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Por que alguns peixes inflam o corpo?

Figura 1. Peixe-balão-espinhoso inflado.
 

          Diodontídeos (Diodontidae) e tetraodontídeos (Tetraodontidae) são peixes da ordem Tetraodontiformes e famosamente conhecidos pela capacidade de inflar o corpo ao ingerir grande quantidade de água ou ar, aumentando em várias vezes o volume corporal. Vários outros peixes teleósteos [ósseos] são capazes de inflar o corpo, incluindo os peixes da família Chaunacidae, espécies da família Monacanthidae (ex.: gêneros Brachaluteres e Paraluteres), espécie Sufflogobius bibarbatus, espécie Hemitripterus americanus e a espécie Triodon macropterus (Triodontidae). Entre peixes cartilaginosos, temos tubarões-gato do gênero Cephaloscyllium

           A função dessa curiosa habilidade anatômica parece ser exclusivamente defensiva. Além de tornar o corpo maior e mais amedrontador, o aumento dramático de diâmetro dificulta a ingestão ou manipulação desses peixes por potenciais predadores. No vídeo abaixo, da National Geographic, é possível ver como inflar o corpo ajuda na defesa contra predadores. No caso, uma lontra tenta capturar um peixe-balão, mas sem sucesso. Mas existe sugestão de possível papel de comunicação intraespecífica. Outras hipóteses ou especulações funcionais (ex.: permitir que o peixe seja carregado pelo vento na superfície do mar quando inflado com ar) não possuem suporte científico. 

            Mecanismos e adaptações anatômicas e morfológicas para inflar o corpo variam entre esses peixes. Os diodontídeos e tetraodontídeos - comumente conhecidos como baiacus, peixes-balão ou peixes-bola - são peixes venenosos (!) e comuns na costa brasileira, e podem aumentar em até 3x o tamanho corporal ao engolir grande quantidade de água que é retida dentro do estômago. O estômago e o corpo do peixe-balão são altamente modificados para acomodar essa inflação. Mais notavelmente, a parede do estômago é fina, e sua mucosa é altamente dobrada, permitindo grande distensão durante inflação. Somando-se a isso, o estômago desses peixes não possui glândulas gástricas e secreções para digestão ácida-péptica. Em outras palavras, houve perda da função digestiva do estômago desses peixes, em prol da função defensiva.

 

Figura 2. Peixe da espécie Diodon holocanthus antes (A) e após (B) inflar; comprimento corporal: 10,2 cm. Ao engolir e prender água ou ar no estômago repetidas vezes, os peixes-balão-espinhosos (Diodontidae) inflam o corpo. A água é mantida presa na cavidade estomacal através de esfíncteres associados ao divertículo do estômago. Os diodontídeos também possuem escamas dérmicas modificadas (espinhos) que ficam eretas quando o animal fica inflado. Indivíduos inflam quando ameaçados ou quando capturados, tornando-os consideravelmente mais difíceis de serem engolidos por predadores. Ref.1


          Existem outros peixes que também inflam o corpo através de distensão do estômago com água, como a espécie Histrio histrio (família Antennariidae), família Monacanthidae (também pertencente à ordem Tetraodontiformes) e tubarões das espécies Cephaloscyllium ventriosum e Cephaloscyllium stevensi

           Porém, em meio à evolução convergente da inflação estomacal nessas diferentes linhagens de peixes, apenas na ordem Tetradontiformes houve perda da função digestiva no estômago (Ref.3). Isso enfraquece uma antiga hipótese para explicar essa perda de digestão gástrica (fenótipo agástrico): ingestão de água marinha alcalina (pH = 8) tornando acidificação ineficiente na cavidade estomacal e atuando como um fator de pressão seletiva contra a função digestiva (2). Por outro lado, é possível que a frequência de inflação observada em peixes com fenótipo gástrico seja muito menor do que aquela observada nos Tetradontiformes, reduzindo o custo para a sua manutenção. E, de fato, o baiacu parece ser o mais bem adaptado morfologicamente para inflação e exibir o mais extensivo grau de inflação.

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(1) Sucos digestivos altamente ácidos secretados por glândulas gástricas contendo ácido clorídrico (HCl) facilitam a digestão de proteínas, lise celular (liberando nutrientes de células) e servem como uma proteção imune inata contra patógenos que entram no trato digestivo. O bombeamento gástrico de prótons (H+) para a produção do meio altamente ácido é realizado por uma proteína heterodimérica codificada pelos genes ATP4A e ATP4B, altamente conservados em vertebrados. Essa proteína pode bombear prótons contra um gradiente de 160 mM. Junto com enzimas específicas (ex.: pepsina), os sucos gástricos permitiram uma grande expansão de fontes proteicas na dieta de animais diversos. 

