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Por que a cabeça da Cachalote é tão grande?


- Atualizado no dia 1 de março de 2023 -

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           A Cachalote (Physeter macrocephalus) é a maior das "baleias" dentadas (Odontoceti) e o maior dos predadores com dentes do planeta, sendo encontrada nos mares do mundo inteiro. Em idade adulta, os machos podem alcançar 16 metros de comprimento - mas com registros históricos de indivíduos com até ~20 metros -, com uma massa somando até 45 toneladas (Ref.13) (1). Uma das suas características mais marcantes é a sua enorme cabeça razoavelmente retangular, a qual pode compor entre um quarto e um terço do comprimento desse mamífero! Ainda hoje não é totalmente esclarecido o espectro de funcionalidade essa notável parte anatômica das cachalotes - basicamente um "nariz muito inchado" -, mas existe uma função primária cientificamente comprovada e outra, bem interessante, que pode complementar a primeira.

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          A explicação muito bem estabelecida atualmente estabelece que o enorme complexo na cabeça das cachalotes, serve para a geração de poderosos sons, na forma de cliques sonoros, os quais podem ultrapassar 235 decibéis (dB) e que estão associados aos maiores níveis sonoros instantâneos produzidos por quaisquer fontes biológicas conhecidas. Esses sons, assim como no morcego, servem para a localização espacial do animal, tanto para se movimentar quanto para capturar suas presas, incluindo capacidade de correta identificação e seleção da presa a longa distância (Ref.11). O formato dos corpos gordurosos ao redor do órgão nasal e a peculiar organização do sistema de sacos nasais para a geração de sons corroboram essa função de otimizar o poderoso biossonar. As vocalizações das cachalotes consistem quase inteiramente de cliques, apesar de alguns poucos sons de relativamente fracos "gritos" e "trombetas" serem produzidos. Os cliques são usados tanto para a busca de alimento quanto para sinalizações sociais (em situações sociais, séries estereotipadas de 3-20 cliques durante 0,2-2 segundos podem ser ouvidas) (Ref.14).

Estrutura geral da cabeça da cachalote; todas as partes acima do maxilar superior (ou mandíbula superior) estão relacionadas com a produção de sons [fortes cliques] nesses mamíferos marinhos. O massivo complexo nasal das cachalotes contém principalmente o órgão de espermacete, situado acima do maxilar superior e na frente do crânio e o qual é encapsulado em um "estojo" muscular - uma estrutura aproximadamente elipsoide feita de tecido esponjoso e preenchida com espermacete e ligada em ambas as pontas por sacos aéreos. Entre o órgão de espermacete e o maxilar superior está o "lixo" (junk), um complexo arranjamento de óleo [espermacete] e tecido conectivo.

           Mas além da produção sonora, existem outras potenciais funcionalidades complementares. É bem conhecido que as Cachalotes podem mergulhar muito fundo nos oceanos em busca de alimento. Entre lulas diversas comumente perseguidas por esses cetáceos - especialmente por machos adultos - estão a lula-gigante (gênero Architeuthis) e a lula-colossal (Mesonychoteuthis hamiltoni), ambas exibindo grandes dimensões e provavelmente dando muito trabalho para as Cachalotes (2). Nesses mergulhos, esses cetáceos normalmente se aventura em profundidades de 300 a 800 metros, mas podem ultrapassar, facilmente, os 2 mil metros. Para permanecer tempo suficiente nessa profundidade, é necessário um enorme esforço de natação caso a densidade do corpo não seja variável e continuamente compatível com a água ao redor. E a água nessas profundidades é, naturalmente, mais densa do que aquela da superfície (3) e a pressão hidrostática é intensa.

           A cabeça das Cachalotes contém uma grande massa cheia de óleo (cerca de 90%) chamada de Órgão de Espermacete. Esse óleo é uma mistura líquida de triagliceróis e ceras chamada 'espermacete', e chega a somar mais de 4 toneladas em alguns indivíduos da espécie. À temperatura normal do corpo dessa baleia (37°C), a mistura oleosa permanece líquida. A partir dos 31°C, ela começa a cristalizar, e em uma temperatura ainda mais baixa, fica sólida. No estado sólido, a densidade da mistura se torna bem maior. É comumente especulado que essa propriedade confere à Cachalote a habilidade de alterar sua densidade corporal e, com isso, permite que ela nade sem grande esforço tanto em altas profundidades quanto na superfície dos mares. Através de vários processos fisiológicos, os quais aproveitam as baixas temperaturas do fundo do mar (entre 0 e 3°C), esse cetáceo conseguiria manipular a temperatura da grande massa oleosa, solidificando-a.

