Por que não existem peixes marinhos vivendo em profundidades abaixo de 8400 metros?
- Atualizado no dia 26 de julho de 2023 -
Todos os organismos marinhos são verticalmente limitados dentro de distintos estratos batimétricos. Os fatores que determinam as limitações incluem temperatura, pressão, salinidade, nível de oxigênio e oferta de nutrientes, os quais são frequentemente covariantes. A coluna de água no mar profundo (>200 metros de profundidade) é escura, rica em nutrientes inorgânicos e tipicamente muito fria (0-4°C) e, em especial, com a pressão hidrostática aumentando de forma robusta com o aumento da profundidade.
A pressão hidrostática no mar aumenta cerca de 10 atm (cerca de 1MPa) para cada 100 metros, alcançando ~1000 atm ou 100 MPa no ambiente marinho mais profundo, conhecido como zona hadal (6000-11000 m, primariamente nas fossas tectônicas) (Fig.1). Como comparação, ao nível do mar no ambiente terrestre, a pressão atmosférica (peso da coluna de ar sobre uma área) é de 1 atm, ou seja, pressão máxima à qual os animais terrestres, como humanos, estão submetidos. A densidade muito inferior do ar atmosférico em comparação com a água líquida impõe uma pressão várias vezes menor mesmo quando comparado com profundidades de poucas dezenas de metros no mar (Fig.2). Em profundidades de milhares de metros, nosso corpo simplesmente não consegue suportar a enorme pressão hidrostática imposta, com letal e instantânea compressão de várias estruturas corporais, especialmente a cavidade torácica.
Porém, apesar de pressões hidrostáticas intensas, vida marinha é abundante no mar profundo, inclusive organismos complexos como peixes e outros animais diversos na zona hadal. Compreendendo as zonas mesopelágica (200-1000 m), batipelágica (1000-4000 m), abissopelágica (4000-6000 m) e hadopelágica (>6000 m), o ecossistema do oceano profundo está distribuído em um volume de ~1,3 x 109 km3, representa o maior habitat na biosfera e sustenta aproximadamente 70% da biomassa procariótica oceânica (Ref.3). Na zona hadal, a abundância de células microbianas permanece relativamente constante em ~6 x 103 células/mL, apenas com um leve declínio com o aumento de profundidade (Ref.4). Em zonas abaixo de 1000 metros, onde o ambiente é completamente afótico e a única fonte de luz é bioluminescente, existem centenas de espécies descritas de peixes (Fig.4) (1). Mesmo nas zonas hadais, temos inúmeras espécies de crustáceos, equinodermos, moluscos e vários outros animais bênticos de considerável porte e estranhas formas (Fig.5). E já foi reportada presença do peixe Hirundichthys speculiger nadando em profundidades de até 10400 m (Ref.5) (Fig.6).
(1) Leitura recomendada:
- Flagrada transição evolutiva caracterizando um novo tipo de simbiose
- Esses peixes marinhos possuem uma pele ultra-preta que absorve quase 100% da luz
Figura 5. Espécies encontradas no sul da Fossa das Marianas, Oceano Pacífico, região mais profunda dos oceanos e onde profundidades alcançam aproximadamente 11000 metros: (A) Cnidária; (B-C, F) Poliquetas; (D) Anfípode; (E, G-H) Pepinos-do-mar. Em alguns locais, as densidades de poliquetas e de pepinos-do-mar (Holothuria) podem alcançar 2-4 indivíduos por metro quadrado (m2). Ref.6 |
Mas se existem vários seres vivos, incluindo animais complexos, vivendo mesmo nas partes mais profundas dos oceanos, por que nós somos fatalmente esmagados com as elevadas pressões hidrostáticas? O principal motivo para isso é o fato desses animais serem constituídos/preenchidos quase inteiramente por água e/ou não possuírem estruturas preenchidas com ar. Água em si é apenas levemente compressível a altas pressões nas profundezas dos oceanos: mesmo a ~11 km na Fossa das Marianas, a compressão é de ~5% (apesar desse valor não ser trivial). Isso porque as ligações de hidrogênio nas moléculas de água líquida não são afetadas em grande extensão por pressões nesse nível. Por outro lado, um humano com a cavidade torácica e outras partes preenchidas com ar seria imediatamente esmagado na Fossa das Marianas, porque o ar é altamente compressível (2). Aliás, isso é basicamente o que ocorreu no trágico acidente envolvendo recentemente o submersível Titan (3).