> Perda de função digestiva do estômago ocorreu em múltiplas linhagens de animais, mais comumente em peixes ósseos, mas também em peixes cartilaginosos da subclasse Holocephali, peixes dipnoicos e mamíferos monotremos (ex.: equidnas e ornitorrincos). Potenciais fatores de pressão seletiva para a perda desse traço incluem novos hábitos alimentares, alto custo energético para os processos de digestão estomacal e a troca da função gástrica por outra função (ex.: troca gasosa).

(2) A frequente neutralização da acidez estomacal nesses peixes durante a grande ingestão de água marinha tornaria a acidificação energeticamente mais custosa, relaxando pressões seletivas para a retenção desse traço e favorecendo sua perda.

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          Nos Tetradontiformes, com exceção da família Triacanthidae, todos os peixes são capazes de produzir fortes "sopros" de água para escavar presas. Esse comportamento e estruturas morfológicas associadas são considerados um estágio intermediário para a evolução de inflação estomacal nesse grupo de peixes, envolvendo um padrão cíclico de expansão da cavidade oral para acumular água na boca seguido por uma fase compressiva onde a água é forçada para fora da boca (Ref.4). Entre outras modificações corporais para a evolução da extrema inflação nos diodontídeos e tetraodontídeos, esses peixes possuem uma pele lateral e ventral altamente extensível e ausência de costelas.  

Figura 3. Filogenia proposta para os peixes ósseos da ordem Tetraodontiformes, com aqueles capazes de inflar o corpo destacados em laranja. Vários táxons nesse grupo conseguem produzir fortes jatos de água saindo da boca (sopro de água) usados para manipular o ambiente (ex.: expor potenciais presas enterradas no solo oceânico). Comportamento de "tossida" parece ocorrer em virtualmente todos os peixes, e usado para forçar a saída de material indesejado da boca (ex.: resíduos do processamento de alimentos). Essa tossida parece ser um estágio intermediário para o sopro de água, e este último para a evolução da inflação. Ref.4-5

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> Espécies da família Molidae representam os maiores peixes ósseos conhecidos. Sugestão de leitura: Qual é o maior peixe ósseo do mundo?

> Posicionamento filogenético das diferentes famílias  na ordem Tetraodontiformes é ainda motivo de debate e evidências moleculares e morfológicas são conflitantes nesse sentido. Ref.5

> Não confundir o "sopro de água" com as "cuspidas de água" produzidas pelos peixes-arqueiros (Toxotidae). Sugestão de leitura: Qual é o peixe que cospe?

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          Como apontado na Fig.3, peixes da família Triodontidae - representados hoje por uma única espécie Triodon macropterus -, também conseguem inflar o corpo, especificamente através do recesso abdominal ventral (Ref.5). Essa espécie, quando perturbada, rotaciona o longo osso pélvico que, por sua vez, abre um leque pélvico retraído contra a parede ventral do corpo (Fig.4). A abertura do leque aumenta o tamanho aparente do peixe, intimidando potenciais predadores. A expansão abdominal dessa espécie é mais lenta e menos extrema do que nos diodontídeos e tetraodontídeos, e parece ter evoluído de forma independente em relação a esses últimos. Uma das limitações na inflação abdominal do T. macropterus é a presença de costelas nessa espécie.

 

Figura 4. Espécimes fotografados da espécie Triodon macropterus: (A) indivíduo mostrando o leque pélvico totalmente retraído e sem inflação; (B) indivíduo com o leque pélvico aberto mas sem inflamação; e (C) um indivíduo com o leque pélvico aberto e com o abdômen inflado. Ref.5

           Já peixes da família Chaunacidae (ordem Lophiiformes), habitantes de zonas profundas nos oceanos, são também capazes de inflar o corpo, mas através de enormes câmaras de ventilação nas guelras, prendendo a respiração no processo por até 4 minutos (Fig.5). A inflação dessas câmaras aumenta em até 30% o volume corporal desses peixes, tornando-os mais difíceis de serem engolidos por potenciais predadores.

