Todas as sanguessugas são hematófagas?
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Figura 1. Sanguessuga da espécie Mimobdella buettikoferi (seta) predando e engolindo uma minhoca gigante da espécie Pheretima darnleiensis. |
- Atualizado no dia 20 de junho de 2024 -
A maioria das pessoas acreditam que as sanguessugas são vermes uniformemente escuros e viscosos que se alimentam exclusivamente do sangue de mamíferos, incluindo humanos. Porém, isso passa longe da verdade, assim como a ideia também comum de que esses animais são limitados a ambientes de pântanos e afins. As sanguessugas exibem um amplo espectro de traços morfológicos, fisiológicos e comportamentais que permitem a exploração de nichos ecológicos diversos, incluindo sobrevivência em habitats extremos e três distintos modos de alimentação.
Sanguessugas são anelídeos da infraclasse Hirudinea (classe Clitellata e superordem Euhirndinea) encontrados em todos os continentes com exceção da Antártica (Ref.1). Existem cerca de 900 espécies conhecidas de sanguessugas que participam de forma importante nas teias alimentares: podem ser ectoparasitas (ou, ocasionalmente, endoparasitas) (1), predadores, hospedeiros intermediários ou finais para parasitas, vetores de parasitas (2), e também servem como alimento principal para várias espécies de peixes ao redor do mundo. Enquanto a maioria das espécies de sanguessugas habitam ecossistemas de água fresca, esses vermes também são encontrados em ambientes terrestres e marinhos. Evidência fóssil limitada e análises moleculares sugerem que a transição evolutiva de anelídeos oligoquetas para sanguessugas ocorreu em algum lugar entre o Cambriano Superior (~510 milhões de anos atrás) e o Jurássico Inferior (~210 milhões de anos atrás) (Ref.2).
Leitura recomendada:
- (1) Candiru: É verdade a história do peixe que entra no pênis humano?
- (2) Alta prevalência de tartarugas com tumores indica que praias Brasileiras estão muito poluídas, aponta estudo
Grande parte das sanguessugas se alimentam de sangue de vertebrados diversos - parasitando peixes, anfíbios, répteis e mamíferos (Fig.2) - e evidências acumuladas apontam que o hábito hematófago representa o modo ancestral de alimentação desses vermes. Nesse caminho, é provável que as primeiras sanguessugas eram hematófagas e viviam em ambiente de água fresca. Porém, múltiplas linhagens de sanguessugas perderam esse hábito alimentar e evoluíram de forma independente outros modos de alimentação. Aliás, cerca de um terço das atuais espécies descritas de sanguessugas não são hematófagas (Ref.5).
Sanguessugas são ou carnívoras ou ectoparasitas e se alimentam de uma ampla variedade de presas. Além da dieta hematófaga, sanguessugas exibem desde macrofagia (ex.: predação de invertebrados como minhocas) até especialização em fluidos (ex.: sugam fluidos corporais ou tecidos moles de invertebrados, principalmente moluscos e oligoquetas). Biologicamente, esses anelídeos podem ser descritos como "anelídeos com sugadores" e agrupados em três principais grupos (Ref.7):
- Hirudiniformes, compreendendo sanguessugas mandibuladas, as quais usam estruturas dentadas na boca para lesionar o corpo do hospedeiro (ex.: pele) e ingerir fluídos corporais (ex.: sangue);
-Rhynchobdellida, compreendendo sanguessugas sem mandíbulas, as quais usam uma probóscide para tipicamente penetrar o corpo do hospedeiro (!) e ingerir fluidos corporais;
- e Erpobdelliformes, compreendendo sanguessugas sem mandíbulas que engolem o alimento.