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(2) Válido aqui lembrar que cetáceos como baleias e cachalotes mergulham em profundidades de até 2-3 mil metros para a captura de presas, mesmo exibindo respiração pulmonar (são mamíferos como humanos) e grandes espaços preenchidos com ar (ex.: cavidades nasais e pulmões). Esses animais evoluíram diversos mecanismos de proteção associados ao trato respiratório, auditivo e sistema cardiovascular contra as enormes variações de pressão hidrostática durante os mergulhos, como capacidade de colapsar os pulmões, maior rigidez nas paredes arteriais e desenvolvimento de tampões nasais especiais. Esses mecanismos evitam barotraumas, embolia gasosa arterial e outros problemas associados a extremas compressões e descompressões no ambiente marinho. Ref.7-10
(2) Esse submersível ganhou recente e grande destaque na mídia devido à sua catastrófica implosão que matou os cinco tripulantes a bordo. Para suportar um maior número de passageiros, o submersível - preenchido com ar a uma baixa pressão - havia sido construído com uma estrutura não-convencional (baseada em fibra de carbono e titânio) para esse tipo de veículo, além de exibir um formato cilíndrico ao invés de um formato esférico (Fig.7). Nesse contexto, a estrutura do veículo acabou não suportando as altas pressões hidrostáticas durante a descida até o Titanic (afundado desde 1912 a uma profundidade próxima de 4000 m, onde a pressão da água é quase 400 vezes maior do que na superfície oceânica). Ref.11-12
Figura 7. Submersível Titan, da empresa OceanGate. O veículo perdeu contato com o navio-mãe cerca de 1 hora e 45 minutos após a submersão. |
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Porém, todos os organismos adaptados ao mar profundo também sofrem significativo estresse causado pelas altas pressões hidrostáticas. Isso em especial porque apesar da água não ser substancialmente afetada pelas altas pressões, estruturas orgânicas com ligações não-covalentes (hidrofóbicas, iônicas) nas proteínas e membranas são significativamente afetadas, inibindo qualquer processo envolvendo mudança positiva de volume e favorecendo aqueles com mudança negativa de volume. Isso leva a críticos efeitos nas estruturas celulares, onde podemos citar (Ref.13):
- Proteínas: Algumas dezenas de atm pode provocar disrupção envolvendo ligações e cinética de enzimas e agrupamentos de proteínas no citoesqueleto, pelo menos em espécies vivendo em águas rasas. Em profundidades muito altas na biosfera marítima, proteínas podem ser comprimidas e até desnaturadas pela penetração de água no interior hidrofóbico da estrutura proteica.
- Membranas: Fluidez é reduzida e a espessura é aumentada pela alta compressão e extensão de fosfolipídeos. Funções proteicas associadas às membranas celulares são frequentemente sensíveis a altas pressões hidrostáticas. Alta pressão pode também aumentar a produção de espécies oxigenadas reativas e peroxidação de lipídios em vários organismos, incluindo peixes.
- Ácidos nucleicos: Certas estruturas nas moléculas de DNA e de RNA, como alças em grampo, são sensíveis a altas pressões hidrostáticas.
No geral, significativos distúrbios celulares podem emergir de mudanças na pressão hidrostática, exacerbadas por diferentes estruturas e reações sendo afetadas em diferentes graus. Além da simples compressão física em macroescala, as altas pressões hidrostáticas afetam inúmeros processos celulares e moleculares nos organismos vivos, provocando efeitos criticamente deletérios em espécies não-adaptadas ao mar profundo. Organismos que evoluíram em altas profundidades oceânicas possuem várias adaptações para manter as funções celulares ótimas (ex.: maior fluidez na membrana celular), e inclusive a maior parte dos animais do mar profundo não toleram ambientes de baixa pressão na superfície oceânica. Por exemplo, mesmo peixes sem bexigas natatórias ou outras câmaras de ar habitando profundidades de 1500-2000 m acabam morrendo quando são capturados por redes de pesca e trazidos até a superfície marinha (Ref.13).
Nesse mesmo caminho, entre os microrganismos marinhos, a atividade metabólica da comunidade microbiótica na superfície do mar é reduzida ou inibida por pressão hidrostática de ~10 MPa (correspondendo a uma profundidade de 1000 m), enquanto que parte da comunidade microbiótica habitando partes profundas dos mares exibem piezofilia (ou seja, ótimo crescimento a pressões acima de 0,1 MPa). Existem também microrganismos piezotolerantes (não "amam" nem "odeiam" grandes profundidades), com adaptações específicas para alta pressão hidrostática, baixa temperatura e escassez de nutrientes. Como regra geral, a atividade heterotrófica global de comunidades procarióticas no mar é progressivamente inibida à medida que o valor da pressão hidrostática aumenta nos domínios meso- e batipelágicos; apenas uma fração pequena (~5%) dos procariontes na zona batipelágica parece ser piezofílica (Ref.14).