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> O nome comum em inglês para as cachalotes (Sperm Whale, que pode ser traduzido como "Baleia de Esperma") parece ter resultado da errônea interpretação de baleeiros sobre a função do óleo de espermacete encontrado no massivo "nariz" desses cetáceos, ou porque o espermacete resfriado possui certa semelhança física com o esperma de mamíferos. Ref.14

> Cachalotes passam mais da metade da vida abaixo 500 metros de profundidade, explorando como principal fonte alimentar lulas de tamanho médio (~0,5 m e 1-3 kg), das quais 70-80% são de movimentação lenta. Já foi sugerido que as cachalotes usavam seus poderosos cliques sonoros para atordoar presas antes de capturá-las, mas evidências científicas acumuladas não suportam essa hipótese; o sucesso de captura de presas - entre 100 e 500 capturas diárias - está associado com o sofisticado e eficiente sonar desses cetáceos (especificamente cliques de alta frequência e baixa amplitude nos últimos estágios de captura) somado aos rápidos movimentos (>3 m/s) durante o momento final de investida. Ref.15
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            Se esse mecanismo for um real artifício utilizado pela Cachalote, isso ajudaria a justificar o porquê de uma cabeça tão gigantesca, além de explicar também o porquê de tanto espermacete dentro da estrutura craniana, complementando, em termos evolutivos (soma de benefícios adaptativos em uma única estrutura), seu sofisticado sistema acústico. De qualquer forma, existem outras hipóteses científicas complementares que também buscam auxiliar a explicação da sua grande e estranha cabeça cheia de óleo. Entre elas, podemos citar:

1. Comportamento agressivo: A grande porção de massa na cabeça das cachalotes cheia de óleo pode servir como um 'amortecedor' de choque quando machos começam a brigar entre si. Estudos de simulação mostram que isso é algo estruturalmente possível. (Ref.5)

2. Desorientação acústica de presas: O complexo sistema sonoro criado pela sua grande cabeça pode ajudar a criar poderosas e específicas frequências de sons que poderiam confundir presas (cardumes, por exemplo), facilitando a captura das mesmas. Estudos são muito inconclusivos quanto à possibilidade do próprio processo ser real entre os cetáceos da subordem Odontoceti, e evidências mais recentes não têm corroborado essa hipótese (Ref.6, 11)

3. Super Ecolocalização: Outra hipótese bem aceita diz que o sistema nasal único de produção de som da cachalote serviria como um poderoso ecolocalizador. Como já foi dito, é sabido que elas usam esse sistema para se guiarem nos mares, mas, por exemplo, é desconhecido como elas conseguem ser predadores tão vorazes e ter tanto sucesso de captura das presas com sua cabeça e mandíbula tão 'deformadas' e estranhamente desproporcionais. Assim, o ecolocalizador, que funciona em cliques de alta frequência, permitiria uma localização exata da presa e compensaria a boca atrofiada. Toda a gigantesca e complexa estrutura da cabeça serviria para dar base ao seu estupendo sistema sonoro (Ref.7). Evidências mais recentes corroboram essa hipótese (Ref.11).
 
Mandíbula/boca muito desproporcional e possuindo uma forma bem "esquisita".

4. Competição sexual:
Estudos mostram que os machos costumam ter cabeças bem maiores do que as fêmeas, e que estas crescem em uma maior progressão ao longo da vida dos machos. Isso pode  indicar que a gigantesca cabeça é outro exemplo de dismorfia sexual, utilizada para as competições por fêmeas (as cachalotes machos com a maior cabeça, conseguiriam mais facilmente parceiras sexuais). Embora uma hipótese bem menos estudada e citada, existem evidências para baseá-la, mesmo que limitadas. (Ref.8)

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            Infelizmente, o espermacete acabou sendo também o fator principal da caça excessiva a esse cetáceo entre os séculos XVII e XX. Seu óleo era muito apreciado como um combustível e lubrificante, valendo enormes somas de dinheiro no mercado. Isso impulsionou uma chacina baleeira em cima desses animais, a qual foi muito bem retratada no famoso livro Moby Dick. Hoje, o animal encontra-se em estado vulnerável de conservação, tentando recuperar sua população dilacerada nos últimos séculos.


OBSERVAÇÃO: As cachalotes, apesar de serem frequentemente reconhecidas como 'baleias', não são baleias verdadeiras, estas as quais são os cetáceos pertencentes à subordem Mysticeti, como a baleia-azul. As baleias não possuem dentes, os quais foram substituídos durante a evolução desses cetáceos por cerdas bucais de filtração.

CURIOSIDADE: Apesar de menos conhecidas, a família da cachalote (Kogiidae) engloba também a cachalote-anã (Kogia sima) e a cachalote-pigmeu (Kogia breviceps), as quais alcançam um comprimento de 2 e 4 metros e uma massa de 270 e 450 kg, respectivamente. As duas espécies também possuem o órgão produtor de espermacete na cabeça importante para a produção sonora, só que muito menor do que aquele encontrado na cachalote (Ref.12).



