Lítio e Terras Raras: Novo petróleo do século XXI?
Figura 1. Baterias usadas pela maioria das fabricantes de veículos elétricos, como a Tesla, dependem de lítio e de magnetos permanentes constituídos de terras raras. |
- Atualizado no dia 14 de setembro de 2024 -
Em meio ao rápido desenvolvimento tecnológico de vários países ao redor do mundo e grande investimento na eletrificação do transporte e na transição para fontes de energia renovável, a demanda por metais críticos tem crescido de forma exponencial. Em particular, o lítio e um grupo de metais lantanídeos conhecido como "terras raras" ganham forte destaque nesse cenário. Mas qual é a importância desses metais em aplicações tecnológicas? Onde estão as maiores reservas de exploração desses metais? E onde o recente atrito entre Elon Musk e o judiciário Brasileiro entra nessa história?
LÍTIO
Níquel, cobalto, manganês, lítio, alumínio, grafite, e cobre são os elementos mais importantes para a construção de células de baterias - unidades principais de uma bateria consistindo de componentes-chave como cátodo, ânodo, separador e eletrólito. O lítio (Li) representa o mais leve metal na tabela periódica e, sem sombra de dúvidas, um elemento central na produção de baterias elétricas, um dos materiais fundamentais no processo de transição ecológica, particularmente no setor de transporte.
O metal lítio é altamente reativo e possui o mais baixo potencial eletroquímico padrão redox e uma capacidade específica teórica muito alta, tornando-o o material anódico ideal para a construção de baterias recarregáveis. Em uma bateria de íon-lítio, os íons de lítio (Li+) se movem do eletrodo (ânodo) negativo para o eletrodo positivo (cátodo) através de um meio eletrolítico enquanto a bateria descarrega, então o fluxo é invertido quando a bateria é recarregada (Fig.3).
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Sugestão de leitura:
> Existem três principais tipos de baterias recarregáveis: bateria de níquel-hidreto metálico (Ni-MH), Cádmio Níquel (Ni-Cd) e Lítio-íon (Li-Ion). Entre os três, as baterias baseadas em lítio são a melhor opção de longe. Além de exibir densidade de carga muito maior, a bateria Li-Ion não exibe efeito de memória (1) e possui uma baixa taxa de autodescarga (aproximadamente 5% por mês). Outras alternativas que podem futuramente competir com as baterias de lítio (ex.: baterias de sódio) ainda estão em desenvolvimento e muito longe do mercado.
> Importante mencionar que a composição química é variável entre diferentes tipos de baterias de Li-Ion, e estas continuam sendo aperfeiçoadas e modificadas com novas pesquisas (Ref.41-42). Para veículos elétricos, o material do cátodo frequentemente usa óxidos com cobalto, manganês, níquel e lítio.
(1) Para mais informações: Qual é a melhor forma de carregar a bateria do celular?
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Hoje, desde smartphones e notebooks até carros elétricos são sustentados pelas baterias de Li-Ion, e o lítio continuará por muito tempo sendo a melhor matéria-prima para a fabricação de baterias recarregáveis. Portanto, encontrar e explorar reservas minerais desse metal ao redor do mundo tornou-se economicamente muito lucrativo e países com grandes depósitos de lítio estão se tornando muito importantes de um ponto de vista geoeconômico.
Devido à sua alta reatividade, o lítio apenas aparece naturalmente na forma de compostos. O primeiro composto de lítio descoberto foi a petalita (LiAlSi4O10), pelo químico Brasileiro José Bonifácio de Andrade e Silva, em 1800. Vários anos depois, em 1817, lítio puro (metálico) foi extraído da petalita pelo químico Sueco Johan August Arfwedson. O lítio ocorre em um número de minerais, mas o lítio usado em baterias é comumente obtido de depósitos salgados (ex.: lagos salgados secos) e geralmente vendido na forma de carbonato de lítio (Li2CO3).
A mais atrativa localização para a exploração de lítio é a América do Sul. Metade de todas as reservas de lítio no planeta estão localizadas entre Chile, Argentina e Bolívia, no assim chamado "Triângulo do Lítio", uma área que cobre ~43000 km. Nessa região, os depósitos de lago salgado ricos em lítio são chamados de "salares" (salmouras), onde o cloreto de lítio (LiCl) é abundante. É estimado que 70-75% dos depósitos de lítio em lagos salgados são encontrados no território Sul-Americano (Ref.1, 4). O Chile é o maior produtor, não apenas pelos sistemas altamente desenvolvidos de mineração, mas também ao clima e geografia favoráveis para ótima evaporação solar que é central para a exploração de lítio. A Bolívia possui a maior reserva de lítio conhecida (≈21 megatoneladas), mas a produção de lítio é ainda relativamente baixa no país por causa de limitações de infraestrutura e transporte.
