Neandertais eram capazes de produzir arte e expressar linguagem?
- Atualizado no dia 14 de maio de 2024 -
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Humanos anatomicamente modernos (Homo sapiens) colonizaram a Europa há cerca de 45-43 mil anos, substituindo os Neandertais (Homo neanderthalensis) após o período em torno de 40 mil anos atrás. Mas além do mistério do porquê os Neandertais foram extintos - existindo hoje diversas hipóteses -, existe outro que divide a comunidade acadêmica há décadas: seriam os Neandertais intelectualmente similares à nossa espécie? Enquanto alguns especialistas não acreditam nisso, evidências nos últimos anos vêm se acumulando de que a capacidade cognitiva dos nossos parentes evolucionários mais próximos possuía, no mínimo, o mesmo potencial da nossa.
Aliás, em 2018, dois robustos estudos publicados na Science forneceram cruciais evidências que fortemente refutam a natureza "brutamontes" dos nossos parentes evolucionários, sugerindo que eles sabiam expressar arte como nós e que provavelmente eram dotados de linguagem! Os achados foram reforçados por um estudo mais recente trazendo evidências conclusivas de gravuras abstratas produzidas por Neandertais em uma caverna na França.
ATENÇÃO: O artigo a seguir traz primeiro um resumo sobre quem eram os Neandertais e os achados mais recentes sobre essa espécie. As três publicações acadêmicas mencionadas serão discutidas a partir do tópico "HUMANOS MODERNOS E NEANDERTAIS: SIMBOLISMOS". O artigo será continuamente atualizado a cada nova descoberta nessa área.
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NEANDERTAIS
O atual registro fóssil sugere que os Neandertais - espécie Homo neanderthalensis (um dos primatas humanos arcaicos) - divergiram da linhagem primata que levou aos atuais humanos modernos (espécie Homo sapiens) há cerca de 800 mil anos na África (!), evoluindo possivelmente do Homo heidelbergensis (ancestral direto). Os Neandertais, então, migraram para o Norte, na Eurásia (região que corresponde à união dos continentes Europa e Ásia), onde se tornaram um grupo geograficamente isolado que evoluiu de forma independente da linhagem que veio a representar os humanos modernos no continente Africano. Chegaram a ocupar a Europa e o Oeste da Ásia, indo tão longe ao Leste quanto o Sul da Sibéria e tão longe ao Sul quanto o Oriente Médio.
(!) Segundo um estudo publicado em 2019 na Science Advances (Ref.13), os Neandertais e os humanos modernos divergiram há, no mínimo, 800 mil anos. Essa conclusão veio após análises dos dentes pertencentes a 28 indivíduos da espécie Homo heidelbergensis, cujas ossadas foram encontradas em uma cova conhecida como Sima de los Huesos (Cova dos Ossos), na Espanha, e datadas em pelo menos 430 mil anos de idade. Devido a características anatômicas e genéticas bastante similares, o H.heidelbergensis provavelmente representa o ancestral direto dos Neandertais. Levando isso em conta, o antropólogo e geneticista Aida Gómez-Robies, da Universisity College London, usou análises quantitativas das taxas de evolução dentária e análises filogenéticas das relações evolutivas entre homininis para estimar quando o último ancestral comum entre Neandertais e H. sapiens divergiu. Os resultados mostraram que esse ancestral comum divergiu há cerca de 800 mil anos, exceto se algum mecanismo evolutivo não esperado acelerou a evolução dentária entre esses homininis (até o momento era estimado que esse ancestral comum tinha divergido há cerca de 400 mil anos).
> Um estudo publicado em 2018 e conduzido por pesquisadores Israelenses mostrou que a anatomia da caixa torácica dos Neandertais era substancialmente diferente da nossa. Para saber mais, acesse: Os Neandertais respiravam por um mecanismo diferente dos humanos modernos
> Um estudo recente trouxe forte evidência genética relacionando traços fenotípicos nasais entre Neandertais e a nossa espécie Para mais informações: Maior altura do nariz em humanos modernos é uma herança de Neandertais, conclui estudo
Leitura recomendada: Por que temos um queixo?
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Entre as notáveis características morfológicas diferenciais entre os humanos modernos e os Neandertais, existe bastante controvérsia quanto à questão da alegada má postura desses últimos. Evidências recentes, oriundas do estudo de um esqueleto bem conservado pertencente a um espécime macho e idoso encontrado na La Chapelle-aux-Saints, França, contrariou a ideia da "má postura". Segundo os autores do estudo, publicado na Proceedings of the National Academy of Sciences (Ref.11), a sugestão de que os Neandertais não possuíam uma coluna espinhal no formado de duplo S bem desenvolvida veio de estudos anteriores baseados em vestígios fósseis de vértebras isoladas. Reconstruindo virtualmente o esqueleto de La Chapelle-aux-Saints, os pesquisadores mostraram que tanto esse espécime quanto outros Neandertais em geral possuíam as regiões do lombar inferior (L4-S1) e do pescoço (C4-T2) curvadas (lordose), assim como os humanos modernos. Ou seja, os Neandertais provavelmente possuíam uma postura totalmente ereta e balanceada como a nossa.
Já explorando uma bem estabelecida diferença entre as duas espécies, um estudo publicado na Proceedings of the Royal Society B (Ref.9), mostrou que as grandes estruturas nasais no crânio dos Neandertais - particularmente uma passagem nasal ~29% maior do que aquela do H. sapiens - permitiam que essa espécie transportasse duas vezes mais ar para os pulmões do que os humanos modernos. Isso provavelmente garantia uma grande vantagem nas caças de grandes animais e ao enfrentar ambientes mais frios na Europa durante a Idade do Gelo - ao suportar uma maior nível de metabolismo/aquecimento corpo com a inalação de grande quantidade de oxigênio em um curto intervalo de tempo. Para essa conclusão, os pesquisadores utilizaram avançadas simulações computacionais. Somando-se a isso, os pesquisadores também encontraram que as distintas características morfológicas na região craniofacial dos Neandertais não refletem adaptações para o estresse mecânico gerado por fortes mordidas e mastigação.
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> Os tubos de Eustáquio, ligando o ouvido médio à nasofaringe, nos Neandertais possuíam uma baixa inclinação (quase horizontal) similar àquela observada na infância (<5 anos de idade) dos humanos modernos, tornando-os provavelmente mais suscetíveis a otites. Para mais informações, acesse: Neandertais tinham estrutura auditiva de crianças Homo sapiens: causa da extinção?
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Entre as notáveis características morfológicas diferenciais entre os humanos modernos e os Neandertais, existe bastante controvérsia quanto à questão da alegada má postura desses últimos. Evidências recentes, oriundas do estudo de um esqueleto bem conservado pertencente a um espécime macho e idoso encontrado na La Chapelle-aux-Saints, França, contrariou a ideia da "má postura". Segundo os autores do estudo, publicado na Proceedings of the National Academy of Sciences (Ref.11), a sugestão de que os Neandertais não possuíam uma coluna espinhal no formado de duplo S bem desenvolvida veio de estudos anteriores baseados em vestígios fósseis de vértebras isoladas. Reconstruindo virtualmente o esqueleto de La Chapelle-aux-Saints, os pesquisadores mostraram que tanto esse espécime quanto outros Neandertais em geral possuíam as regiões do lombar inferior (L4-S1) e do pescoço (C4-T2) curvadas (lordose), assim como os humanos modernos. Ou seja, os Neandertais provavelmente possuíam uma postura totalmente ereta e balanceada como a nossa.
Já explorando uma bem estabelecida diferença entre as duas espécies, um estudo publicado na Proceedings of the Royal Society B (Ref.9), mostrou que as grandes estruturas nasais no crânio dos Neandertais - particularmente uma passagem nasal ~29% maior do que aquela do H. sapiens - permitiam que essa espécie transportasse duas vezes mais ar para os pulmões do que os humanos modernos. Isso provavelmente garantia uma grande vantagem nas caças de grandes animais e ao enfrentar ambientes mais frios na Europa durante a Idade do Gelo - ao suportar uma maior nível de metabolismo/aquecimento corpo com a inalação de grande quantidade de oxigênio em um curto intervalo de tempo. Para essa conclusão, os pesquisadores utilizaram avançadas simulações computacionais. Somando-se a isso, os pesquisadores também encontraram que as distintas características morfológicas na região craniofacial dos Neandertais não refletem adaptações para o estresse mecânico gerado por fortes mordidas e mastigação.
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> Os tubos de Eustáquio, ligando o ouvido médio à nasofaringe, nos Neandertais possuíam uma baixa inclinação (quase horizontal) similar àquela observada na infância (<5 anos de idade) dos humanos modernos, tornando-os provavelmente mais suscetíveis a otites. Para mais informações, acesse: Neandertais tinham estrutura auditiva de crianças Homo sapiens: causa da extinção?
> Evidência genômica aponta que o corpo estriado no cérebro dos Neandertais expressava um alto número de mudanças de expressão gênica, sugerindo que essa estrutura cerebral evoluiu funções únicas nessa espécie (Ref.29).
Nesse caminho, uma antiga e persistente crença sobre os Neandertais foi potencialmente derrubada em um estudo publicado em 2018 na Nature (Ref.10), explorando a frequência de traumas cranianos nessa espécie. Ao coletarem dados de estudos prévios englobando 295 crânios de Neandertais e 541 de humanos modernos de indivíduos que viveram na Eurásia entre 80 mil e 20 mil anos atrás, os pesquisadores mostraram que apenas 39 dos crânios - 14 de Neandertais e 25 de humanos modernos - mostravam sinais de danos. Em outras palavras, uma taxa de lesões em torno de 5% para ambas as espécies. Isso indica que os Neandertais não estavam expostos a mais perigo dos que os humanos modernos por supostamente estarem confrontando suas presas - como rinocerontes - mais de perto (confiando apenas na força física e armas de curto alcance), serem mais vulneráveis a ataques de carnívoros, ou estarem sempre engajados em comportamentos sociais violentos. Segundo os autores do estudo, os Neandertais provavelmente eram capazes de elaborar eficientes estratégias de caça, como conduzir grandes presas para armadilhas naturais ou via cooperação em grupo, com o intuito de diminuir as chances de lesões (1). De fato, já era um consenso no meio acadêmico que essa espécie caçava a base de emboscadas. O achado também sugere uma espécie mais pacífica e mais unida contra adversidades internas e externas (2).
HIBRIDIZAÇÕES E FLUXOS MIGRATÓRIOS
Estudos nas últimas décadas vêm mostrando que quando os humanos modernos deixaram a África, muitos perderam vários genes dos seus ancestrais africanos, especialmente quando começaram a ocupar a região hoje da Europa. Porém, tudo indica que quando nossa espécie começou a se acasalar com os Neandertais - sim, as duas espécies mantinham relações sexuais entre si, gerando descendentes férteis - vários dos genes perdidos voltaram aos nossos descendentes (ligados ao ancestral comum de ambas as espécies). A troca de genes entre as duas espécie realmente ocorreu com significativa intensidade após a saída da África, e isso inclui a descoberta que a maior parte dos Africanos hoje não carregam traços de DNA neandertal., apenas os Europeus e Asiáticos no geral. As pessoas hoje do Leste Asiático possuem maior carga genética dos Neandertais (2,3%-2,6%) do que aqueles vivendo no Oeste Asiático e na Europa (1,8%-2,4%).
