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O que é a Síndrome Antissintetase?

Figura 1. Mãos direita (A) e esquerda (B) do paciente 

- Atualizado no dia 1 de julho de 2025 - 

         Um homem de 37 anos apresentou-se ao ambulatório de uma clínica de reumatologia, em Cleavand, EUA, com um histórico de um mês de uma pele dolorida, espessada e rachada na ponta dos dedos (Fig.1). Ele reportou ter febres intermitentes de baixa intensidade e também dificuldade para se levantar de uma cadeira e levantar seus braços acima da sua cabeça. Exame médico foi notável em identificar fraqueza dos músculos proximais nas regiões dos quadris e ombros. Pele espessada, hiperqueratósica, escamosa e fissurada era visível nas pontas e lados dos dedos tanto na mão direita quanto na mão esquerda, uma manifestação chamada de "mãos de mecânico".


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          Análises laboratoriais mostraram que o nível de creatina cinase estava acima de 20000 U por litro (nível de referência: 51 a 298). Testes para anticorpos antinucleares e fator de reumatoide deram negativo, mas testes para os anticorpos anti-Jo-1 (Anti-Histidil-tRNA Sintetase) e anti-SSA (Ro-52) deram positivo. Tomografia computacional de alta resolução dos pulmões revelou opacidades vítreas periféricas lobo-inferior-predominantes, reticulação subpleurais e tração de bronquiectasia, achados que são característicos de doença pulmonar intersticial. Nesse sentido, um diagnóstico de Síndrome Antissintetase - um tipo de miopatia idiopática inflamatória - foi feito.

           Após 1 mês de tratamento com prednisona oral (60 mg/dia) e azatioprina (150 mg/dia), a "mão de mecânico" do paciente se resolveu e a doença intersticial pulmonar foi tratada com sucesso. Após a redução na dose do glucocorticoide, o tratamento com rituximab intravenoso a cada 6 meses foi iniciado, e desde então o paciente permaneceu livre de sintomas.

          O caso foi reportado e descrito no periódico The New England Journal of Medicine (Ref.1).


   SÍNDROME ANTISSINTETASE

           A Síndrome Antissintetase (SAS) é uma condição crônica autoimune que afeta os músculos e várias outras partes do corpo. Os sinais e sintomas podem variar mas geralmente incluem inflamação muscular (miosite), febre, perda de apetite, perda de peso, poliartrite (inflamação de várias articulações), doença pulmonar intersticial (causando dificuldade respiratória, tosse e/ou disfagia), espessamento e rachaduras das mãos ("mãos de mecânico"), e fenômeno de Raynaud (1). 

          Poliartralgia e poliartrite são as manifestações articulares mais comuns da SAS, observadas em 58-70% dos pacientes. O fenômeno de Raynaud afeta mais da metade dos pacientes, e pode ser grave em alguns casos, levando a úlceras digitais. Doença pulmonar intersticial - caracterizada por inflamação e/ou cicatrizes no espaço intersticial dos pulmões (tecido entre os alvéolos) - é provavelmente a apresentação clínica mais comum, presente em 51-100% dos casos.

            A causa exata dessa síndrome é desconhecida, no entanto envolve a produção de autoanticorpos (anticorpos que atacam células normais ou outros componentes do próprio corpo) contra enzimas no corpo chamadas de aminoacilas-tRNA sintetases (aaRS ou ARS). Essas sintetases são enzimas intracelulares que catalisam a ligação entre um aminoácido e sua molécula de tRNA correspondente, ou seja, atuam de forma crítica na síntese proteica do maquinário celular (2). O tRNA transporta aminoácidos para serem incorporados em sequências de peptídeos ou proteínas. Existe uma enzima ARS específica para cada aminoácido a ser transportado, e diferentes autoanticorpos observados na SAS possuem diferentes sintetases como alvos. Por exemplo, o anticorpo anti-Jo1 ataca a sintetase de histidil-tRNA (aminoácido: histidina), e o anticorpo anti-PL12 ataca a sintetase alanil-tRNA (aminoácido: alanina).

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> O autoanticorpo anti-Jo1 é o mais comum nos casos de SAS, presente em até 72% dos pacientes. Ref.6

> Até o momento, 10 autoanticorpos distintos contra ARSs têm sido identificados em pacientes com SAS. Mas considerando que existem 20 ARSs, é provável que outros tipos mais raros existam. Ref.10

Embora a presença de autoanticorpos contra enzimas ARS seja a característica mais notável nos casos de SAS, não é ainda totalmente esclarecido como a ação desses autoanticorpos contribui para a patogênese da síndrome. Ref.8

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          No geral, a síndrome é pensada de emergir em pessoas geneticamente suscetíveis no contexto de ativação crônica do sistema imune (ex.: resposta a infecções virais) e exposição a fatores ambientais.