Figura 4. Minas e depósitos de lítio na América do Sul. Ref.4 |
Enquanto as maiores reservas de lítio no continente Sul-Americano sendo exploradas estão na Argentina (~19,3 megatoneladas) e no Chile (~9,6 megatoneladas), as minas Brasileiras são mais vantajosas, porque o material encontrado nelas está na forma de pegmatito, que é uma forma mais dura da rocha. A vantagem dessa estrutura é a de menor custo para produção do concentrado de lítio a partir da rachadura dessas pedras (Ref.6). Isso tem chamado muita atenção no mercado internacional para as reservas Brasileiras. Existem no território Brasileiro duas grandes províncias de extração: a maior delas é no Vale do Jequitinhonha, no norte de Minas Gerais, onde já existem minas em operação, e a outra é na Província de Borborema, no Nordeste brasileiro.
Figura 6. Reservas mundiais de lítio distribuídas por país. Ref.7 |
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> Depósitos de lítio em pegmatitos - minérios com origem em rochas sãs - estão localizados na Austrália, Áustria, Brasil, Canadá, China, Congo, República Tcheca, Finlândia, Alemanha, Mali, Namíbia, Peru, Portugal, Sérvia, Espanha, EUA e Zimbábue. Os pegmatitos contêm diversos minerais de lítio, como a lepidolita, ambligonita, petalita e espodumênio. Outras 'rochas duras' fontes de lítio incluem o hectorita e a jadarita. A Austrália, hoje, domina o mercado global de lítio extraído de rocha dura.
> Além das salmouras e dos pegmatitos, lítio também é explorado de forma importante a partir de argila, como ocorre no México e EUA, onde se encontra na forma de minerais como a jadarita.
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É esperado que com a transição dos motores de combustão interna para os elétricos na frota do Brasil, a alta demanda de lítio na indústria Brasileira começará a alimentar mais investimento na infraestrutura de exploração de lítio das nossas reservas.
A demanda pelo lítio para a geração de baterias ao redor do mundo aumentou dramaticamente nos últimos anos, e, atualmente, a indústria das baterias já consome um terço do lítio produzido no mundo. O fenômeno tem sido caracterizado como "corrida do lítio". Estima-se que pelo menos 20% dos veículos de estrada serão eletrificados e dependentes de lítio até o ano de 2030 e com a demanda de lítio aumentando em >500% em 2050 comparado com 2020 (Ref.12). Para alcançar as metas da COP28, e zerar o balanço final de carbono, a demanda de baterias é esperada de aumentar de 0,8 tetrawatt-hora (TWh) em 2023 para um total de 6 TWh em 2030, a maior parte (5,40 TWh) visando veículos elétricos (Ref.13).
Nesse contexto, o lítio tem sido amplamente considerado o "petróleo do século XXI" e comumente chamado de "ouro branco". Em poucas décadas, esse metal pode ficar criticamente escasso e extremamente caro. Reciclagem de lítio - por ser complexa, limitada e muito custosa - pode aliviar mas não solucionar o problema nas próximas décadas (Ref.14).
TERRAS RARAS
Segundo a União Internacional de Química Pura e Aplicada (IUPAC), as Terras Raras (TR) compreendem um grupo de 17 elementos químicos, correspondendo ao escândio (Sc), ítrio (Y) e os 15 elementos lantanídeos (La-Lu). A característica mais marcante das TR é o fato de que esse grupo de elementos apresenta propriedades químicas essencialmente idênticas, sendo que se observam apenas diferenças muito sutis na reatividade seus íons trivalentes (TR3+) devido aos seus diferentes raios iônicos - à medida que o número atômico aumenta, os lantanídeos exibem uma redução maior do que a esperada no raio atômico ou iônico, efeito conhecido como "contração dos lantanídeos".
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> Os 17 metais incluídos como terras raras: Lantânio (La), Cério (Ce), Praseodímio (Pr), Neodímio (Nd), Promécio (Pm), Samário (Sm), Európio (Eu), Gadolínio (Gd), Térbio (Tb), Disprósio (Dy), Hólmio (Ho), Érbio (Er), Escândio (Sc), Túlio (Tm), Itérbio (Yb), Lutécio (Lu) e Ítrio (Y).
> Sem isótopos estáveis, o promécio foi o último lantanídeo a ser descoberto e tem sido o mais difícil de ser estudado. Apenas recentemente foi melhor descrito em um estudo publicado na Nature (Ref.17), analisando um complexo do metal em solução e marcando um significativo avanço em pesquisas que exploram as terras raras. Altamente radioativo, é um metal muito raro: apenas ~450 gramas ocorrem naturalmente na crosta da Terra em um dado momento. É obtido em pequenas quantidades para aplicações tecnológicas diversas através de fissão nuclear em reatores.
