abs/278445a0.html
  16. Article ID: 1674-649X(2012)05-0563-05
  17. Samaniego et al. (2020). Analyses of key genes involved in Arctic adaptation in polar bears suggest selection on both standing variation and de novo mutations played an important role. BMC Genomics 21, 543. https://doi.org/10.1186/s12864-020-06940-0
  18. Shao et al. (2020). A superhydrophobic textile inspired by polar bear hair for both in air and underwater thermal insulation. Chemical Engineering Journal, 125441. https://doi.org/10.1016/j.cej.2020.125441
  19. Wu et al. (2023). Biomimetic, knittable aerogel fiber for thermal insulation textile. Science, Vol. 382, Issue 6677, pp. 1379-1383. https://doi.org/10.1126/science.adj8013