Neandertais e humanos passaram, no mínimo, por dois eventos de hibridização. Um estudo publicado no periódico Genetics (Ref.25), analisando variações haplotípicas e polimorfismos de deleção, reforçou essa ideia de múltiplos eventos de introgressão, ao encontrar que populações na Eurásia possuem material genético ligado aos Neandertais das montanhas de Altai - na Sibéria - e da caverna Vindija, na atual Croácia. E, mais recentemente, através da análise genômica de 27566 habitantes da Islândia, pesquisadores detectaram de 56388 a 112709 fragmentos arcaicos únicos, com 84,5% destes associados com Neandertais de Altai ou de Vindija; 3,3% associados aos Denisovanos (Homo denisova); e 12,2% associados a uma origem arcaica desconhecida. O padrão de DNA Denisovano encontrado, segundo a conclusão do estudo (!), só poderia ter duas origens: introgressão direta com humanos ou introgressão indireta, através de hibridização prévia com Neandertais (3).
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(!) Curiosamente, o estudo - publicado na Nature (Ref.26) - também encontrou que poucos fenótipos da nossa espécie estão fortemente associados ao DNA arcaico. De 271 fenótipos testados, apenas 5 mostraram forte ligação a Neandertais, Denisovanos ou outras espécies arcaicas: alelos associados a um leve menor risco de câncer de próstata; decréscimo de hemoglobina; menor altura (1 milímetro); redução na média de hemoglobina corpuscular; e aumento no tempo de protrombina no plasma. Outra característica marcante revelada foi que as mulheres Neandertais engravidavam em idades mais avançadas do que as mulheres Homo sapiens na mesma época (habitantes da África), e que os homens Neandertais se tornavam pais mais jovens do que os homens H. sapiens.
(3) Aliás, temos evidência direta de hibridização entre essas duas espécies. Para mais informações, acesse: Descoberto humano metade Neandertal metade Denisovano
> Os eventos de introgressão impactaram mais profundamente os Neandertais do que os humanos modernos. O cromossomo Y dos Neandertais foi eventualmente substituído pelo nosso! Para mais informações, acesse: Nosso cromossomo Y substituiu o cromossomo Y dos Neandertais durante as hibridizações
> Para mais informações sobre os Denisovanos, acesse: Denisvonaos e a suruba inter-espécies na Ásia
- Indo nessa mesma linha de pequenos grupos populacionais e limitada população total na Eurásia, estudos sugerem que relacionamentos consanguíneos excessivos e flutuações demográficas podem ter sido o fator decisivo de extinção, auxiliado ou não pela competição com os humanos modernos (Ref.24).
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TECNOLOGIA E COMPORTAMENTO
Apesar de existir um estereótipo popular de que os Neandertais eram brutamontes das cavernas com pouca inteligência - especialmente fomentadas pela morfologia dos seus crânios -, pesquisas científicas nas últimas décadas vêm mostrando o oposto. Os Neandertais eram definitivamente uma espécie humana avançada, capaz de processar pensamentos inteligentes e capazes de resistirem e de se adaptarem aos mais desafiantes ambientes. Evidências arqueológicas até o momento acumuladas mostram que essa espécie humana possuía também uma complexa cultura, apesar de não terem se comportado da mesma forma que os humanos modernos que viveram na mesma época.
TECNOLOGIA E COMPORTAMENTO
Apesar de existir um estereótipo popular de que os Neandertais eram brutamontes das cavernas com pouca inteligência - especialmente fomentadas pela morfologia dos seus crânios -, pesquisas científicas nas últimas décadas vêm mostrando o oposto. Os Neandertais eram definitivamente uma espécie humana avançada, capaz de processar pensamentos inteligentes e capazes de resistirem e de se adaptarem aos mais desafiantes ambientes. Evidências arqueológicas até o momento acumuladas mostram que essa espécie humana possuía também uma complexa cultura, apesar de não terem se comportado da mesma forma que os humanos modernos que viveram na mesma época.
Ponta de pedra usada em lanças por Neandertais há cerca de 65 mil anos, encontrada em uma caverna no sul da Alemanha. Ref.39 |
Os Neandertais possuíam, no geral, um espectro de ferramentas razoavelmente avançado, classificado como 'tecnologia Modo 3' que também era usada pelos primeiros membros Homo sapiens. Durante a estadia dos Neandertais na Europa, eles foram desenvolvendo ferramentas cada vez mais sofisticadas, similares às ferramentas laminadas dos humanos modernos. Muitas delas podem ter sido copiadas da nossa espécie ou mesmo barganhadas. Porém, um estudo publicado em 2020 na PLOS One (Ref.16) reportou a descoberta das mais antigas ferramentas humanas fabricadas com adesivos (produzidas com resinas coletadas de coníferas e, em um caso, com a adição de cera de abelha), há 55-40 mil anos, por Neandertais, não H. sapiens (nossa espécie só pisou no continente milhares de anos depois). Os achados ocorreram em duas cavernas na Itália (Fossellone e Sant'Agostino). Os adesivos eram utilizados para prender pedras lascadas a ossos e pedaços de madeira (punho), uma avançada tecnologia no Paleolítico - a qual utilizava também fogo para o molde da resina seca - antes associada apenas aos humanos modernos. Isso indica também que os Neandertais usavam frequentemente o fogo, sempre que queriam, assim como os H. sapiens.
Outro exemplo de uso desse tipo de adesivo por Neandertais foi foi revelado em um estudo publicado no periódico PNAS (Ref.23), a partir de análises de uma ponta de lança de pedra lascada coberta pelo material (1/3 de cobertura). O objeto - mostrado na imagem abaixo - foi encontrado na praia de Zandmotor, na Holanda, quando a região era conectada às ilhas Britânicas durante a última Era do Gelo (época em que os níveis dos mares eram muito mais baixos). A datação via radiocarbono (via espectrometria de massa) e análises geológicas complementares firmemente indicaram que a ferramenta tinha ~50 mil anos de idade, do Paleolítico Médio, uma época na Europa onde os humanos modernos não estavam presentes. Simulando um processo pelo qual os Neandertais poderiam ter feito a substância, os pesquisadores coletaram tiras da casca de vidoeiro (árvore da espécie Betula pendula), montaram uma estrutura de barro em volta e fizeram uma fogueira em cima para aquecer o interior da estrutura até 300-400°C. O procedimento levou à produção de um grosso alcatrão, à medida que a casca resinosa era desintegrada. Comparando o perfil químico entre o material produzido e aquele encontrado na ponta de lança, os pesquisadores encontraram que ambos possuíam a mesma assinatura química e que provavelmente foi esse o procedimento utilizado pelos Neandertais.
De fato, falando em uso de fogo, os Neandertais também conseguiam controlar essa fonte de energia para o aquecimento, cozimento de alimentos e proteção. Aliás, os mais antigos vestígios de alimento cozido conhecidos, descobertos em um complexo de cavernas no norte do atual Iraque há cerca de 70 mil anos, estão associados aos Neandertais (Ref.35). Vestiam roupas de peles de animais para as áreas mais frias, porém não existem evidências se as costuravam ou apenas as amarravam juntas. Essas evidências arqueológicas reforçam que essa espécie humana estava longe de ser cognitivamente primitiva.
Outro exemplo de uso desse tipo de adesivo por Neandertais foi foi revelado em um estudo publicado no periódico PNAS (Ref.23), a partir de análises de uma ponta de lança de pedra lascada coberta pelo material (1/3 de cobertura). O objeto - mostrado na imagem abaixo - foi encontrado na praia de Zandmotor, na Holanda, quando a região era conectada às ilhas Britânicas durante a última Era do Gelo (época em que os níveis dos mares eram muito mais baixos). A datação via radiocarbono (via espectrometria de massa) e análises geológicas complementares firmemente indicaram que a ferramenta tinha ~50 mil anos de idade, do Paleolítico Médio, uma época na Europa onde os humanos modernos não estavam presentes. Simulando um processo pelo qual os Neandertais poderiam ter feito a substância, os pesquisadores coletaram tiras da casca de vidoeiro (árvore da espécie Betula pendula), montaram uma estrutura de barro em volta e fizeram uma fogueira em cima para aquecer o interior da estrutura até 300-400°C. O procedimento levou à produção de um grosso alcatrão, à medida que a casca resinosa era desintegrada. Comparando o perfil químico entre o material produzido e aquele encontrado na ponta de lança, os pesquisadores encontraram que ambos possuíam a mesma assinatura química e que provavelmente foi esse o procedimento utilizado pelos Neandertais.
De fato, falando em uso de fogo, os Neandertais também conseguiam controlar essa fonte de energia para o aquecimento, cozimento de alimentos e proteção. Aliás, os mais antigos vestígios de alimento cozido conhecidos, descobertos em um complexo de cavernas no norte do atual Iraque há cerca de 70 mil anos, estão associados aos Neandertais (Ref.35). Vestiam roupas de peles de animais para as áreas mais frias, porém não existem evidências se as costuravam ou apenas as amarravam juntas. Essas evidências arqueológicas reforçam que essa espécie humana estava longe de ser cognitivamente primitiva.
Em um estudo publicado em 2021 no periódico Scientific Reports (Ref.30), pesquisadores do Instituto Max Planck para a Ciência da História Humana revelaram que um dente (A) encontrado na Caverna de Shukbah, localizada na Margem Ocidental Palestina, pertenceu a um Neandertal (Homo neanderthalensis) de 7 a 12 anos de idade. E o mais notável: o vestígio fóssil dessa espécie humana estava associada à ferramentas de pedra (B, pertencentes à tecnologia Levallois Nubiana (um tipo distinto e complexo de lascado de pedra) previamente associada apenas à nossa espécie (Homo sapiens). Isso reforça a ideia de que os Neandertais possuíam um potencial cognitivo similar ao nosso.
Há cerca de 50-70 mil anos, os Neandertais ocuparam a região do Levante, distanciando-se das regiões mais ao Norte da Eurásia. A presença de Neandertais na Caverna de Shukbah marca o maior avanço ao hemisfério Sul registrado até o momento por essa espécie, sugerindo uma maior capacidade de adaptação ecológica e flexibilidade comportamental do que antes pensado.
Nesse caminho, uma antiga e persistente crença sobre os Neandertais foi potencialmente derrubada em um estudo publicado em 2018 na Nature (Ref.10), explorando a frequência de traumas cranianos nessa espécie. Ao coletarem dados de estudos prévios englobando 295 crânios de Neandertais e 541 de humanos modernos de indivíduos que viveram na Eurásia entre 80 mil e 20 mil anos atrás, os pesquisadores mostraram que apenas 39 dos crânios - 14 de Neandertais e 25 de humanos modernos - mostravam sinais de danos. Em outras palavras, uma taxa de lesões em torno de 5% para ambas as espécies. Isso indica que os Neandertais não estavam expostos a mais perigo dos que os humanos modernos por supostamente estarem confrontando suas presas - como rinocerontes - mais de perto (confiando apenas na força física e armas de curto alcance), serem mais vulneráveis a ataques de carnívoros, ou estarem sempre engajados em comportamentos sociais violentos. Segundo os autores do estudo, os Neandertais provavelmente eram capazes de elaborar eficientes estratégias de caça, como conduzir grandes presas para armadilhas naturais ou via cooperação em grupo, com o intuito de diminuir as chances de lesões (1). De fato, já era um consenso no meio acadêmico que essa espécie caçava a base de emboscadas. O achado também sugere uma espécie mais pacífica e mais unida contra adversidades internas e externas (2).
