"Medo de Parto": O que é Tocofobia?
Uma mulher casada de 43 anos de idade e de alto status socioeconômico apresentou-se no departamento psiquiátrico de um hospital com um histórico de 2 anos marcado por um medo mórbido de gravidez.
Esse medo teve início 2 anos após o casamento, quando ela entrou em contato com um ginecologista por causa de irregularidade menstrual. Na consulta, ela perguntou ao médico sobre as complicações envolvendo gravidez. Ao ouvir potenciais complicações como fetos deformados, mudanças indesejáveis no corpo, eclâmpsia, necessidade de cesárea e até morte, a paciente desenvolveu um medo excessivo de gravidez. Além disso, quando informada que nenhum método contraceptivo possui 100% de eficácia, ela começou a evitar contato sexual com o marido.
Após parar com qualquer atividade sexual, a paciente gradualmente desenvolveu humor triste, sentimento de desesperança, impotência e de desmerecimento, dificuldade de dormir, ataques de choro, perda de apetite e idealização suicida. Ela também começou a interagir menos com o marido, pais e outros parentes. Mesmo após intensas conversas e aconselhamento com parentes e dois obstetras, a paciente não conseguiu se livrar do medo de gravidez.
A paciente não possuía histórico prévio ou familiar de transtorno de humor, esquizofrenia, epilepsia ou dependência de drogas. Exame físico não revelou nenhuma anormalidade.
No exame mental, a paciente não mostrou exibir distúrbios de orientação ou memória. O humor dela era triste, com reduzida atividade psicomotora e fala monótona de baixo volume. Ela exibia ideais de desesperança e de desmerecimento e também sentimento de culpa e idealização suicida. Não existia nenhuma desordem formal de pensamento. Discernimento e julgamento estavam intactos.
A paciente foi diagnosticada com tocofobia acompanhada de transtorno depressivo maior.
Como tratamento inicial, os médicos prescreveram fluoxetina 20 mg uma vez ao dia e clonazepam 0,5 mg à noite e aconselhamento (incluindo educação psicológica) semanal por ~2 semanas. Porém, essa estratégia terapêutica não funcionou. A dose de fluoxetina foi aumentada para 40 mg/dia e, ao longo de 4 semanas, houve redução no medo mórbido de gravidez na paciente junto com os sintomas de depressão. A partir desse ponto, ela voltou a ter atividade sexual normal.
Após acompanhamento por 3 meses da paciente ainda sob medicação, não houve recorrência de sintomas.
O caso foi descrito e reportado em 2012 no periódico Industrial Psychiatry Journal (Ref.1).
TOCOFOBIA
Medo de parto é comum durante a gravidez e é pensado ser a razão mais comum para o requerimento de cesárea sem indicação médica. É estimado que ~14% de todas as mulheres grávidas exibem severo ou patológico medo do parto (tocofobia), e a condição pode se manifestar em mulheres sem gravidez e em homens. Na 11° revisão da Classificação Internacional de Doenças (ICD-11), tocofobia (fobia severa de parto) é classificada como um transtorno fóbico de ansiedade (Ref.2). Como o medo é de uma situação futura imaginada (gravidez ou parto) e não de uma entidade ou situação presente, um estudo de 2024 conduzido por pesquisadores Japoneses - analisando 10 casos de tocofobia - argumentou que essa condição patológica seria melhor descrita como uma "ideia supervalorizada" e não como um transtorno fóbico (Ref.3). Outros autores consideram a tocofobia como uma fobia prospectiva ou retrospectiva (Ref.4).
----------
> Tocofobia é um transtorno fóbico ansioso não especificado relacionado com o medo do ciclo gravídico-puerperal. Envolve um intenso sentimento de medo, ansiedade e pânico quando o indivíduo afetado é exposto a estímulos relacionados ao parto. Em geral, a condição é referenciada como um "medo severo de parto". Pode fazer referência - mas não necessariamente - ao medo da gravidez e não apenas do parto em mulheres que ainda não engravidaram.
> O termo tocofobia é derivado do Grego tokos (parto) e phobia (medo).