          A característica sorológica (análise sanguínea) diferencial da SAS são justamente os autoanticorpos contra as sintetases de tRNA. Nesse sentido, um critério proposto para diagnóstico é a identificação de anticorpos antisintetase no paciente e um ou mais dos seguintes achados:

- miosite;

- doença pulmonar intersticial;

- febre inexplicável e persistente;

- erupções cutâneas inflamatórias;

- envolvimento articular (ex.: artrite);

- fenômeno de Raynaud;

- hipertensão pulmonar;

- mãos de mecânico;


Figura 2. Em (A), paciente de 66 anos com "mãos de mecânico", caracterizada por hiperqueratose escamosa disseminada nos dedos, palmas e nas laterais das mãos. O paciente também exibia febre, doença pulmonar intersticial e autoanticorpo anti-OJ na circulação sanguínea, confirmando um quadro de síndrome de antissintetase. Em (B), mão do paciente 2 semanas após terapia com corticosteroide demonstrando dramática melhora. As mãos de mecânico - simulando dermatoses ocupacionais observadas em certas atividades manuais (ex.: mecânico, pedreiro, etc.) - podem afetar 16-21% dos pacientes com SAS. Os pés também podem manifestar um quadro similar. Ref.9

          Alguns sintomas da doença parecem variar de acordo com os autoanticorpos envolvidos (Ref.2). Por exemplo, artrite é mais comum entre pacientes com o anticorpo anti-Jo-1 Ab (Ref.4), enquanto em pacientes positivos para o anticorpo anti-Ha danos musculares representam a manifestação mais comum (Ref.7). 


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         O tratamento é baseado nos sinais e sintomas presentes em cada indivíduo afetado, e podem incluir corticosteroides, medicamentos imunossupressores, e/ou terapia física. Imunossupressores são indicados para doentes com miosite, doença pulmonar ou articular,  e incluem corticoides, metotrexato, azatioprina, micofenolato de mofetil e rituximab (RTX). O RTX - um anticorpo monoclonal quimérico que ataca os linfócitos B do corpo - parece ser particularmente efetivo no tratamento da doença pulmonar intersticial, a complicação mais severa da síndrome e a principal causa de mortalidade (Ref.5). Medicamentos que melhoram a circulação (ex.: nifedipina) são indicados para o fenômeno de Raynaud.

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 (1) O fenômeno de Raynaud (FRy), como descrito em 1862 pelo médico Maurice Raynaud, é um evento funcional geralmente benigno e uma desordem relativamente comum, e caracteriza-se por episódios reversíveis de vasoespasmos de extremidades, associados a alterações de coloração típicas que ocorrem após exposição ao frio ou em situações de estresse. Geralmente ocorre em mãos e pés e em casos mais graves pode também acometer o nariz, orelhas ou língua. As alterações de coloração são classicamente descritas em três fases sucessivas: palidez (fase isquêmica), cianose (causada por venoestase e desoxigenação) e rubor (hiperemia reativa/reperfusão). Dor e/ou parestesias podem também estar associadas aos ataques, causando desconforto ao indivíduo. Para mais informações: Por que as mãos e os pés ficam tão gelados no frio?

(2) Leitura recomendada: Cientistas "brincando de Deus": Letras artificiais no DNA

> "Mãos de mecânico" é a hiperceratose, descamação e fissura em polpas digitais e parte lateral dos dedos, mais encontrada em antissintesase e doença intersticial pulmonar.

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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMicm2026773
  2. https://rarediseases.info.nih.gov/diseases/735/antisynthetase-syndrome
  3. https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0482-50042009000100006 
  4. Marco et al. (2020). Clinical manifestations and treatment of antisynthetase syndrome. Rheumatology, Volume 34, Issue 4, 101503. https://doi.org/10.1016/j.berh.2020.101503
  5. Narváez et al. (2024). Rituximab in the treatment of progressive interstitial lung disease associated with the antisynthetase syndrome. Arthritis Research & Therapy 26, 122. https://doi.org/10.1186/s13075-024-03353-2 
  6. Nishino et al. (2023). Muscle pathology of antisynthetase syndrome according to antibody subtypes. Brain Pathology, Volume 33, Issue 4, e13155. https://doi.org/10.1111/bpa.13155
  7. Dai et al. (2024). Clinico-sero-pathological characteristics of anti-Ha antisynthetase syndrome. Brain Pathology. https://doi.org/10.1111/bpa.13319
  8. https://www.mdpi.com/1422-0067/25/8/4453
  9. Shinoda et al. (2021). Widespread Mechanic’s Hands in Antisynthetase Syndrome With Anti-OJ Antibody. The Journal of Rheumatology, 48 (8) 1341. https://doi.org/10.3899/jrheum.201043
  10. Zanframundo et al. (2025). The role of multicriteria decision analysis in the development of candidate classification criteria for antisynthetase syndrome: analysis from the CLASS project. Annals of the Rheumatic Diseases. https://doi.org/10.1016/j.ard.2025.01.050