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(1) E essa cooperação comunitária ia além das caçadas. Leitura recomendada: Neandertal em idade avançada parece ter sobrevivido com a ajuda dos seus amigos
(2) Relevante também mencionar que os Neandertais usavam eficientes lanças, outro fator que potencialmente reduzia os riscos de lesões durante caçadas. Um estudo publicado em 2019 no periódico Scientific Reports mostrou que as lanças usadas por Neandertais há 300 mil anos eram capazes de matar a distâncias de até 20 metros. Para saber mais, acesse: As lanças de caça dos Neandertais matavam a longa distância
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Reforçando a proposta de que os Neandertais elaboravam avançadas estratégias de caça e envolvendo grandes grupos, um estudo mais recente publicado na Science Advances (Ref.35) trouxe fortes evidências de que essa espécie humana caçava e processava presas de enormes proporções, especificamente os maiores mamíferos terrestres do Pleistoceno: elefantes extintos da espécie Palaeoloxodon antiquus, os quais rondavam a Eurásia entre 800 mil e 100 mil anos atrás. Os pesquisadores analisaram 3400 ossos pertencentes a mais de 70 indivíduos de P. antiquus - a maioria adultos machos; essa espécie tinha o dobro do tamanho dos elefantes Africanos modernos e tinham uma altura até o ombro de quase 4 metros. Os ossos haviam sido depositados em pilhas ao longo de ~300 anos, há cerca de 125 mil anos, na região hoje do centro-leste da Alemanha.
Como moradia, os Neandertais utilizavam frequentemente cavernas, mas também construíam abrigos em espaço aberto. Consumiam significativas quantidades de carnes (caça) e vegetais diversos, e existem evidências de que alguns membros da espécie também chegavam a consumir carne humana. Os mortos eram frequentemente enterrados - às vezes junto com objetos, o que pode indicar possível função cultural nessa prática -, apesar de não existir evidência conclusiva se isso era parte de um comportamento ritualístico.
Reforçando a proposta de que os Neandertais elaboravam avançadas estratégias de caça e envolvendo grandes grupos, um estudo mais recente publicado na Science Advances (Ref.35) trouxe fortes evidências de que essa espécie humana caçava e processava presas de enormes proporções, especificamente os maiores mamíferos terrestres do Pleistoceno: elefantes extintos da espécie Palaeoloxodon antiquus, os quais rondavam a Eurásia entre 800 mil e 100 mil anos atrás. Os pesquisadores analisaram 3400 ossos pertencentes a mais de 70 indivíduos de P. antiquus - a maioria adultos machos; essa espécie tinha o dobro do tamanho dos elefantes Africanos modernos e tinham uma altura até o ombro de quase 4 metros. Os ossos haviam sido depositados em pilhas ao longo de ~300 anos, há cerca de 125 mil anos, na região hoje do centro-leste da Alemanha.
Os resultados das análises mostraram que todos os ossos traziam sinais de intenso processamento via ferramentas de corte (feitas de pedra), apontando que no Último Interglacial, ao longo de >2 mil anos, a caça desses enormes elefantes fazia parte do repertório cultural dos Neandertais por várias gerações, implicando também complexa organização e um grande número de indivíduos em cooperação para caçá-los, processá-los (preparação e armazenamento de carne e gordura) e consumi-los. Um adulto macho de P. antiquus podia render até 4 toneladas de carne, suficiente para alimentar 350 pessoas por uma semana, ou 100 pessoas por um mês inteiro.
Ilustração retratando um grande grupo de Neandertais reunido para caçar, processar e comer um elefantes P. antiquus há mais de 125 mil anos. Arte: Tom Björklund/Science |
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Como moradia, os Neandertais utilizavam frequentemente cavernas, mas também construíam abrigos em espaço aberto. Consumiam significativas quantidades de carnes (caça) e vegetais diversos, e existem evidências de que alguns membros da espécie também chegavam a consumir carne humana. Os mortos eram frequentemente enterrados - às vezes junto com objetos, o que pode indicar possível função cultural nessa prática -, apesar de não existir evidência conclusiva se isso era parte de um comportamento ritualístico.
DIETA: CARNÍVOROS OU ONÍVOROS?
Além da caça de grandes e perigosas presas na Eurásia (elefantes, urso e rinocerontes), Neandertais também caçavam comumente cervídeos, bovídeos e cavalos. Embora os Neandertais também consumissem alimentos vegetais ricos em carboidratos, evidências acumuladas fortemente sugerem que esses humanos - assim como outras espécies do gênero Homo - eram, essencialmente carnívoros (3).
(3) Leitura recomendada: Humanos foram hipercarnívoros durante a maior parte da nossa linhagem evolutiva
Em um estudo publicado em 2022 na PNAS (Ref.37), pesquisadores analisaram o primeiro molar de um Neandertal, encontrado na região de Gabasa, na Espanha, que viveu durante o Paleolítico Médio. Com base na análise de isótopos de zinco (Zn) presentes no esmalte do dente, eles concluíram que o espécime pertencia a um carnívoro que não consumia o sangue das presas. Ossos quebrados de outros animais encontrados junto ao dente também indicaram que o dono do dente também consumia a medula óssea das presas. O estudo isotópico baseado na análise de Zn corrobora estudos prévios baseados em isótopos de nitrogênio (N) de outros espécimes em outras regiões também sugerindo que os Neandertais possuíam uma dieta carnívora.
HIBRIDIZAÇÕES E FLUXOS MIGRATÓRIOS
Estudos nas últimas décadas vêm mostrando que quando os humanos modernos deixaram a África, muitos perderam vários genes dos seus ancestrais africanos, especialmente quando começaram a ocupar a região hoje da Europa. Porém, tudo indica que quando nossa espécie começou a se acasalar com os Neandertais - sim, as duas espécies mantinham relações sexuais entre si, gerando descendentes férteis - vários dos genes perdidos voltaram aos nossos descendentes (ligados ao ancestral comum de ambas as espécies). A troca de genes entre as duas espécie realmente ocorreu com significativa intensidade após a saída da África, e isso inclui a descoberta que a maior parte dos Africanos hoje não carregam traços de DNA neandertal., apenas os Europeus e Asiáticos no geral. As pessoas hoje do Leste Asiático possuem maior carga genética dos Neandertais (2,3%-2,6%) do que aqueles vivendo no Oeste Asiático e na Europa (1,8%-2,4%).
Dra. Emma Pomeroy com o crânio e a cabeça reconstruídos de um Neandertal fêmea que viveu há 75 mil anos, apelidado de Shanidar Z. Mesmo o crânio dessa espécie sendo muito diferente do nosso, a aparência facial é similar, explicando talvez a forte e íntima interação inter-espécies. A reconstrução foi feita por cientistas da Universidade de Cambridge, com base em micro-CT e escaneamentos 3D dos vestígios cranianos (centenas de fragmentos ósseos) do espécime encontrados nas caverna de Shanidar, no Curdistão Iraquiano. A cabeça reconstruída foi apresentada também no recente documentário da Netflix "Segredos dos Neandertais". Referência: acesse aqui. |
Neandertais e humanos passaram, no mínimo, por dois eventos de hibridização. Um estudo publicado no periódico Genetics (Ref.25), analisando variações haplotípicas e polimorfismos de deleção, reforçou essa ideia de múltiplos eventos de introgressão, ao encontrar que populações na Eurásia possuem material genético ligado aos Neandertais das montanhas de Altai - na Sibéria - e da caverna Vindija, na atual Croácia. E, mais recentemente, através da análise genômica de 27566 habitantes da Islândia, pesquisadores detectaram de 56388 a 112709 fragmentos arcaicos únicos, com 84,5% destes associados com Neandertais de Altai ou de Vindija; 3,3% associados aos Denisovanos (Homo denisova); e 12,2% associados a uma origem arcaica desconhecida. O padrão de DNA Denisovano encontrado, segundo a conclusão do estudo (!), só poderia ter duas origens: introgressão direta com humanos ou introgressão indireta, através de hibridização prévia com Neandertais (3).
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(!) Curiosamente, o estudo - publicado na Nature (Ref.26) - também encontrou que poucos fenótipos da nossa espécie estão fortemente associados ao DNA arcaico. De 271 fenótipos testados, apenas 5 mostraram forte ligação a Neandertais, Denisovanos ou outras espécies arcaicas: alelos associados a um leve menor risco de câncer de próstata; decréscimo de hemoglobina; menor altura (1 milímetro); redução na média de hemoglobina corpuscular; e aumento no tempo de protrombina no plasma. Outra característica marcante revelada foi que as mulheres Neandertais engravidavam em idades mais avançadas do que as mulheres Homo sapiens na mesma época (habitantes da África), e que os homens Neandertais se tornavam pais mais jovens do que os homens H. sapiens.
(3) Aliás, temos evidência direta de hibridização entre essas duas espécies. Para mais informações, acesse: Descoberto humano metade Neandertal metade Denisovano
> Os eventos de introgressão impactaram mais profundamente os Neandertais do que os humanos modernos. O cromossomo Y dos Neandertais foi eventualmente substituído pelo nosso! Para mais informações, acesse: Nosso cromossomo Y substituiu o cromossomo Y dos Neandertais durante as hibridizações
> Para mais informações sobre os Denisovanos, acesse: Denisvonaos e a suruba inter-espécies na Ásia
> É incerto se os Neandertais eram monogâmicos ou poligâmicos. É sugerido que essa espécie era flexível nesse sentido, exibindo comportamentos sexuais de poligamia ou de monogamia dependendo do contexto ambiental e social (Ref.40). Durante períodos climáticos mais difíceis, acesso limitado a oportunidades de acasalamento pode ter favorecido monogamia social, com provável isolamento genético e procriação consanguínea. Quando condições climáticas eram mais favoráveis (ex.: durante interglaciais, em regiões ou estações mais quentes) com mais recursos disponíveis, maiores tamanhos populacionais entre grupos e redes sociais podem ter permitido poligamia.
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Enquanto que a maior parte dos segmentos de DNA de introgressão foram perdidos durante a linhagem evolutiva humana, parte significativa foi mantida por provavelmente oferecerem vantagens adaptativas. Inclusive, um estudo publicado em 2018 na Cell (Ref.12), sugeriu que várias sequências genéticas herdadas dos Neandertais ajudaram os humanos modernos a melhor se adaptarem na Ásia e na Europa, especialmente porque essa espécie já estava vivendo nessas regiões muito antes dos primeiros H. sapiens saírem da África. Em específico, os pesquisadores mostraram que 152 fragmentos genéticos oriundos dos Neandertais oferecem proteção contra vírus de RNA, incluindo HIV, influenza A e hepatite C.