> Prevalência de tocofobia pode variar significativamente dependendo da população analisada e critérios usados para o diagnóstico. No sul do Brasil, prevalência estimada de tocofobia é de 12%. Ref.5-7
----------
A tocofobia pode ser classificada como primária ou secundária. Na tocofobia primária, a condição afeta indivíduos do sexo feminino que nunca engravidaram (nulíparas) e pode inclusive impedir gravidez. A tocofobia secundária afeta indivíduos do sexo feminino que já tiveram uma ou mais gravidezes (primíparas ou multíparas) e pode estar associada com experiências traumáticas prévias durante o parto (ex.: natimorto).
Além de morbidade psicológica pré-natal, a tocofobia está associada com taxas elevadas de depressão pós-natal, impacto no bem-estar mental do bebê, maior duração do trabalho de parto, menor peso no nascimento e prevalência aumentada (~8%) de admissão na unidade de tratamento intensivo neonatal (Ref.8). Pacientes com tocofobia podem exibir sentimentos de isolamento, culpa e vergonha, e dificuldades de preparo para o parto. É possível também desenvolvimento de insônia, pesadelos, dores de barriga, taquicardia, tensão, agitação, nervosismo e depressão com ansiedade que podem levar a ataques de pânico. Em casos extremos de tocofobia, mulheres podem buscar evitar gravidez a todo custo ou induzir um aborto. E grávidas com tocofobia tendem a escolher cesárea mesmo na inexistência de necessidade médica para o procedimento.
Alguns relatos típicos de tocofobia (Ref.4):
"Eu nunca pensei no meu medo de parto ou de dor do parto porque eu sempre foquei em ficar grávida. Mas após ficar grávida, o parto se tornou mais realístico para mim, e eu comecei a me sentir apavorada."
- Alice, grávida de 32 semanas, reportando que seu medo era mais intenso durante o primeiro trimestre quando sofreu com hiperêmese severa. Ela não conseguia parar de pesquisar informações relevantes sobre gravidez, parto e instalações médicas. Quando ela lia histórias terríveis sobre parto compartilhadas por outros na internet, o medo dela rapidamente escalava. Apesar do estado mental da paciente ter se tornando calmo quando ela se recuperou do quadro de enjoo, ela ainda continuou moderadamente com medo do parto - com o grau de intensidade flutuando ao longo da gestação. Dor no parto era sua maior preocupação.
"Dor no parto era totalmente incerto para mim. A maioria das minhas amigas diziam que o parto era extremamente doloroso, e diferente de tudo que já tinham experienciado antes."
- Sara, grávida de 31 semanas, começou a experienciar tocofobia quando ela entrou na universidade (ao redor de 19 anos de idade) ao enraizar a ideia de que parto era algo totalmente inseguro, doloroso e assustador. Esse medo se tornou muito mais forte durante a gravidez, quando ela ouviu histórias negativas sobre eventos de parto de outras pessoas. Além do seu medo de dor no parto, ela se sentia muito desconfortável ao ver profissionais de saúde usando jalecos brancos ou quando exposta a ambientes hospitalares. A paciente reportou que sua pressão sanguínea sempre aumentava enquanto estava no hospital. Ela sofria de fibromialgia e tinha medo de "todos os tipos de intervenção médica".
"Eu lembro que eu estava muito preocupada com o meu bebê durante meu primeiro parto. Foi um trabalho de parto prolongado. Eu estava com muito medo do bebê nascer fraco."
- Angelina, com um histórico de vários abortos espontâneos prévios mesmo sob tratamento de infertilidade há mais de 5 anos. Ela estava devastada pelas experiências de abortos. Ela eventualmente ficou grávida com mais de 40 anos de idade e considerou um "milagre" que essa gravidez persistiu até o terceiro trimestre. Nessa gravidez ela manifestou um medo extremo em relação a um possível natimorto e todos os tipos de risco para o bebê durante o parto.