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> As zonas mesopelágicas e (particularmente) batipelágicas são caracterizadas por baixas temperaturas, variando de 0°C até 4°C. Apenas as águas profundas do Mar Mediterrâneo, Mar Vermelho e do Mar de Sulu exibem maiores temperaturas (até 20°C). Nesse sentido, organismos piezofílicos são também tipicamente adaptados ao frio, sendo classificados como piezopsicrofílicos. Procariontes habitando zonas hadais são comumente classificados como hiper-piezopsicrofílicos, ganhando vantagem adaptativa em relação aos piezopsicrofílicos a pressões hidrostáticas acima de 50 MPa (Ref.3).
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Portanto, a pressão hidrostática extrema nas zonas mais profundas dos oceanos impõe uma forte pressão seletiva na evolução dos organismos marinhos, e sobrevivência a longo prazo nessas regiões não é uma questão de simples ausência de estruturas com ar no corpo.
PEIXES, TMAO E ZONA HADAL
É bem estabelecido que abaixo de ~4000 m de profundidade, não encontramos mais nenhum peixe cartilaginoso da subclasse Elasmobranchii, a qual engloba tubarões e raias. Ainda mais interessante, é a completa ausência de quaisquer peixes - incluindo teleósteos (peixes ósseos) - habitando regiões abaixo de ~8400 m de profundidade. E importante apontar que apenas duas famílias de peixes teleósteos - grupo que engloba a maioria dos peixes não-extintos - têm sido encontradas abaixo de ~6000 m. Um estudo publicado em 2014 no periódico PNAS (Ref.15) parece ter encontrado a solução desse mistério, e a qual até o momento não foi contestada na literatura acadêmica (Ref.6,13).
Um mecanismo de proteção contra altas pressões hidrostáticas envolve pequenos solutos orgânicos chamados de "piezolitos", os quais atuam atenuando os efeitos de pressão da água sobre proteínas - potencialmente permitindo que essas macromoléculas funcionem adequadamente em diferentes profundidades oceânicas. A maioria dos invertebrados marinhos são osmoconformadores com osmolalidade interna - concentração de solutos dentro das células - similar àquela da água marinha (~1100 mOsmol/kg); no entanto, enquanto fluídos extracelular nesses animais são dominados por cloreto de sódio (NaCl), as células acumulam osmólitos orgânicos visando alcançar balanço osmótico (prevenindo perda ou entrada excessiva de água nas células). Em vários invertebrados marinhos habitando a superfície do mar, os osmólitos orgânicos são aminoácidos neutros, como glicina e taurina, e metilaminas como o N-óxido de trimetilamina (TMAO).
Íons inorgânicos (ex.: NaCl) não são elevados intracelularmente acima de níveis basais para servir como osmólitos porque perturbam macromoléculas (ex.: proteínas estruturais); em contraste, osmólitos orgânicos são considerados "compatíveis" (não-perturbantes). No entanto, além de simples compatibilidade, várias dos osmólitos orgânicos possuem propriedades de proteção. Em particular, o TMAO é uma potente proteína estabilizadora que é capaz de contrapor os efeitos de desestabilizadores, incluindo temperatura e ureia, e melhorando o enovelamento de proteínas em geral e função de enzimas. Mais importante, o TMAO reduz a entrada forçada de moléculas de água para dentro do interior de proteínas.
Diferente dos organismos marinhos invertebrados, a maioria dos vertebrados marinhos são osmorreguladores, usando órgãos osmorregulatórios para manter a osmolalidade interna relativamente homeostática. Esses vertebrados são muito hipo-osmóticos em relação à água marinha, e peixes teleósteos marinhos de águas rasas, por exemplo, possuem osmolalidade interna ao redor de 350 mOsmol/kg e apenas baixos níveis de osmólitos orgânicos , principalmente TMAO a 40-50 mOsmol/kg. No entanto, têm sido historicamente observado que peixes habitando profundidades cada vez maiores possuem uma concentração cada vez maior de TMAO no corpo, indo de 40 até 261 mmol/kg no tecido muscular ao longo de uma profundidade de 0 a 4850 m.