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SENSIBILIDADE À DOR: Um estudo publicado no periódico Current Biology (Ref.27), analisando três genomas extraídos de cavernas na Croácia e na Rússia, pesquisadores encontraram que os Neandertais carregavam três mutações em um gene (SCN9A) codificante da proteína de canal de sódio NaV1.7, a qual controla o transporte sensações de dor para a medula espinhal e o cérebro. A variante Neandertal da Nav1.7 possui três aminoácidos substituídos (M932L, V991L, e D1908G) em relação à variante comum e é mais provável de ficar em um estado pronto-para-abrir. Nesse sentido, os Neandertais eram mais sensitivos a estímulos de dor do que os humanos modernos. E, analisando uma amostra da população Britânica, eles revelaram que aqueles (0,4%) que herdaram a versão Neandertal dessa proteína - durante as hibridizações dessa espécie com o H. sapiens na Eurásia - tendem a experienciar mais dor do que as outras pessoas.
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Enquanto que a maior parte dos segmentos de DNA de introgressão foram perdidos durante a linhagem evolutiva humana, parte significativa foi mantida por provavelmente oferecerem vantagens adaptativas. Inclusive, um estudo publicado em 2018 na Cell (Ref.12), sugeriu que várias sequências genéticas herdadas dos Neandertais ajudaram os humanos modernos a melhor se adaptarem na Ásia e na Europa, especialmente porque essa espécie já estava vivendo nessas regiões muito antes dos primeiros H. sapiens saírem da África. Em específico, os pesquisadores mostraram que 152 fragmentos genéticos oriundos dos Neandertais oferecem proteção contra vírus de RNA, incluindo HIV, influenza A e hepatite C.
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SENSIBILIDADE À DOR: Um estudo publicado no periódico Current Biology (Ref.27), analisando três genomas extraídos de cavernas na Croácia e na Rússia, pesquisadores encontraram que os Neandertais carregavam três mutações em um gene (SCN9A) codificante da proteína de canal de sódio NaV1.7, a qual controla o transporte sensações de dor para a medula espinhal e o cérebro. A variante Neandertal da Nav1.7 possui três aminoácidos substituídos (M932L, V991L, e D1908G) em relação à variante comum e é mais provável de ficar em um estado pronto-para-abrir. Nesse sentido, os Neandertais eram mais sensitivos a estímulos de dor do que os humanos modernos. E, analisando uma amostra da população Britânica, eles revelaram que aqueles (0,4%) que herdaram a versão Neandertal dessa proteína - durante as hibridizações dessa espécie com o H. sapiens na Eurásia - tendem a experienciar mais dor do que as outras pessoas.
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Nesse contexto de grande proximidade inter-espécies, existem também evidências fósseis de que os Neandertais ocuparam a região hoje pertencente à Israel há cerca de 40 mil anos, junto com humanos modernos, através de migrações conjuntas a partir da Europa, e com ambas as espécies associadas à cultura Aurignaciana (a qual primeiro emergiu na Europa há cerca de 43 mil anos) (Ref.22). Estabelecida ali no Levante por um curto período de tempo (~2000-3000 anos) durante o início do Paleolítico Superior, a cultura Aurignaciana (Manot Aurignaciana) desapareceu da região de forma misteriosa.
O primeiro fóssil de Neandertal foi encontrado em 1856, e, desde o século XIX, milhares de fósseis representando os vestígios de centenas de Neandertais foram recuperados de vários sítios arqueológicos na Europa e no Oriente Médio, incluindo bebês, crianças e adultos. Hoje essa é a espécie humana além do Homo sapiens mais estudada e conhecida no meio acadêmico. Modelos demográficos baseados nas evidências fósseis e arquelógicas até hoje obtidas, sugerem que a população total de Neandertais na Europa e na Ásia atingiu um máximo de 70 mil indivíduos.
Nesse sentido, as evidências arqueológicas encontradas até o momento, além de demonstrar que os Neandertais dominavam complexas estratégias para a produção de adesivos, para a caça e para a construção de ferramentas, desafiam a hipótese de que um grande número populacional é necessário para a emergência de complexos comportamentos e tecnologias. Condições adversas podem ser fatores muito mais importantes para determinar o grau de transmissão e manutenção de complexidade tecnológica, condições essas que marcavam grande parte da Europa, especialmente o clima mais frio.
EXTINÇÃO
Os Neandertais persistiram por centenas de milhares de anos em condições extremamente difíceis e compartilharam a Europa por cerca de 10 mil anos com o Homo sapiens. Porém, há aproximadamente 30-40 mil anos, os Neandertais desapareceram. Isso torna essa espécie uma das mais próximas de nós em termos filogenéticos a serem extintas, com humanos modernos e Neandertais compartilhando um ancestral comum datado em ~800 mil anos atrás. Em comparação, os chimpanzés (Pan troglodytes) divergiram do ancestral comum compartilhado com os humanos modernos há cerca de 5-7 milhões de anos.
Existem várias especulações sobre como eles foram extintos, mas nada ainda conclusivo. A principal hipótese basicamente defende que os Neandertais foram substituídos pelo Homo sapiens. Várias são as razões propostas para essa substituição, englobando motivos biológicos, sociais e/ou climáticos. Apesar de terem um nível de comportamento e de cognição comparável aos humanos modernos, antigos humanos da nossa espécie possuíam algo a mais ou estavam fazendo algo diferente para terem conseguido prevalecer na Europa e na Eurásia em geral.
Entre os fatores que podemos citar, temos:
Biológicos
- O sucesso reprodutivo e taxa de sobrevivência dos Neandertais parecem baixos quando comparado com o Homo sapiens.
- A taxa metabólica dos Neandertais parecia ser maior do que a da nossa espécie. Isso em condições de grande oferta de alimento faz pouca diferença, mas em invernos rigorosos ou condições climáticas instáveis, uma maior necessidade calórica pode trazer grandes desvantagens.
- Evidências anatômicas sugerem que os Neandertais não corriam tão bem quanto o Homo sapiens (ossos do calcanhar mais longos, indicando tendões de aquiles mais longos - tendões mais curtos armazenam mais energia e tornam-se mais eficientes na corrida). Como caçavam usando emboscadas, isso não fazia muita diferença. Mas cerca de 50 mil anos atrás, mudanças climáticas fizeram com que grande parte do Norte Europeu se transformasse em florestas para tundras, o que talvez atrapalhou as estratégias de caça dos Neandertais, forçando-os a se isolarem nas áreas florestais restantes. Enquanto isso, os humanos modernos se adaptaram bem ao novo ambiente.
- Vários estudos mostram que cerca de 40% dos vestígios ósseos de Neandertais encontrados indicavam uma condição conhecida como hipoplasia, esta a qual é causada pela falta de nutrientes na infância. A dependência de carne na dieta dos Neandertais pode tido grande impacto quando eles tentaram adaptar uma dieta mais vegetariana - a exemplo do Homo sapiens - durante um período de maior escassez de caça. Isso pode ter tido um grande impacto negativo a nível populacional.
- Analisando dados paleontológicos, grupos caçadores-coletores humanos ainda existentes e dinâmicas populacionais de primatas superiores não-humanos, como chimpanzés e bonobos, pesquisadores da Aix Marseille Université, França, publicaram uma hipótese no periódico PLOS ONE (Ref.15) defendendo um cenário onde a queda de fertilidade entre os Neandertais pode ter sido o motivo da extinção dessa espécie. Considerando uma população global total de 5000 indivíduos como 'extinção da espécie, os pesquisadores criaram um modelo computacional mostrando que dentro de 10 mil anos os Neandertais potencialmente estariam extintos caso a taxa de fertilidade das fêmeas com menos de 20 anos caísse pelo menos 2,7%. Se essa taxa caísse 8%, a extinção ocorreria dentro de 4 mil anos. Esses dois intervalos de tempo coincidem com os extremos do intervalo estimado de drástico declínio populacional dessa espécie até a eventual extinção. Se a redução na taxa de fertilidade de 2,7% fosse acompanhada de uma diminuição de apenas 0,4% na taxa de sobrevivência de bebês com menos de 1 ano de idade, a espécie estaria definitivamente extinta em 10 mil anos.
- Um estudo mais recente publicado na Nature Communications propôs que a disseminação de doenças trazidas pelos humanos modernos da África podem ter sido a causa da extinção dos Neandertais e, paradoxalmente, também explicar o porquê de termos convivido tanto tempo com eles na região do Levante durante o primeiro contato inter-espécies. Para saber mais, acesse: Nossas doenças podem ter extinto os Neandertais.
Sociais e comportamentais
- A organização sócio-cultural dos neandertais pode não ter avançado muito, ao contrário da complexa organização sócio-cultural do Homo sapiens, tornando-os menos capazes de formarem grupos fortes e grandes. Um número de evidências arqueológicas e biológicas sugere que eles de fato tendiam a se isolar em pequenos grupos. Suportando essa especulação, um estudo publicado na PNAS (Ref.23), analisando 257 pegadas fossilizadas de Neandertais na região de Le Rozel (Normandia, França) - datados em ~80 mil anos atrás -, concluiu que o grupo associado era pequeno (10-13 indivíduos), constituído por indivíduos de diferentes faixas de idade (o mais novo com 2 anos de idade), mas composto em sua maioria por crianças e adolescentes.
- Múltiplas evidências fortemente sugerem que os Neandertais na Sibéria viviam em grupos pequenos e isolados. Podemos citar um estudo publicado na PNAS (Ref.29), onde pesquisadores analisaram em detalhes o DNA extraído de vestígios ósseos de um Neandertal na Caverna de Chagyrskaya, nas Montanhas de Altai, Rússia. As análises genômicas mostraram que era uma fêmea que viveu há 60-80 mil anos, e que provavelmente viva em pequenos grupos de menos do que 60 indivíduos. Essa última conclusão é baseada no fato de que 12,9% do seu genoma é expandido por regiões homozigóticas que possuem entre 2,5 e 10 centiMorgais (cM) de comprimento. Os pesquisadores encontraram também que o DNA era mais próximo relacionado a Neandertais da Croácia do que de outros Neandertais Siberianos, indicando que as populações de Neandertais do Ocidente em algum ponto substituíram as populações na Sibéria. Em um estudo de 2022 publicado na Nature (Ref.34), analisando DNA antigo de uma comunidade de Neandertais associada com as Cavernas Chagyrskaya e Okladnikov, também na Sibéria, pesquisadores reforçaram que os Neandertais nessa região pareciam viver em grupos pequenos e isolados de 10-20 indivíduos (Ref.35).
Nesse contexto de grande proximidade inter-espécies, existem também evidências fósseis de que os Neandertais ocuparam a região hoje pertencente à Israel há cerca de 40 mil anos, junto com humanos modernos, através de migrações conjuntas a partir da Europa, e com ambas as espécies associadas à cultura Aurignaciana (a qual primeiro emergiu na Europa há cerca de 43 mil anos) (Ref.22). Estabelecida ali no Levante por um curto período de tempo (~2000-3000 anos) durante o início do Paleolítico Superior, a cultura Aurignaciana (Manot Aurignaciana) desapareceu da região de forma misteriosa.