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Como consequência dessa similaridade, as TR ocorrem na natureza invariavelmente associadas umas às outras, de modo que seus minerais normalmente consistem em misturas de "TR leves" (terras céricas, La-Eu) ou de "TR pesadas" (terras ítricas, Gd-Lu e Y). Atualmente, a separação desses elementos se processa explorando-se as pequenas diferenças de afinidade frente a agentes complexantes, sobretudo através de técnicas de extração por solvente, em decorrência da alteração do tamanho dos íons ao longo da série (Ref.18).
Apesar da alta similaridade química entre si, as TR apresentam propriedades que as tornam únicas entre os elementos da tabela periódica, o que é consequência de configurações eletrônicas muito particulares. Especificamente, os lantanídeos possuem configurações envolvendo elétrons 4f, que se encontram no interior dos átomos [eletrosfera] e, como consequência, são pouco afetados pelo ambiente químico em que os íons se encontram. Dessa forma, as TR conservam em seus compostos no estado condensado as propriedades observadas em átomos livres, fato que não é observado em nenhum outro grupo de elementos. Assim, além de terem constituído um grande desafio às teorias quânticas que se desenvolveram ao longo do século XX, as configurações eletrônicas 4f associadas aos lantanídeos lhes conferem propriedades únicas com relação à absorção e emissão de luz, bem como ao comportamento magnético.
Tais propriedades tornam as TR elementos essenciais em várias tecnologias modernas e de transição energética, como a composição de ímãs permanentes de alta eficiência (aplicados em geradores eólicos, baterias elétricas, alto-falantes, dínamos, etc.), catalisadores, painéis solares, computadores, smartphones, vidros especiais, cerâmicas de alta resistência e de materiais luminescentes (aplicados em lâmpadas fluorescentes compactas, lâmpadas de LEDs, displays, marcadores, lasers etc.). Esses metais têm tido também aplicações críticas no setor tecnológico de defesa, incluindo comunicação e amplificação de sinais (detectores, radares, sonares e equipamentos de posicionamento global), motores elétricos e estocagem de energia em veículos militares, óculos de visão noturna, lasers como armas ou miras, armas guiadas de precisão, entre outros. Nesse mesmo caminho, TR também são essenciais no setor espacial, incluindo tecnologias de satélites.
Nas últimas décadas, as TR se tornaram recursos estratégicos ao redor do mundo, e a demanda por esses metais é esperada de aumentar dramaticamente nos próximos anos. Um dos campos de maior expansão é o uso de TR em magnetos permanentes, importantes componentes nos motores elétricos de veículos da nova geração e em turbinas de vento, dois segmentos fundamentais para as políticas de descarbonização e a transição verde que pavimentam o atual caminho da indústria global.
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> Terras raras têm sido caracterizadas como "vitaminas" ou "temperos" da economia moderna, porque adicionar pequenas quantidades desses elementos em metais diversos - formando ligas metálicas - substancialmente melhora as propriedades desses últimos. Materiais essenciais para tecnologias modernas não seriam possíveis sem as terras raras.
> As flutuações de preço das terras raras afetam profundamente a economia real e estratégias nacionais ao redor do mundo. Nos últimos anos, o grau de desenvolvimento de uma nação tem sido inclusive medido pelo consumo de TR para aplicações em tecnologia de ponta. Terras raras possuem um papel insubstituível na atual Quarta Revolução Industrial e serão motivo de sérias tensões geopolíticas nas próximas décadas.
> A crescente produção de veículos elétricos irá empurrar a demanda por terras raras (principalmente Dy e Nd) por causa da importância de magnetos de neodímio usados em baterias elétricas, especialmente na forma da liga metálica NdFeB. Várias baterias de veículos elétricos também contêm Ce e La. Turbinas eólicas também dependem dos poderosos magnetos constituídos de Nd e Sm (ex.: liga samário-cobalto, SmCo). Células solares usam Nd, Dy e Tb junto com outros materiais para converter luz solar em eletricidade. Ref.19-20
> O líder Chinês Deng Xiaoping (1904-1997) chegou a afirmar ainda no século XX que as reservas de terras raras na China eram equivalentes em importância ao petróleo do Oriente Médio. Desde a década de 1980, a China investe pesado na exploração e produção das terras raras na região norte do país, estabelecendo controle sobre o mercado no final da década de 1990. O quase monopólio Chinês sobre as terras raras fornece ao país grande influência política e econômica a nível global. Notavelmente, em 2010, uma disputa entre China e Japão levou o governo Chinês a impor restrições sobre as exportações de terras raras, fazendo os preços globais aumentarem em 500% em alguns casos. Ref.16, 21-22
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Apesar do nome "terras raras", os elementos metálicos correspondentes - com algumas exceções - não são raros na crosta terrestre. Porém, estão concentrados em poucos países. As reservas globais de TR são estimadas em aproximadamente 125-132 milhões de toneladas (em termos de óxidos de TR), sendo que a China é detentora de aproximadamente um terço desse valor. O Brasil possui reservas expressivas de TR (22 milhões de toneladas em óxidos de TR), assim como Vietnã e Rússia (Fig.9). Aliás, o território Brasileiro talvez possui a segunda maior reserva de TR do mundo. Apesar das grandes reservas, o Brasil ainda possui exploração e produção muito baixa de TR por causa da falta de infraestrutura e limitado investimento na área.