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Figura 5. Espécie Haementeria ghilianii no braço de um humano adulto, uma das maiores sanguessugas conhecidas. Essa sanguessuga é hematófaga, mas usa uma longa probóscide (até 10 cm de comprimento) para perfurar a pele e sugar o sangue de mamíferos hospedeiros. Habitando regiões costeiras na Guiana Francesa e os estados do Pará e do Amazonas no Brasil, essa espécie quando adulta pode alcançar 50 cm de comprimento e ultrapassar 80 g de massa corporal. Ref.9 |
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(!) Importante mencionar que existem sanguessugas com probóscide capazes de ingerir organismos inteiros. Um exemplo é o gênero Alboglossiphonia, cujos membros exibem uma estrutura esofágica intermediaria entre sanguessugas macrófagas e aquelas que ingerem fluidos: na fase juvenil se alimentam como outras sanguessugas que sugam fluido e, na fase adulta, ingerem presas inteiras. Ref.7
> Sanguessugas predadoras se alimentam frequentemente (a cada ~3 dias) e crescem de forma contínua. Em contraste, sanguessugas hematófagas se alimentam de forma infrequente e, como resultado, são caracterizadas por crescimento em saltos. Ref.8
> Certas espécies de sanguessugas predadoras, como a Macrobdella decora, podem se alimentar de ovos de anuros e mesmo de girinos e jovens anuros pós-metamorfose completa. Ovos de peixes também são explorados. Ref.11
> Sanguessugas exploram diferentes estímulos que sinalizam a presença de um potencial hospedeiro ou presa nos arredores, incluindo movimentos do substrato, vibrações no solo, perturbações na água, correntes de ar, mudanças de luminosidade, entre outras pistas sensoriais. Sanguessugas possuem três principais estruturas sensoriais para esse fim: fotorreceptores (no caso, representados por pequenos olhos simples), sensilas (receptores para pistas químicas no ar e na água) e receptores mecânicos (percepção de sons e vibrações). Algumas sanguessugas (ex.: Ceratobdella quadricornuta) exibem "tentáculos" ao redor do sugador oral, aparentemente estruturas sensoriais. Ref.12
> Recentemente, pesquisadores confirmaram que existe pelo menos uma espécie de sanguessuga que pula: Chtonobdella fallax, a qual é comumente encontrada em Madagascar. Análise de registro em vídeo (acesse aqui) trouxe evidência conclusiva nesse sentido, uma questão que vem sendo debatida há mais de um século na comunidade científica. Até o momento, existiam apenas relatos e registros anedóticos de sanguessugas pulando nas pessoas para parasitá-las, e acumulados desde pelo menos o século XIV, mas sem comprovação científica para esse alegado comportamento. Antes do pular no ar, a sanguessuga C. fallax recolhe o corpo como uma cobra pronta para o bote, acumulando energia elástica. Essa habilidade parece ser frequentemente usada por essa espécie, mas ainda é incerto se é usada para alcançar potenciais hospedeiros. Ref.19-20
> Sanguessugas são hermafroditas - presença dos órgãos masculino e feminino no mesmo indivíduo -mas com considerável variabilidade na estratégia reprodutiva e no ciclo de vida. Iteroparidade, semelparidade, protandria e hermafrodismo simultâneo podem ocorrer. Apesar da ocorrência de autofertilização - particularmente dentro da família Glossiphoniidae -, fertilização cruzada é mais comum e ocorre seja através da implantação de espermatóforos na parede corporal por um ou ambos membros do par copulatório seja pela introdução direta de espermatozoides no poro genital do parceiro através de um pênis - esse último caso ocorrendo na família Hirundinidae. Longevidade pode variar de <1 ano até múltiplos anos. Ref.18
Curiosidade: Sanguessugas tipicamente secretam um casulo protetor para acomodar os ovos [zigotos] depositados, cimentando-o em um substrato duro (ex.: pedra) ou enterrando-o em um substrato mole. Porém, cuidado parental é também observado nesses anelídeos, e todos os membros da família Glossiphoniidae (sanguessugas equipadas com probóscide) possuem o hábito de proteger os ovos e os filhotes - mantendo a prole anexada na superfície ventral do corpo por tempo variado. E, dentro dessa família, o gênero Helobdella além de proteger também alimenta os filhotes. E os casos mais extremos de cuidado parental são representados por duas espécies conhecidas como "sanguessugas cangurus": Marsupiobdella africana da África do Sul e Maiabdella batracophila da América do Sul. Essas duas espécies não produzem casulos e exibem uma bolsa interna ou marsúpio onde os ovos e a prole ficam protegidos! O marsúpio evoluiu de forma independente e convergente nas duas espécies.
> Casulos isolados de todas as sanguessugas aquáticas são rapidamente destruídos por predadores, primariamente caracóis aquáticos. É sugerido que predação nesse contexto fomentou a evolução de cuidado parental nesses anelídeos.
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REFERÊNCIAS
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- Kuo & Lai (2018). On the origin of leeches by evolution of development. DGD, Volume 61, Issue 1, Pages 43-57. https://doi.org/10.1111/dgd.12573
- Carle et al. (2022). Recent evolution of ancient Arctic leech relatives: systematics of Acanthobdellida, Zoological Journal of the Linnean Society, Volume 196, Issue 1, Pages 149–168. https://doi.org/10.1093/zoolinnean/zlac006
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- Iwama et al. (2021). The Origin and Evolution of Antistasin-like Proteins in Leeches (Hirudinida, Clitellata), Genome Biology and Evolution, Volume 13, Issue 1, evaa242. https://doi.org/10.1093/gbe/evaa242
- Kvist et al. (2020). Draft genome of the European medicinal leech Hirudo medicinalis (Annelida, Clitellata, Hirudiniformes) with emphasis on anticoagulants. Scientific Reports 10, 9885. https://doi.org/10.1038/s41598-020-66749-5
- Kwak et al. (2020). Behavioral variation according to feeding organ diversification in glossiphoniid leeches (Phylum: Annelida). Scientific Reports 11, 10940. https://doi.org/10.1038/s41598-021-90421-1
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- https://www.science.org/content/article/meet-the-worlds-first-known-jumping-leech-if-you-dare