A etiologia da tocofobia é multifacetada e complexa e o medo entre mulheres varia dependendo de características específicas. Por exemplo, uma gravidez não planejada aumenta em 2x o risco de medo severo de parto, e complicações na gravidez aumentam em ~6x a possibilidade de desenvolver tocofobia (Ref.9). Idade acima de 30 anos, baixo suporte social, fatores emocionais como ansiedade e depressão, baixa satisfação com a gravidez e falta de atividade sexual também estão associados com um risco maior para tocofobia (Ref.9). Discussões públicas cada vez mais comuns sobre violência obstétrica também podem contribuir para o desenvolvimento de tocofobia. Durante a pandemia de COVID-19, a prevalência de tocofobia parece ter aumentado significativamente (Ref.10).
----------
> Tocofobia está relacionada ao aumento do risco de desfechos obstétricos adversos, como solicitação materna de cesariana, uso de anestesia peridural parto prematuro, trabalho de parto prolongado, depressão pós-parto e estresse pós-traumático. Além disso, pode interferir negativamente no relacionamento materno-infantil após o nascimento.
> Em casos mais extremos, tocofobia pode levar ao:
- uso obsessivo de contraceptivos para prevenir gravidez;
- aborto de uma atual gravidez;
- não atendimento a consultas de pré-natal;
- transtorno de estresse pós-traumático.
-----------
Ainda não existe um tratamento específico para pessoas com tocofobia e evidências clínicas são limitadas nesse sentido. Intervenções não farmacológicas sendo recomendadas ou testadas em estudos clínicos incluem educação psicossexual e terapia cognitiva comportamental, mas com eficácia geral incerta quando comparado com cuidado de maternidade padrão (Ref.11-12). Amplo acesso a informações acuradas e precisas sobre a gravidez e o processo de parto, e intervenções terapêuticas em casos de tocofobia, podem reduzir o número de grávidas que escolhem cesárea como procedimento de parto.
> O questionário Tokophobia Severty Scale tem sido frequentemente usado para avaliar a gravidade dos sintomas da tocofobia. Desenvolvido em 2020 na Austrália, possui 13 itens e com cada questão sendo avaliada em uma escala likert de 4 pontos variando de 0 (nenhum pouco) a 3 (sempre). Os pontos são somados e as pontuações mais altas indicam níveis mais elevados de medo e ansiedade sobre gravidez e parto. Esses itens podem ser traduzidos para o português como (Ref.14):
(1) Eu me preocupo com complicações médicas durante a gestação e/ou o parto.
(2) Eu me preocupo com o tipo de parto que eu terei quando eu tiver um bebê
(3) Eu me preocupo que algo terrível aconteça comigo durante minha gestação e/ou parto
(4) Eu me preocupo que algo terrível aconteça ao meu bebê durante minha gestação e/ou parto
(5) Preocupo-me por não conseguir lidar com a dor da gravidez e/ou parto
(6) Preocupo-me com os procedimentos médicos necessários durante a gravidez e/ou parto
(7) Evito falar sobre gravidez, filhos e parto por causa dos meus medos
(8) Eu me preocupo que não estarei no controle dos procedimentos médicos durante minha gravidez e/ou parto
(9) Eu me preocupo que a gravidez e/ou o parto sejam muito dolorosos
(10) Eu verifico [checo] excessivamente para descobrir se estou grávida
(11) Tenho pesadelos sobre estar grávida e/ou parir uma criança
(12) Eu me preocupo que algo perigoso aconteça comigo durante a gravidez ou o parto (por exemplo, um útero rompido, pré-eclâmpsia, intervenções de emergência, morte)
(13) Eu me preocupo que algo perigoso aconteça com meu filho durante a gravidez ou o parto (por exemplo, lesão ou morte)
----------
> Curioso apontar um caso reportado em 2023 no periódico Frontiers in Psychiatry (Ref.23) de uma paciente grávida inicialmente diagnosticada com tocofobia mas que eventualmente se revelou um outro e raro quadro de fobia: medo de penetração vaginal. A paciente tinha pavor da ideia de algo entrando e saindo da sua vagina. E, sim, relações sexuais com penetração vaginal eram um grande desafio para a paciente e ela limitava ao máximo esse tipo de interação sexual com o seu parceiro.
-----------
Leitura recomendada:
- Parto por cesárea: Preocupante epidemia no Brasil
- O termo 'enjoo matinal' é correto para as náuseas e vômitos na gravidez?