 

Figura 5. Nas fotos: (aChaunax reticulatus; (bChaunax umbrinus; (cChaunaxpictus; e (dChaunacops coloratus. A família Chaunacidae engloba dois gêneros: Chaunacops e Chaunax. São peixes distribuídos ao longo de todas as águas tropicais e temperadas do oceano, habitando profundidades de 250 m até 2500 m. São predadores, e caçam através de emboscada. Passam a maior parte do tempo parados no solo oceânico, ocasionalmente nadando e andando através das nadadeiras peitorais e pélvicas. Ref.6

  

Figura 6. Redução de volume do corpo inflado após compressão de duas câmaras das guelras nas espécies (AChaunacops coloratus e (BChaunax pictus. Esses peixes inflam essas câmaras usando típica inalação ventilatória que possibilita respiração através das guelras. Ref.6

Leitura recomendada:


   (!) BAIACU E TTx

          Os baiacus são uma iguaria muito apreciada e, ao mesmo tempo, muito perigosos. A tetrodotoxina (TTx) é a principal neurotoxina encontrada nesses peixes e pode ser isolada em maiores concentrações nas vísceras (especialmente gônadas, fígado e baço) e na pele do peixe1. A TTx é termo-estável, e não sofre degradação pela cocção, lavagem ou congelamento. O peixe não produz as toxinas, apenas as armazena em alguns órgãos corporais, usando-a como defesa contra predadores. Existem várias mortes registradas de pessoas após consumo desses peixes.

  

Figura 7. - Baiacu-pinima ou pintado (Sphoeroides testudineus) capturado em Pernambuco, Brasil, e utilizados como fonte de alimentação pela população na região. Ref.7

          As manifestações neurológicas surgem em algumas horas e cursam com parestesias* periorais (sugestivas do acidente) e nas extremidades, fraqueza muscular, mialgias, vertigens, disartria, ataxia, dificuldade de marcha, distúrbios visuais e outros sintomas. Com o agravamento das manifestações neurológicas, surgem convulsões, dispneia e parada cardiorrespiratória, que pode ocorrer nas primeiras 24 horas. A sintomatologia gastrointestinal é caracterizada por náuseas, vômitos, dores abdominais e diarreia. 

            A morte pode ocorrer devido à paralisia muscular, depressão respiratória e falência circulatória. Há relato de óbito humano por bradicardia não responsiva a qualquer tratamento (bloqueio atrioventricular completo). 

          O envenenamento provocado pela ingestão de baiacus é uma das mais graves formas de intoxicação por animais aquáticos e o veneno (tetrodoxina) normalmente está em maior concentração no fígado, baço, vesícula biliar, nas gônadas e na pele, podendo provocar a morte em poucos minutos, após o consumo.

          Não há tratamento específico para os envenenamentos causados pela ingestão de baiacus. O tratamento é de suporte, fundamentalmente de apoio respiratório. Podem ser indicadas como medidas imediatas a lavagem gástrica e eméticos, mas apenas nas primeiras horas após a ingestão.

*Sugestão de leitura:


REFERÊNCIAS

  1. Brainerd, E. L. (1994). Pufferfish inflation: Functional morphology of postcranial structures inDiodon holocanthus (Tetraodontiformes). Journal of Morphology, 220(3), 243–261. https://doi.org/10.1002/jmor.1052200304
  2. Wang et al. (2015). Neural basis of the stress response in a pufferfish,Takifugu obscurus. Integrative Zoology, 10(1), 133–140. https://doi.org/10.1111/1749-4877.12103
  3. Ferreira et al. (2022). A multi-tasking stomach: functional coexistence of acid–peptic digestion and defensive body inflation in three distantly related vertebrate lineages. Biology Letters, Volume 18, Issue 2. https://doi.org/10.1098/rsbl.2021.0583
  4. Wainwright & Turingan (1997). Evolution of Pufferfish Inflation Behavior. Evolution, Volume 51, Issue 2, Pages 506–518. https://doi.org/10.1111/j.1558-5646.1997.tb02438.x
  5. Bemis et al. (2023). Pelvic-Fan Flaring and Inflation in the Three-Tooth Puffer, Triodon macropterus (Tetraodontiformes: Triodontidae), with Additional Observations on Their Behavior in Captivity. Ichthyology & Herpetology, 111 (2): 222–240. https://doi.org/10.1643/i2022022
  6. Long & Farina (2019). Enormous gill chambers of deep-sea coffinfishes (Lophiiformes: Chaunacidae) support unique ventilatory specialisations such as breath holding and extreme inflation. Journal of Fish Biology. https://doi.org/10.1111/jfb.14003
  7. Neto et al. (2010). Envenenamento fatal por baiacu (Tetrodontidae): relato de um caso em criança. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, 43(1):92-94. https://doi.org/10.1590/S0037-86822010000100020