O primeiro fóssil de Neandertal foi encontrado em 1856, e, desde o século XIX, milhares de fósseis representando os vestígios de centenas de Neandertais foram recuperados de vários sítios arqueológicos na Europa e no Oriente Médio, incluindo bebês, crianças e adultos. Hoje essa é a espécie humana além do Homo sapiens mais estudada e conhecida no meio acadêmico. Modelos demográficos baseados nas evidências fósseis e arquelógicas até hoje obtidas, sugerem que a população total de Neandertais na Europa e na Ásia atingiu um máximo de 70 mil indivíduos.
Nesse sentido, as evidências arqueológicas encontradas até o momento, além de demonstrar que os Neandertais dominavam complexas estratégias para a produção de adesivos, para a caça e para a construção de ferramentas, desafiam a hipótese de que um grande número populacional é necessário para a emergência de complexos comportamentos e tecnologias. Condições adversas podem ser fatores muito mais importantes para determinar o grau de transmissão e manutenção de complexidade tecnológica, condições essas que marcavam grande parte da Europa, especialmente o clima mais frio.
EXTINÇÃO
Os Neandertais persistiram por centenas de milhares de anos em condições extremamente difíceis e compartilharam a Europa por cerca de 10 mil anos com o Homo sapiens. Porém, há aproximadamente 30-40 mil anos, os Neandertais desapareceram. Isso torna essa espécie uma das mais próximas de nós em termos filogenéticos a serem extintas, com humanos modernos e Neandertais compartilhando um ancestral comum datado em ~800 mil anos atrás. Em comparação, os chimpanzés (Pan troglodytes) divergiram do ancestral comum compartilhado com os humanos modernos há cerca de 5-7 milhões de anos.
Existem várias especulações sobre como eles foram extintos, mas nada ainda conclusivo. A principal hipótese basicamente defende que os Neandertais foram substituídos pelo Homo sapiens. Várias são as razões propostas para essa substituição, englobando motivos biológicos, sociais e/ou climáticos. Apesar de terem um nível de comportamento e de cognição comparável aos humanos modernos, antigos humanos da nossa espécie possuíam algo a mais ou estavam fazendo algo diferente para terem conseguido prevalecer na Europa e na Eurásia em geral.
Entre os fatores que podemos citar, temos:
Biológicos
- O sucesso reprodutivo e taxa de sobrevivência dos Neandertais parecem baixos quando comparado com o Homo sapiens.
- A taxa metabólica dos Neandertais parecia ser maior do que a da nossa espécie. Isso em condições de grande oferta de alimento faz pouca diferença, mas em invernos rigorosos ou condições climáticas instáveis, uma maior necessidade calórica pode trazer grandes desvantagens.
- Evidências anatômicas sugerem que os Neandertais não corriam tão bem quanto o Homo sapiens (ossos do calcanhar mais longos, indicando tendões de aquiles mais longos - tendões mais curtos armazenam mais energia e tornam-se mais eficientes na corrida). Como caçavam usando emboscadas, isso não fazia muita diferença. Mas cerca de 50 mil anos atrás, mudanças climáticas fizeram com que grande parte do Norte Europeu se transformasse em florestas para tundras, o que talvez atrapalhou as estratégias de caça dos Neandertais, forçando-os a se isolarem nas áreas florestais restantes. Enquanto isso, os humanos modernos se adaptaram bem ao novo ambiente.
- Vários estudos mostram que cerca de 40% dos vestígios ósseos de Neandertais encontrados indicavam uma condição conhecida como hipoplasia, esta a qual é causada pela falta de nutrientes na infância. A dependência de carne na dieta dos Neandertais pode tido grande impacto quando eles tentaram adaptar uma dieta mais vegetariana - a exemplo do Homo sapiens - durante um período de maior escassez de caça. Isso pode ter tido um grande impacto negativo a nível populacional.
- Analisando dados paleontológicos, grupos caçadores-coletores humanos ainda existentes e dinâmicas populacionais de primatas superiores não-humanos, como chimpanzés e bonobos, pesquisadores da Aix Marseille Université, França, publicaram uma hipótese no periódico PLOS ONE (Ref.15) defendendo um cenário onde a queda de fertilidade entre os Neandertais pode ter sido o motivo da extinção dessa espécie. Considerando uma população global total de 5000 indivíduos como 'extinção da espécie, os pesquisadores criaram um modelo computacional mostrando que dentro de 10 mil anos os Neandertais potencialmente estariam extintos caso a taxa de fertilidade das fêmeas com menos de 20 anos caísse pelo menos 2,7%. Se essa taxa caísse 8%, a extinção ocorreria dentro de 4 mil anos. Esses dois intervalos de tempo coincidem com os extremos do intervalo estimado de drástico declínio populacional dessa espécie até a eventual extinção. Se a redução na taxa de fertilidade de 2,7% fosse acompanhada de uma diminuição de apenas 0,4% na taxa de sobrevivência de bebês com menos de 1 ano de idade, a espécie estaria definitivamente extinta em 10 mil anos.
- Um estudo mais recente publicado na Nature Communications propôs que a disseminação de doenças trazidas pelos humanos modernos da África podem ter sido a causa da extinção dos Neandertais e, paradoxalmente, também explicar o porquê de termos convivido tanto tempo com eles na região do Levante durante o primeiro contato inter-espécies. Para saber mais, acesse: Nossas doenças podem ter extinto os Neandertais.
Sociais e comportamentais
- A organização sócio-cultural dos neandertais pode não ter avançado muito, ao contrário da complexa organização sócio-cultural do Homo sapiens, tornando-os menos capazes de formarem grupos fortes e grandes. Um número de evidências arqueológicas e biológicas sugere que eles de fato tendiam a se isolar em pequenos grupos. Suportando essa especulação, um estudo publicado na PNAS (Ref.23), analisando 257 pegadas fossilizadas de Neandertais na região de Le Rozel (Normandia, França) - datados em ~80 mil anos atrás -, concluiu que o grupo associado era pequeno (10-13 indivíduos), constituído por indivíduos de diferentes faixas de idade (o mais novo com 2 anos de idade), mas composto em sua maioria por crianças e adolescentes.
- Múltiplas evidências fortemente sugerem que os Neandertais na Sibéria viviam em grupos pequenos e isolados. Podemos citar um estudo publicado na PNAS (Ref.29), onde pesquisadores analisaram em detalhes o DNA extraído de vestígios ósseos de um Neandertal na Caverna de Chagyrskaya, nas Montanhas de Altai, Rússia. As análises genômicas mostraram que era uma fêmea que viveu há 60-80 mil anos, e que provavelmente viva em pequenos grupos de menos do que 60 indivíduos. Essa última conclusão é baseada no fato de que 12,9% do seu genoma é expandido por regiões homozigóticas que possuem entre 2,5 e 10 centiMorgais (cM) de comprimento. Os pesquisadores encontraram também que o DNA era mais próximo relacionado a Neandertais da Croácia do que de outros Neandertais Siberianos, indicando que as populações de Neandertais do Ocidente em algum ponto substituíram as populações na Sibéria. Em um estudo de 2022 publicado na Nature (Ref.34), analisando DNA antigo de uma comunidade de Neandertais associada com as Cavernas Chagyrskaya e Okladnikov, também na Sibéria, pesquisadores reforçaram que os Neandertais nessa região pareciam viver em grupos pequenos e isolados de 10-20 indivíduos (Ref.35).
- Indo nessa mesma linha de pequenos grupos populacionais e limitada população total na Eurásia, estudos sugerem que relacionamentos consanguíneos excessivos e flutuações demográficas podem ter sido o fator decisivo de extinção, auxiliado ou não pela competição com os humanos modernos (Ref.24).
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Por outro lado, evidências mais recentes associadas às atividades de caça dos Neandertais apontam que nem sempre essa espécie se limitava a pequenos grupos, e podemos estar erroneamente criando regras a partir de exceções ou de um aparente padrão comum.
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- Neandertais podem ter tido uma limitada capacidade de fala e linguagem comparado com o Homo sapiens (algo que controversas evidências anatômicas podem reforçar, como a posição da língua na boca e a laringe diferenciadas).
- Possíveis interações violentas com os humanos modernos (conflitos que eventualmente não terminaram nada bem para os Neandertais)
Ambientais ou climáticos
- Evidências científicas sugerem que o período glacial entre cerca de 65 mil anos e 25 mil anos atrás (conhecido como OIS-3) parece ter sido de bruscas e rápidas mudanças climáticas, como profundos impactos ambientais. Humanos modernos parecem ter tido um maior capacidade plástica de adaptabilidade ambiental, o que pode ter feito toda a diferença nesse período. De fato, um estudo publicado na Nature Human Behaviour (Ref.14) argumenta que a persistência da nossa espécie em relação a outros homininis está associada com nossa alta capacidade de adaptação a diferentes nichos ecológicos, não às nossas capacidades cognitivas. Eventualmente passamos a ocupar inúmeras regiões do globo, desde desertos até alta altitudes, tornando nosso espectro populacional de resistência às mudanças climáticas e ambientais muito maior do que outras espécies do gênero Homo que conviveram conosco, como os Neandertais, os Denisovanos e o Homo erectus. Isso explica porque os Neandertais, cognitivamente tão - ou quase tão - avançados quanto os humanos modernos acabaram extintos, já que se especializaram mais nas regiões limitadas pela Eurásia e pelas médias e baixas altitudes.
- Complementando a última hipótese, um outro modo de ver os efeitos do OIS-3 é em um cenário onde todas as espécies humanas na Europa acabaram perecendo com as drásticas mudanças climáticas há cerca de 30-28 mil anos atrás. Como existiam poucos Neandertais fora da Europa, o continente se tornou o túmulo final dessa espécie. Porém, como ainda existiam muitos Homo sapiens na África, novas levas de migração dessa espécie teriam re-colonizado a Europa mais tarde. Aliás, a recente descoberta que os Britânicos há 10 mil anos possuíam pele escura pode ser até mesmo um indicativo desse cenário (Para saber mais, acesse: Cheddar Man: Os Britânicos há 10 mil anos tinham pele escura e olhos claros)
- Neandertais podem ter tido uma limitada capacidade de fala e linguagem comparado com o Homo sapiens (algo que controversas evidências anatômicas podem reforçar, como a posição da língua na boca e a laringe diferenciadas).
- Possíveis interações violentas com os humanos modernos (conflitos que eventualmente não terminaram nada bem para os Neandertais)
Ambientais ou climáticos
- Evidências científicas sugerem que o período glacial entre cerca de 65 mil anos e 25 mil anos atrás (conhecido como OIS-3) parece ter sido de bruscas e rápidas mudanças climáticas, como profundos impactos ambientais. Humanos modernos parecem ter tido um maior capacidade plástica de adaptabilidade ambiental, o que pode ter feito toda a diferença nesse período. De fato, um estudo publicado na Nature Human Behaviour (Ref.14) argumenta que a persistência da nossa espécie em relação a outros homininis está associada com nossa alta capacidade de adaptação a diferentes nichos ecológicos, não às nossas capacidades cognitivas. Eventualmente passamos a ocupar inúmeras regiões do globo, desde desertos até alta altitudes, tornando nosso espectro populacional de resistência às mudanças climáticas e ambientais muito maior do que outras espécies do gênero Homo que conviveram conosco, como os Neandertais, os Denisovanos e o Homo erectus. Isso explica porque os Neandertais, cognitivamente tão - ou quase tão - avançados quanto os humanos modernos acabaram extintos, já que se especializaram mais nas regiões limitadas pela Eurásia e pelas médias e baixas altitudes.