REFERÊNCIAS
- Bhatia et al. (2012). Tokophobia, A dread of pregnancy. Industrial Psychiatry Journal, 21(2):p 158-159. https://doi.org/10.4103/0972-6748.119649
- Fairbrother et al. (2022). The Childbirth Fear Questionnaire and the Wijma Delivery Expectancy Questionnaire as Screening Tools for Specific Phobia, Fear of Childbirth. International Journal of Environmental Research and Public Health, 19(8):4647. https://doi.org/10.3390/ijerph19084647
- Kitamura et al. (2024). Tokophobia: Psychopathology and Diagnostic Consideration of Ten Cases. Healthcare 2024, 12(5), 519. https://doi.org/10.3390/healthcare12050519
- Takegata et al. (2023). Tokophobia: Case Reports and Narratives of Ten Japanese Women. Healthcare 11(5), 696. https://doi.org/10.3390/healthcare11050696
- O'Connell et al. (2017). Worldwide prevalence of tocophobia in pregnant women: systematic review and meta-analysis. AOGS, 96(8):907-920. https://doi.org/10.1111/aogs.13138
- Dal Moro et al. (2023). Fear of childbirth: prevalence and associated factors in pregnant women of a maternity hospital in southern Brazil. BMC Pregnancy Childbirth 23, 632. https://doi.org/10.1186/s12884-023-05948-0
- Assimamaw et al. (2024). Ethiopian women's tokophobia of childbirth and its predictors: a systematic review and meta-analysis. Frontiers in Global Women's Health, Volume 5. https://doi.org/10.3389/fgwh.2024.1334103
- Otorepec, I. R. (2022). Tocophobia. The Journal of Sexual Medicine, Volume 19, Issue 5, Page S226. https://doi.org/10.1016/j.jsxm.2022.03.514
- Sarella et al. (2024). Tocophobia: Risk Factors, Consequences and Management – A Systematic Review of the Literature. Maedica, 19(2):393–399. https://doi.org/10.26574/maedica.2024.19.2.393
- Kanellopoulos & Gourounti (2023). A Systematic Review of Tocophobia Rate Before and During the COVID-19 Pandemic. Maedica, 18(3):455–462. https://doi.org/10.26574/maedica.2023.18.3.455
- https://www.cochranelibrary.com/cdsr/doi/10.1002/14651858.CD013321.pub2/full
- Ben-Rafael et al. (2023). Dual-Session Tokophobia Intervention, a Novel Ultrashort Cognitive Behavioral Therapy Protocol for Women Suffering From Tokophobia in the Third Term of Pregnancy. Cognitive and Behavioral Practice, Volume 30, Issue 3, Pages 520-538. https://doi.org/10.1016/j.cbpra.2022.02.015
- Imakawa et al. (2022). É necessário avaliar o medo do parto em gestantes? Uma revisão de escopo. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, 44(7):692–700. https://doi.org/10.1055/s-0042-1751062
- FERRARI, Renata Bullio. Validação para o português brasileiro do questionário Tokophobia Severity Scale (TSS). 2024. 54 f. Dissertação (Mestrado Interdisciplinar em Ciências da Saúde) - Universidade Federal de São Paulo, Instituto de Saúde e Sociedade, Santos, 2024.
- https://www.hull.ac.uk/work-with-us/more/media-centre/news/2020/tokophobia-is-an-extreme-fear-of-childbirth-heres-how-to-recognise-and-treat-it
- Barton et al. (2024). Tokophobia—Extreme Fear of Pregnancy and Birth and Implications for Care: A Case Report. The Journal of Perinatal Education, Vol 33, Issue 1. https://doi.org/10.1891/JPE-2022-0021
- Hofberg & Brockington (2000). Tokophobia: An unreasoning dread of childbirth. British Journal of Psychiatry, 176(01), 83–85.
- Geng et al. (2023). Case report: specific phobia of vaginal penetration in a pregnant patient. Frontiers in Psychiatry, Volume 14. https://doi.org/10.3389/fpsyt.2023.1218900