CACHALOTES-GIGANTES: Os maiores dentes de um predador que - até onde sabemos - já existiram no planeta vêm de um gigante dos mares: a Cachalote-Gigante (Livyatan melvillei): seus dentes podiam alcançar 12 cm de diâmetro e 36 cm de comprimento! Na imagem abaixo, na parte inferior à esquerda, podemos ver o esqueleto da cabeça reconstruída de um espécime, com um comprimento de 3 m e largura de 1,9 m. É estimado que o comprimento corporal máximo alcançava 17,5 m. Ainda na imagem, na parte inferior à direita, podemos ver três dentes dessa baleia (ab e c) e a comparação com o dente de uma Cachalote moderna (d) e de uma Orca (e). Essas baleias viveram entre 12 e 13 milhões de anos atrás, compartilhando os mares do Mioceno com os Megalodons e provavelmente competindo com esses últimos por recursos alimentares (especialmente baleias de pequeno-médio porte ricas em calorias). Um Megalodon (Otodus megalodon) assustava, mas com certeza não era bobo de cruzar o caminho dessa cachalote.




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(1) As fêmeas das cachalotes são bem menores do que os machos, até 50% menores em comprimento e uma massa até 3 vezes menor.

As cachalotes exibem notável dimorfismo sexual, com os machos e fêmeas alcançando 16 e 11 metros de comprimento na fase adulta, respectivamente. Junto com as orcas (Orcinus orca), as cachalotes exibem o maior cérebro [dimensão absoluta] de qualquer animal, com uma massa média de 7,8 kg em machos maduros. Apesar de ser incerto ainda o nível cognitivo desses animais, as cachalotes exibem complexos sistemas de interação social. Ref.14

(2) As Lulas-Gigantes podem alcançar os 10 metros de comprimento, enquanto as Lulas-Colossais podem ultrapassar os 12 metros e pesar cerca de 750 quilos. Em média, ambas as espécies não ultrapassam os 5 metros, sendo os maiores moluscos conhecidos. Acredita-se que as grandes cicatrizes brancas na cabeça da Cachalote, algo bem comum nessa espécie, sejam fruto direto de combates violentos com esses gigantescos moluscos, os quais possuem garras bem afiadas nos tentáculos. Mas, até hoje, ninguém conseguiu testemunhar tais embates.

Representação artística do encontro e luta entre uma cachalote e uma lula-gigante

> Fêmeas adultas de cachalotes parecem comer principalmente lulas com massa corporal entre 0,1 e 10 kg; presas favoritas incluem os táxons Ommastrephidae, Onychoteuthidae, Gonatidae, Pholidoteuthidae, Octopoteuthidae, Histioteuthidae e Cranchiidae. Fêmeas podem também incluir na dieta a  luga-gigante (Architeuthis spp.) e a lula-jumbo (Dosidicus gigas). Machos ingerem tipicamente o mesmo espectro taxonômico de lulas, mas tendem a preferir os maiores indivíduos; adicionalmente, podem também predar a lula-colossal (Mesonychoteuthis hamiltoni) nas águas Antárticas, e são mais prováveis de ingerir presas que não são cefalópodes, como peixes. Aliás, em certas regiões de alta latitude no hemisfério norte, alimento primário de machos de cachalotes são peixes. Ref.14

(3) Ora, a água no fundo do mar, logicamente, precisa ser mais densa do que a da superfície (considerando as diferenças de temperatura e composição das duas), ou ela não estaria no fundo (o mais denso afunda, lembra?). Quanto mais fria a água marinha e mais salgada, mais densa ela fica e tende a afundar. Independente se a superfície fica mais fria e salgada por um momento, ela irá descer e compor as profundezas do mar. Esse processo é também muito importante nos ciclos marítimos, onde essa constante subida e descida de água da superfície para o fundo favorece a melhor dispersão de nutrientes para todo o oceano, sustentando toda o ecossistema marinho. Essas diferenças de temperatura/densidade também são responsáveis por grande parte dos padrões de circulação de corrente nos oceanos do mundo inteiro.
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Artigo relacionado: O covarde mercado das barbatanas de tubarões


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. Lehninger Principles of Biochemistry. David L. Nelson, Michael M. Cox. 6° Edição.
  2. http://scitation.aip.org/content/asa/journal/jasa/117/3/10.1121/1.1828501
  3. http://journals.cambridge.org/action/displayAbstract?fromPage=online&aid=10308905&fileId=S0025315414001118
  4. http://adsabs.harvard.edu/abs/2003ASAJ..114.1143M
  5. https://peerj.com/articles/1895/
  6. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/16938998
  7. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4919788/
  8. http://www.bioone.org/doi/abs/10.3106/041.038.0306
  9. https://hal.archives-ouvertes.fr/tel-03078625/
  10. https://www.degruyter.com/document/doi/10.7208/9780226183220-017/html 
  11. https://royalsocietypublishing.org/doi/abs/10.1098/rsbl.2020.0134
  12. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/B9780123735539002121
  13. Glarou et al. (2022). Estimating body mass of sperm whales from aerial photographs. Marine Mammal Science, Volume 39, Issue 1, Pages 251-273. https://doi.org/10.1111/mms.12982
  14. Whitehead, H. (2018). Sperm Whale. Encyclopedia of Marine Mammals, 919–925. https://doi.org/10.1016/B978-0-12-804327-1.00242-9
  15. Fais et al. (2016). Sperm whale predator-prey interactions involve chasing and buzzing, but no acoustic stunning. Scientific Reports 6, 28562. https://doi.org/10.1038/srep28562