- Complementando a última hipótese, um outro modo de ver os efeitos do OIS-3 é em um cenário onde todas as espécies humanas na Europa acabaram perecendo com as drásticas mudanças climáticas há cerca de 30-28 mil anos atrás. Como existiam poucos Neandertais fora da Europa, o continente se tornou o túmulo final dessa espécie. Porém, como ainda existiam muitos Homo sapiens na África, novas levas de migração dessa espécie teriam re-colonizado a Europa mais tarde. Aliás, a recente descoberta que os Britânicos há 10 mil anos possuíam pele escura pode ser até mesmo um indicativo desse cenário (Para saber mais, acesse: Cheddar Man: Os Britânicos há 10 mil anos tinham pele escura e olhos claros)
- Porém, em um estudo publicado mais recentemente na Nature Ecology & Evolution (Ref.28), pesquisadores não encontraram evidência de abrupta mudança climática suportando um cenário de extinção dos Neandertais que viveram na parte oeste do Mediterrâneo. A conclusão veio após uma detalhada reconstrução paleoclimática a partir de 2700 análises de isótopos de carbono e de oxigênio em amostras de estalagmites associadas a cavernas em Apulia, Itália, e formadas entre 106 mil e 27 mil anos atrás. Segundo os pesquisadores, com um clima favorável para ambas as espécies, a alternativa mais plausível e provável é que os Neandertais foram extintos após competição direta com os tecnologicamente mais avançados Homo sapiens.
- Mais uma evidência se soma favorável ao cenário de mudanças climáticas: Três espécies humanas foram extintas por causa de mudanças climáticas, conclui estudo
Leitura complementar para mais informações sobre os Neandertais:
HUMANOS MODERNOS E NEANDERTAIS: SIMBOLISMOS
Nós somos uma jovem espécie, onde as mais recentes evidências genéticas e fósseis sugerem que o Homo sapiens emergiu no Leste da África há cerca de 300 mil anos, apenas uma fração dos estimados 6 milhões de anos desde que a linhagem dos hominídeos e dos chimpanzés/bonobos divergiram. Nesse relativo curto período de tempo, os humanos modernos se espalharam pelo globo, ultrapassando em gigantesca escala as outras espécies de primatas - incluindo humanos arcaicos -, em termos geográficos, populacionais e tecnológicos. Nosso sucesso é, em parte, devido a um conjunto de complexas características biológicas, incluindo uma otimizada estrutural cerebral, bipedalismo e modificações na morfologia craniofacial e dos membros, as quais começaram a surgir gradualmente antes mesmo da ascensão dos humanos modernos. Tais características deram sustento a grandes avanços sociais e culturais, especialmente no campo da linguagem.
Nesse sentido, talvez a principal linha divisória na evolução do Homo sapiens como uma espécie distinta dos outros humanos arcaicos foi a emergência de uma cultura artística e material simbólica. Artefatos e pinturas com um valor funcional no campo informacional representam os contornos básicos de uma linguagem e, portanto, dos aspectos fundamentais da cognição humana como a conhecemos hoje. Isso faz com que a origem do simbolismo humano seja de uma preocupação central da Paleoantropologia moderna.
Por mais de um século, as evidências científicas sugeriam que os artefatos e artes simbólicas surgiram relativamente tarde no Pleistoceno e no contexto da assim chamada revolução do Paleolítico Superior - o aparente surgimento súbito na Europa, em torno de 40 mil anos atrás, de pinturas em cavernas e pedras, figuras esculpidas, ferramentas decorativas de ossos e joias feitas de ossos, dentes, marfim, conchas ou pedras. Ou seja, algo ligado apenas aos humanos modernos, já que os Neandertais estavam já extintos nesse período, o que implica que esses últimos não eram devotados de simbolismos e possivelmente não possuíam uma linguagem.
Porém, nas últimas duas décadas, evidências vêm se acumulando discordando desse cenário. Tanto no Sul quanto no Norte da África, por exemplo, conchas marinhas perfuradas e pigmentadas (com ocre, um pigmento inorgânico de misturas de minerais amarelo-alaranjado) foram recuperadas de vários locais correspondentes à Idade da Pedra Média e datadas em mais de 70 mil anos atrás, sugerido que esses simbolismos culturais surgiram bem antes do que o pensado. Além disso, em anos recentes, esse tipo de concha 'enfeitada' foi descoberto também na caverna Cueva de los Aviones da região de Murcia, Cartagena, na Espanha, com datações por radiocarbono indicando que as conchas encontradas (marcadas com pigmentos vermelhos e amarelos) eram de 50-45 mil anos atrás. No Marroco, na Gruta dos Pombos, exemplares foram encontrados datando em torno de 82 mil anos atrás. E na Caverna de Quafzeh, em Israel, esses objetos simbólicos foram encontrados em locais correspondendo ao Paleolítico Médio e datando em cerca de 92 mil anos atrás.
De qualquer forma, em todos os exemplos citados, as datações e localizações geográficas sempre sugeriram que esses trabalhos artísticos foram todos de humanos modernos, especialmente na África. Será, então, que os Neandertais realmente não possuíam uma expressão cultural de simbolismo? Nossa espécie era única nesse quesito e, cognitivamente, muito superior aos outros humanos arcaicos?
Agora, a resposta para essas duas perguntas ganhou um sólido 'não' com a publicação de dois recentes estudos na Science.
PINTURAS NAS CAVERNAS, CONCHAS PERFURADAS E PENAS
Como já dito, a extensão de uma natureza simbólica entre os Neandertais é obscura e, até recentemente, todas as pinturas em cavernas e conchas ornamentadas têm suas autorias ligadas ao Homo sapiens. Aliás, essas expressões de arte sempre foram consideradas a maior lacuna separatória entre humanos modernos e Neandertais.
Porém, dois estudos publicados no início de 2018 - um na Science (Ref.1) e outro na Science Advances (Ref.2) - mostraram que a autoria de duas séries de trabalhos de arte descobertas na Europa foram dadas erroneamente para os humanos modernos. A primeira série é justamente as conchas perfuradas encontradas na Cueva de los Aviones. Utilizando métodos mais modernos e acurados de datação, os pesquisadores envolvidos em um dos estudos mostraram que as conchas datavam de algo em torno de 115-120 mil anos atrás, cerca de 20-40 mil anos mais antigo do que as evidências mais antigas de trabalhos artísticos simbólicos dos humanos modernos! Ou seja, até onde sabemos, os Neandertais parecem ter sido os primeiros a expressarem tais simbolismos!
Já o segundo estudo, conduzido por Hoffmann et al. e analisando três locais na Espanha que apresentam pinturas pré-históricas em cavernas, mostrou que expressões artísticas simbólicas na Ibéria datavam em mais de 64,8 mil anos atrás, no mínimo 20 mil anos antes da chegada dos humanos modernos na Europa! Usando uma técnica de datação de Urânio-Tório (datação radioativa) (2) em crostas de carbonato de cálcio (CaCO3) sobrepondo as pinturas na parede, foi possível obter idades mínimas para desenhos vermelhos na caverna de La Pasiega (Cantabria), uma gravação de mão em Maltravieso (Extremadura), e uma pintura vermelha em Ardales (Andalucía). Devido à natureza da análise via isótopos radioativos que ficaram incrustados posteriormente nas pinturas, a data dessas últimas pode ser ainda mais antiga.
Ambos os estudos são de alta qualidade, e cientistas ao redor do mundo não associados com esses trabalhos também estão concordando com os resultados (Ref.7). Por outro lado, existem ainda críticas aos resultados (!).
Leitura complementar para mais informações sobre os Neandertais:
- Enquanto nossa espécie entrava na suruba com os Neandertais, parece que acabamos ganhando deles genes que facilitam nosso ganho de barriga
- Neandertal em idade avançada parece ter sobrevivido com a ajuda dos seus amigos
- Neandertais parecem ter tido uma infância prolongada como a da nossa espécie!
- Algumas pessoas possuem um cérebro levemente Neandertal
- Suruba com outras espécies humanas nos ajudou na adaptação fora da África - Mais evidências
- Fósseis de nove Neandertais foram descobertos em uma caverna na Itália
- Cientistas sequenciam os mais antigos DNA conhecidos de humanos modernos
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HUMANOS MODERNOS E NEANDERTAIS: SIMBOLISMOS
Nós somos uma jovem espécie, onde as mais recentes evidências genéticas e fósseis sugerem que o Homo sapiens emergiu no Leste da África há cerca de 300 mil anos, apenas uma fração dos estimados 6 milhões de anos desde que a linhagem dos hominídeos e dos chimpanzés/bonobos divergiram. Nesse relativo curto período de tempo, os humanos modernos se espalharam pelo globo, ultrapassando em gigantesca escala as outras espécies de primatas - incluindo humanos arcaicos -, em termos geográficos, populacionais e tecnológicos. Nosso sucesso é, em parte, devido a um conjunto de complexas características biológicas, incluindo uma otimizada estrutural cerebral, bipedalismo e modificações na morfologia craniofacial e dos membros, as quais começaram a surgir gradualmente antes mesmo da ascensão dos humanos modernos. Tais características deram sustento a grandes avanços sociais e culturais, especialmente no campo da linguagem.
Nesse sentido, talvez a principal linha divisória na evolução do Homo sapiens como uma espécie distinta dos outros humanos arcaicos foi a emergência de uma cultura artística e material simbólica. Artefatos e pinturas com um valor funcional no campo informacional representam os contornos básicos de uma linguagem e, portanto, dos aspectos fundamentais da cognição humana como a conhecemos hoje. Isso faz com que a origem do simbolismo humano seja de uma preocupação central da Paleoantropologia moderna.
Por mais de um século, as evidências científicas sugeriam que os artefatos e artes simbólicas surgiram relativamente tarde no Pleistoceno e no contexto da assim chamada revolução do Paleolítico Superior - o aparente surgimento súbito na Europa, em torno de 40 mil anos atrás, de pinturas em cavernas e pedras, figuras esculpidas, ferramentas decorativas de ossos e joias feitas de ossos, dentes, marfim, conchas ou pedras. Ou seja, algo ligado apenas aos humanos modernos, já que os Neandertais estavam já extintos nesse período, o que implica que esses últimos não eram devotados de simbolismos e possivelmente não possuíam uma linguagem.
Porém, nas últimas duas décadas, evidências vêm se acumulando discordando desse cenário. Tanto no Sul quanto no Norte da África, por exemplo, conchas marinhas perfuradas e pigmentadas (com ocre, um pigmento inorgânico de misturas de minerais amarelo-alaranjado) foram recuperadas de vários locais correspondentes à Idade da Pedra Média e datadas em mais de 70 mil anos atrás, sugerido que esses simbolismos culturais surgiram bem antes do que o pensado. Além disso, em anos recentes, esse tipo de concha 'enfeitada' foi descoberto também na caverna Cueva de los Aviones da região de Murcia, Cartagena, na Espanha, com datações por radiocarbono indicando que as conchas encontradas (marcadas com pigmentos vermelhos e amarelos) eram de 50-45 mil anos atrás. No Marroco, na Gruta dos Pombos, exemplares foram encontrados datando em torno de 82 mil anos atrás. E na Caverna de Quafzeh, em Israel, esses objetos simbólicos foram encontrados em locais correspondendo ao Paleolítico Médio e datando em cerca de 92 mil anos atrás.