No estudo publicado na PNAS, os pesquisadores analisaram os dados de osmolalidade para peixes teleósteos em diferentes profundidades, predizendo um estado isosmótico a 8000-8500 m como um limite fisiológico para esses peixes. Profundidades maiores iriam requerer reversão de gradientes osmóticos e, portanto, crítica reversão dos sistemas osmorregulatórios nos peixes. Em seguida, os pesquisadores testaram essa predição capturando cinco indivíduos da espécie (Notoliparis kermadecensis; Liparidae), um peixe que habita a segunda maior profundidade marinha conhecida, a ~7000 m na Fossa de Kermadec (Fig.10).
Figura 10. Um N. kermadecensis fotografado vivo a uma profundidade de 7199 m, na Fossa de Kermadec, Nova Zelândia. A espécie ocupa uma faixa de profundidade muito estreita, de 6472 a 7561 m. Ref.15 |
As análises do N. kermadecensis revelaram uma concentração de TMAO de ~386 mmol/kg e osmolalidade de ~991 mOsmol/kg, corroborando a predição. Somados os dados, os pesquisadores estimaram um estado isosmótico teórico a 8200 m, profundidade a partir da qual maiores concentrações de TMAO não seriam mais possíveis sem dramática reversão dos sistemas osmorregulatórios (osmolalidade interna hiperosmótica). Nenhum peixe marinho teleósteo é conhecido de lidar com tal reversão no gradiente osmótico. E, de fato, esse valor máximo de profundidade teoricamente previsto é muito próximo do limite para a existência de peixes observado na prática.
Nesse sentido, o conteúdo intracelular de TMAO parece ser o fator limitante que impede a invasão de peixes em profundidades mais extremas na zona hadal.
Aliás, um estudo publicado em 2019 na Nature Ecology & Evolution (Ref.17), analisando o genoma do peixe Pseudoliparis swirei (Liparidae), revelou - entre um número de adaptações - mutações críticas na enzima FAO (responsável pela síntese de TMAO) em comparação com um peixe da mesma família habitando a superfície dos mares (Liparis tanakae) e compartilhando um ancestral comum há cerca de 20 milhões de anos (Fig.11). Essa espécie habita a Fossa das Marianas a uma profundidade abaixo de 6000 m.
Além do osmólito TMAO, é incerto se outros fatores bioquímicos ou físicos no corpo de peixes impedem a invasão de profundidades extremas nas zonas hadais. Em relação aos invertebrados e microrganismos marinhos, é incerto se existe um limite de profundidade para esses animais e quais fatores são limitantes (!). Relevante apontar que o TMAO é um importante regulador da pressão osmótica em vários outros animais e microrganismos habitando grandes profundidades marinhas, incluindo anfípodes, os decompositores dominantes nos ambientes hadais e habitando profundidades de até 10000 m (Ref.18). No geral, o conteúdo intracelular de TMAO aumenta gradualmente ou linearmente nos animais marinhos vertebrados e invertebrados com o aumento da profundidade (Ref.18).
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(!) O dimetilssulfôniopropionato (DMSP), de forma similar ao TMAO, é um importante osmólito marinho. Aliás, a produção global de DMSP nos oceanos possui substancial contribuição de organismos marinhos habitando altas profundidades, e aumenta em bactérias heterotróficas junto com o aumento da pressão hidrostática - e evidências indicam que certas bactérias marinhas produzem DMSP visando justamente proteção contra pressão hidrostática. Na Fossa das Marianas, abaixo de 8000 m, o potencial catabólico do DMSP é menos proeminente, talvez indicando uma preferência pelo armazenamento interno desse osmólito para aumentar a proteção contra o estresse causado pelas pressões hidrostáticas extremas (Ref.19).
> Entre profundidades de 3000 m e 6000 m, existe também evidência de que zonas de transição [diferentes comunidades biológicas em diferentes profundidades] são determinadas por limites de saturação de carbonato de cálcio (Ref.20). Por exemplo, entre 3800 m e 4300 m (mais rasas), comunidades bênticas abissais são mais densamente populadas por animais requerendo carbonato de cálcio para conchas e estruturas esqueléticas, como moluscos com conchas e corais. Em águas mais profundas, entre 4800 m e 5300 m, animais de corpos moles, como pepinos-do-mar, são mais abundantes - menos vulneráveis a uma maior solubilidade de carbonato na água marinha.
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REFERÊNCIAS
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