De qualquer forma, em todos os exemplos citados, as datações e localizações geográficas sempre sugeriram que esses trabalhos artísticos foram todos de humanos modernos, especialmente na África. Será, então, que os Neandertais realmente não possuíam uma expressão cultural de simbolismo? Nossa espécie era única nesse quesito e, cognitivamente, muito superior aos outros humanos arcaicos?
Agora, a resposta para essas duas perguntas ganhou um sólido 'não' com a publicação de dois recentes estudos na Science.
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PINTURAS NAS CAVERNAS, CONCHAS PERFURADAS E PENAS
Como já dito, a extensão de uma natureza simbólica entre os Neandertais é obscura e, até recentemente, todas as pinturas em cavernas e conchas ornamentadas têm suas autorias ligadas ao Homo sapiens. Aliás, essas expressões de arte sempre foram consideradas a maior lacuna separatória entre humanos modernos e Neandertais.
Porém, dois estudos publicados no início de 2018 - um na Science (Ref.1) e outro na Science Advances (Ref.2) - mostraram que a autoria de duas séries de trabalhos de arte descobertas na Europa foram dadas erroneamente para os humanos modernos. A primeira série é justamente as conchas perfuradas encontradas na Cueva de los Aviones. Utilizando métodos mais modernos e acurados de datação, os pesquisadores envolvidos em um dos estudos mostraram que as conchas datavam de algo em torno de 115-120 mil anos atrás, cerca de 20-40 mil anos mais antigo do que as evidências mais antigas de trabalhos artísticos simbólicos dos humanos modernos! Ou seja, até onde sabemos, os Neandertais parecem ter sido os primeiros a expressarem tais simbolismos!
Já o segundo estudo, conduzido por Hoffmann et al. e analisando três locais na Espanha que apresentam pinturas pré-históricas em cavernas, mostrou que expressões artísticas simbólicas na Ibéria datavam em mais de 64,8 mil anos atrás, no mínimo 20 mil anos antes da chegada dos humanos modernos na Europa! Usando uma técnica de datação de Urânio-Tório (datação radioativa) (2) em crostas de carbonato de cálcio (CaCO3) sobrepondo as pinturas na parede, foi possível obter idades mínimas para desenhos vermelhos na caverna de La Pasiega (Cantabria), uma gravação de mão em Maltravieso (Extremadura), e uma pintura vermelha em Ardales (Andalucía). Devido à natureza da análise via isótopos radioativos que ficaram incrustados posteriormente nas pinturas, a data dessas últimas pode ser ainda mais antiga.
Ambos os estudos são de alta qualidade, e cientistas ao redor do mundo não associados com esses trabalhos também estão concordando com os resultados (Ref.7). Por outro lado, existem ainda críticas aos resultados (!).
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(!) ATUALIZAÇÃO (02/06/20): Um estudo publicado no Journal of Archaeological Science (Ref.26) questionou os métodos de datação aplicados para analisar as pinturas nas paredes das cavernas Espanholas. A partir de análise da Caverna de Nerja, também na Espanha, os autores identificaram uma relação inversa entre o conteúdo de urânio nas camadas de carbonato de cálcio e a idade atribuída às pinturas, e sugeriram algum tipo de mecanismo causando a mobilidade de urânio e resultando em idades aparentes mais antigas do que a real idade. O estudo se junta a críticas independentes de outros especialistas sobre a metodologia de datação de artes produzidas em cavernas Ibéricas (Ref.31). Hoffmann et al. têm rebatido essas críticas, e defendem que nenhuma convincente evidência foi apresentada até o momento para refutar as datações (Ref.32).
ATUALIZAÇÃO (07/08/21): Um estudo publicado no periódico Proceedings of the National Academy of Sciences (Ref.34) reforçou a hipótese de autoria Neandertal das pinturas na Caverna de Ardales. Usando uma série de avançadas técnicas analíticas microscópicas e espectroscópicas, os pesquisadores analisaram os pigmentos vermelhos nas paredes atribuídos a pinturas antropogênicas. Eles concluíram que os pigmentos ocre-baseados não foram depositados naturalmente, mas, sim, pintados intencionalmente por Neandertais (considerando o período de datação para as pinturas de ~65 mil anos atrás).
Além disso, variações na composição de pigmentos entre as amostras foram detectadas, correspondendo a diferentes datas de aplicação, às vezes com intervalos de vários milhares de anos. Ou seja, fica sugerido que várias gerações de Neandertais visitaram essa caverna e coloriram as grandes incrustações em fluxo ("flowstones") com pigmento avermelhado. Esse comportamento indica uma motivação para retornar à caverna e simbolicamente marcar o local, indicando um potencial exemplo de transmissão de uma tradição ao longo das gerações entre os Neandertais.
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As convincentes evidências da Cueva de los Aviones e das pinturas na Espanha fortemente sugerem que os Neandertais compartilhavam um pensamento simbólico com os humanos modernos e que, considerando a cultura material de ambos, os Neandertais e primeiros humanos modernos eram cognitivamente indistinguíveis, segundo concluíram os pesquisadores responsáveis pelos novos estudos.
Nesse sentido, a linguagem - simbólica por definição - provavelmente teve as bases da sua origem a partir de um ancestral comum aos Neandertais e aos humanos modernos, talvez há cerca de 500 mil anos. Evidências de estruturas ósseas do sistema auditório de espécimes do gênero Homo dessa época também reforçam essa hipótese, já que mostravam capacidade de captar sons linguísticos de humanos modernos. Em outras palavras, o simbolismo e a linguagem não parecem possuir exclusividade com a nossa espécie. Isso inclusive é reforçado por um recente estudo que trouxe evidências de que a linguagem, na verdade, é aprendida em um sistema cerebral usado também para vários outros propósitos e que já existia mesmo antes dos seres humanos surgirem no planeta (ratos parecem ter o mesmo sistema neural) (2).
(1) Para saber mais sobre o assunto, acesse o artigo: Como calcular a idade da Terra?
(2) O estudo é melhor detalhado em: Cientistas mostram que a linguagem é aprendida em circuitos no cérebro anteriores ao surgimento evolutivo do ser humano
PENAS, DEDOS E ADORNOS
E não são apenas conchas e pinturas, e pode ser que outras espécies humanas além dos Neandertais e humanos modernos expressavam simbolismos. Um time de arqueólogos examinando ossos fossilizados de aves - datados entre 200 e 420 mil anos atrás - encontrados na Caverna Qesem, um local paleolítico em Israel a cerca de 10 km de Tel Aviv, encontrou marcas de cortes na região das asas de uma espécie de cisne (Cygnus sp.) que só podem ter sido gerados via despenamento. Como é improvável que a espécie do gênero Homo ali presente estava se alimentando da asa dessa ave (já que praticamente não possui carne útil), fica fortemente sugerido que as penas estavam sendo usadas para adornos decorativos ou uso em rituais, ou seja, mais um provável sinal de simbolismo cultural em uma espécie humana que não a nossa (provavelmente Neandertais). Isso é reforçado pelo fato de que cisnes na região do Levante é um acontecimento não-comum, provavelmente fruto de migração aviária. Tal fator de curiosidade ter tornado essas aves ainda mais chamativas e especiais para os homininis vivendo na região.
Aliás, a presença de aves caçadas de pequeno porte e ágeis (difíceis de capturar e com baixo valor nutricional em termos quantitativos) no registro fóssil do Paleolítico já vinha há um bom tempo sendo sugerido ser uma indicação de que as penas atraentes e/ou coloridas de aves diversas estavam sendo usadas desde esse período para manifestações culturais dentro do gênero Homo. Em específico, os pesquisadores no novo estudo da Caverna Qesem - publicado no periódico Journal of Human Evolution (Ref.19) - sugerem que o uso combinado nutricional e simbólico das aves é uma característica de um novo modo de adaptação já praticada pelos homininis do Paleolítico Baixo da cultura Acheulo-Yabrudian no Levante começando há pelo menos 400 mil anos.
Nessa linha, outra interessante evidência de uso de simbolismo entre os Neandertais é o uso de dedos das garras de aves de rapina (águias, por exemplo) como adornos associados a colares de contas, brincos, entre outros. Pelo menos 23 grandes dedos dessas aves de 10 distintos locais e datados entre ~130 mil e 42 mil anos atrás, na região Sul da Europa, apresentavam traços de manipulação antrópica na forma de marcas de cortes. Argumentos sustentando o uso simbólico desses elementos são:
I. A distribuição anatômica das marcas de corte, não relacionadas com a manipulação de animais para o consumo;
II. A escassez ou completa falta de valor nutricional das partes inferiores das aves;
III. A raridade de grandes aves de rapina em certos ecossistemas;
IV. Uma analogia com marcas em falanges feitas por humanos modernos no contexto pré-histórico;
V. Comparação com o registro etnográfico.
Nesse sentido, um estudo publicado em 2020 na Science Advances (Ref.21) revelou mais um registro fóssil do primeiro dígito do pé esquerdo de uma água imperial (gênero Aquila) trazendo marcas cujos padrões - visando a retirada da garra - fortemente indicam o uso simbólico dessa parte anatômica quando somados aos argumentos acima apresentados. O osso fossilizado foi escavado na caverna Cova Foradada, na Catalunha, Espanha. Essa caverna foi ocupada ocasionalmente por espécies do gênero Homo de meados do Holoceno até o Pleistoceno Superior. A falange em específico, datada via radiocarbono, estava associada com uma camada com mais de 39 mil anos atrás, associada com a ocupação por Neandertais.
Aliás, a falta do uso de dedos de raptores entre humanos modernos Africanos no registro Paleolítico pode inclusive indicar que os Neandertais possivelmente transmitiram essa tradição para a nossa espécie após contato na Eurásia, especialmente considerando que a falange na Cova Foradada está ligada com as últimas populações de Neandertais.
As convincentes evidências da Cueva de los Aviones e das pinturas na Espanha fortemente sugerem que os Neandertais compartilhavam um pensamento simbólico com os humanos modernos e que, considerando a cultura material de ambos, os Neandertais e primeiros humanos modernos eram cognitivamente indistinguíveis, segundo concluíram os pesquisadores responsáveis pelos novos estudos.
Nesse sentido, a linguagem - simbólica por definição - provavelmente teve as bases da sua origem a partir de um ancestral comum aos Neandertais e aos humanos modernos, talvez há cerca de 500 mil anos. Evidências de estruturas ósseas do sistema auditório de espécimes do gênero Homo dessa época também reforçam essa hipótese, já que mostravam capacidade de captar sons linguísticos de humanos modernos. Em outras palavras, o simbolismo e a linguagem não parecem possuir exclusividade com a nossa espécie. Isso inclusive é reforçado por um recente estudo que trouxe evidências de que a linguagem, na verdade, é aprendida em um sistema cerebral usado também para vários outros propósitos e que já existia mesmo antes dos seres humanos surgirem no planeta (ratos parecem ter o mesmo sistema neural) (2).
(1) Para saber mais sobre o assunto, acesse o artigo: Como calcular a idade da Terra?
(2) O estudo é melhor detalhado em: Cientistas mostram que a linguagem é aprendida em circuitos no cérebro anteriores ao surgimento evolutivo do ser humano
PENAS, DEDOS E ADORNOS
E não são apenas conchas e pinturas, e pode ser que outras espécies humanas além dos Neandertais e humanos modernos expressavam simbolismos. Um time de arqueólogos examinando ossos fossilizados de aves - datados entre 200 e 420 mil anos atrás - encontrados na Caverna Qesem, um local paleolítico em Israel a cerca de 10 km de Tel Aviv, encontrou marcas de cortes na região das asas de uma espécie de cisne (Cygnus sp.) que só podem ter sido gerados via despenamento. Como é improvável que a espécie do gênero Homo ali presente estava se alimentando da asa dessa ave (já que praticamente não possui carne útil), fica fortemente sugerido que as penas estavam sendo usadas para adornos decorativos ou uso em rituais, ou seja, mais um provável sinal de simbolismo cultural em uma espécie humana que não a nossa (provavelmente Neandertais). Isso é reforçado pelo fato de que cisnes na região do Levante é um acontecimento não-comum, provavelmente fruto de migração aviária. Tal fator de curiosidade ter tornado essas aves ainda mais chamativas e especiais para os homininis vivendo na região.
Aliás, a presença de aves caçadas de pequeno porte e ágeis (difíceis de capturar e com baixo valor nutricional em termos quantitativos) no registro fóssil do Paleolítico já vinha há um bom tempo sendo sugerido ser uma indicação de que as penas atraentes e/ou coloridas de aves diversas estavam sendo usadas desde esse período para manifestações culturais dentro do gênero Homo. Em específico, os pesquisadores no novo estudo da Caverna Qesem - publicado no periódico Journal of Human Evolution (Ref.19) - sugerem que o uso combinado nutricional e simbólico das aves é uma característica de um novo modo de adaptação já praticada pelos homininis do Paleolítico Baixo da cultura Acheulo-Yabrudian no Levante começando há pelo menos 400 mil anos.
Nessa linha, outra interessante evidência de uso de simbolismo entre os Neandertais é o uso de dedos das garras de aves de rapina (águias, por exemplo) como adornos associados a colares de contas, brincos, entre outros. Pelo menos 23 grandes dedos dessas aves de 10 distintos locais e datados entre ~130 mil e 42 mil anos atrás, na região Sul da Europa, apresentavam traços de manipulação antrópica na forma de marcas de cortes. Argumentos sustentando o uso simbólico desses elementos são:
I. A distribuição anatômica das marcas de corte, não relacionadas com a manipulação de animais para o consumo;
II. A escassez ou completa falta de valor nutricional das partes inferiores das aves;
III. A raridade de grandes aves de rapina em certos ecossistemas;
IV. Uma analogia com marcas em falanges feitas por humanos modernos no contexto pré-histórico;
V. Comparação com o registro etnográfico.
Nesse sentido, um estudo publicado em 2020 na Science Advances (Ref.21) revelou mais um registro fóssil do primeiro dígito do pé esquerdo de uma água imperial (gênero Aquila) trazendo marcas cujos padrões - visando a retirada da garra - fortemente indicam o uso simbólico dessa parte anatômica quando somados aos argumentos acima apresentados. O osso fossilizado foi escavado na caverna Cova Foradada, na Catalunha, Espanha. Essa caverna foi ocupada ocasionalmente por espécies do gênero Homo de meados do Holoceno até o Pleistoceno Superior. A falange em específico, datada via radiocarbono, estava associada com uma camada com mais de 39 mil anos atrás, associada com a ocupação por Neandertais.
Aliás, a falta do uso de dedos de raptores entre humanos modernos Africanos no registro Paleolítico pode inclusive indicar que os Neandertais possivelmente transmitiram essa tradição para a nossa espécie após contato na Eurásia, especialmente considerando que a falange na Cova Foradada está ligada com as últimas populações de Neandertais.
GRAVURAS ABSTRATAS
CONCLUSÃO
Antes vistos como brutamontes dotados de pouca inteligência, décadas de pesquisas paleoarqueológicas mostraram que os Neandertais eram uma espécie com tecnologia e comportamento bastante sofisticados. E, agora, soma-se o fato que essa espécie também era capaz de fazer arte, criando simbolismos como os humanos modernos e provavelmente dotados de linguagem e mesmo potencial cognitivo. Outros homininis do gênero Homo podem também ter exibido uma sofisticação cognitiva também alta com base em evidências ainda limitadas. Tudo isso deixa uma coisa clara: não somos a única espécie especial que surgiu no planeta Terra. Aliás, se a nossa espécie chegou a ter relacionamentos sexuais com os Neandertais em significativa extensão, isso é mais uma prova que eles não eram um primata qualquer.
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> Análises de fósseis encontrados em uma caverna no sul da Grécia geraram evidências de que os humanos modernos podem ter se estabelecido temporariamente na Europa há mais de 210 mil anos. Os achados foram publicados em um estudo de 2019 na Nature (Ref.17). Os fósseis representam os vestígios das estruturas cranianas de dois indivíduos: um definitivamente Neandertal (Apidima 1) e outro que parece ser um mais arcaico Homo sapiens (Alidima 2). O Neandertal foi datado seguramente em mais de 170 mil anos (ambos usaram datação radioativa de urânio). Se análises posteriores mais precisas confirmarem a proposta de um H. sapiens, isso significa que representantes da nossa espécie se aventuraram nas terras dominadas pelos Neandertais cerca de 150 mil antes do que pensado, desaparecendo pouco tempo depois (talvez não se adaptaram ao clima mais frio, à nova oferta de alimentos, ou foram suprimidos pelos Neandertais). O H. sapiens, nesse sentido, teria retornado à Europa há cerca de 50 mil anos, estabelecendo-se de vez na região. Considerando que o H. sapiens já tinha se estabelecido no Oriente Médio há mais de 200 mil anos, não é improvável que pequenos grupos tenham decidido se aventurar mais ao noroeste da Eurásia.
No entanto, um estudo menos robusto publicado junto ao estudo da Nature (Ref.18) sugeriu que ambos os crânios representam uma população transicional entre Homo erectus Europeus e Neandertais.
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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
Em um estudo publicado recentemente no periódico PLOS One (Ref.38), pesquisadores confirmaram gravuras abstratas feitas por Neandertais. Arte abstrata são um forte indicativo de simbolismo.
As gravuras (fotos abaixo) estavam nas paredes da caverna La Roche-Cotard, na região central da França, datadas em 57 mil anos atrás - época de ocupação Neandertal da Europa, e não do H. sapiens. A origem antropogênica das gravuras foi determinada via evidências tafonômica, traceológica e experimental.
> As gravuras abstratas (não-figurativas) nas paredes da caverna foram provavelmente feitas com dedos, em um total de oito painéis. Nas fotos acima, três dos painéis descritos. Ref.38 |
Mais importante, a caverna foi subsequentemente selada por sedimentos durante período de glaciação, prevenindo acesso ao seu interior até sua descoberta no século XIX e primeira escavação no século XX. Essa lacração ocorreu bem antes da chegada regional do H. sapiens, algo confirmado por análise de luminescência opticamente estimulada.
Somando-se a isso, ferramentas encontradas na caverna eram de uma tecnologia (Mousteriana) associada com Neandertais.
É incerto, porém, se as gravuras representavam um pensamento simbólico dos Neandertais, mas a intenção de e método em fazê-las é clara. Nesse sentido, as gravuras se somam de forma importante a evidências prévias apontando expressão de arte simbólica por Neandertais.
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CONCLUSÃO
Antes vistos como brutamontes dotados de pouca inteligência, décadas de pesquisas paleoarqueológicas mostraram que os Neandertais eram uma espécie com tecnologia e comportamento bastante sofisticados. E, agora, soma-se o fato que essa espécie também era capaz de fazer arte, criando simbolismos como os humanos modernos e provavelmente dotados de linguagem e mesmo potencial cognitivo. Outros homininis do gênero Homo podem também ter exibido uma sofisticação cognitiva também alta com base em evidências ainda limitadas. Tudo isso deixa uma coisa clara: não somos a única espécie especial que surgiu no planeta Terra. Aliás, se a nossa espécie chegou a ter relacionamentos sexuais com os Neandertais em significativa extensão, isso é mais uma prova que eles não eram um primata qualquer.
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> Análises de fósseis encontrados em uma caverna no sul da Grécia geraram evidências de que os humanos modernos podem ter se estabelecido temporariamente na Europa há mais de 210 mil anos. Os achados foram publicados em um estudo de 2019 na Nature (Ref.17). Os fósseis representam os vestígios das estruturas cranianas de dois indivíduos: um definitivamente Neandertal (Apidima 1) e outro que parece ser um mais arcaico Homo sapiens (Alidima 2). O Neandertal foi datado seguramente em mais de 170 mil anos (ambos usaram datação radioativa de urânio). Se análises posteriores mais precisas confirmarem a proposta de um H. sapiens, isso significa que representantes da nossa espécie se aventuraram nas terras dominadas pelos Neandertais cerca de 150 mil antes do que pensado, desaparecendo pouco tempo depois (talvez não se adaptaram ao clima mais frio, à nova oferta de alimentos, ou foram suprimidos pelos Neandertais). O H. sapiens, nesse sentido, teria retornado à Europa há cerca de 50 mil anos, estabelecendo-se de vez na região. Considerando que o H. sapiens já tinha se estabelecido no Oriente Médio há mais de 200 mil anos, não é improvável que pequenos grupos tenham decidido se aventurar mais ao noroeste da Eurásia.
No entanto, um estudo menos robusto publicado junto ao estudo da Nature (Ref.18) sugeriu que ambos os crânios representam uma população transicional entre Homo erectus Europeus e Neandertais.
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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
- http://science.sciencemag.org/content/359/6378/912
- http://advances.sciencemag.org/content/4/2/eaar5255
- https://www.eva.mpg.de/neandertal/press/presskit-neandertal/pdf/PR_NIH.pdf
- https://australianmuseum.net.au/homo-neanderthalensis
- https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2860157/
- https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4031459/
- http://www.sciencemag.org/news/2018/02/europes-first-cave-artists-were-neandertals-newly-dated-paintings-show
- https://www.nature.com/articles/s41598-017-07065-3
- http://rspb.royalsocietypublishing.org/content/285/1876/20180085
- https://www.nature.com/articles/s41586-018-0696-8
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- https://advances.sciencemag.org/content/5/5/eaaw1268
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- https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0213473
- https://www.nature.com/articles/s41586-019-1376-z
- De Lumley, M. A. Les Restes Humains Anténéanderthaliens Apidima 1 et Apidima 2 (CNRS, 2019).
- https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0047248419301290
- https://www.pnas.org/content/early/2019/10/15/1907828116
- https://advances.sciencemag.org/content/5/11/eaax1984
- https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S004724841930020X
- https://www.pnas.org/content/116/39/19409
- https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0225117
- https://www.genetics.org/content/early/2020/03/31/genetics.120.303167
- https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S030544032030042X
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- https://www.nature.com/articles/s41559-020-1243-1
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