A mineração e preparação das terras raras não são processos simples. Primeiro esses elementos precisam ser separados dos óxidos, refinados e forjados em ligas em um processo de múltiplos estágios, complexo e altamente especializado, antes que possam ser transformados, por exemplo, em magnetos permanentes. A China hoje domina cada um desses processos através de uma estratégia concertada e de longo prazo apoiada por subsídios do Estado. A China responde por mais da metade da produção global de TR, e também é o maior usuário e exportador desses metais. O Grupo de Terras Raras da China é esperado de controlar 30-40% do suprimento global de TR nos próximos anos.
Para alcançar o objetivo de zerar o balanço de carbono, é estimado que a extração de terras raras terá que aumentar por um fator de 10 até 2030 (Ref.23). De fato, a produção desses metais já aumentou em mais de 85% entre 2017 e 2020, impulsionado principalmente pela demanda para magnetos permanentes visando veículos elétricos e geradores eólicos.
CONFLITOS GEOPOLÍTICOS
A alta e crescente demanda por lítio e terras raras acaba também colocando forte pressão ambiental, política e social em regiões onde esses metais são explorados, a qual é concentrada em sua maior parte em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. O continente Africano é atualmente o mais prejudicados nesse sentido. No Brasil, a preocupação também é grande considerando que 30% dos minerais críticos estão localizados na região Amazônica.
A produção de terras raras envolve alto consumo de energia e de recursos, altos níveis de poluição, e significativos impactos ambientais, e o processamento dos metais em questão é muito mais complexo do que a produção de outros metais. Por exemplo, a extração de 1 tonelada (t) de terras raras requer 4,41 t de ácido sulfúrico, 12,32 t de cloreto de sódio, 1,64 t de hidróxido de sódio, 1,17 t de ácido clorídrico, 1,90 t de água, e a maceração de quase 50 t de minérios metálicos em Bayan Obo, na Mongólia, e geralmente a energia usada para obter 1 t de uma terra rara individual varia de 38 a 48 gigajoules (GJ) - e alcançando valores de 148 GJ/t e 75 GJ/t para o escândio e o ítrio, respectivamente (Ref.26). Esse intenso processamento gera enorme poluição radioativa e pode contaminar corpos de água e alimentos com metais pesados diversos.
Figura 11. Recentemente, um mapa criado pelo Observatório Debt em Globalização, em colaboração com outras instituições internacionais, apontou e descreveu 28 regiões de conflitos ambientais e sociais causados pela extração, processamento e reciclagem de terras raras e outros metais. No Brasil, três regiões foram destacadas: (A) complexo de mineração Pitinga, no Amazonas, explorando cassiterita e marcado por injustiça histórica contra populações nativas e intensa poluição ambiental; (B) mina Boa Vista de Catalão, focada na exploração e transformação de nióbio, gerando deslocamento das comunidades rurais e tradicionais afetadas, e graves impactos ambientais e de saúde pública nos territórios de extração; e (C), na região de Araxá, Minas Gerais, o principal centro de exploração de nióbio do mundo, associado com grandes custos humanos e ambientais. Mapa completo e mais informações: EJAtlas.org |
Sugestão de leitura:
No caso das baterias, não é apenas o lítio o problema: o cátodo da bateria Li-Ion é composto também de níquel (Ni), manganês (Mn) e cobalto (Co) em variáveis concentrações. O maior custo do cátodo é amplamente atribuído à presença de cobalto - um elemento raro e caro minerado primariamente na República Democrática do Congo. É estimado que 23% das crianças no Congo - várias das quais são órfãs - trabalham dentro das minas de cobalto, onde são expostas a abusos físico, psicológico e sexual (Ref.12). E além da devastação ambiental e toxicidade ocupacional resultantes das atividades agressivas de mineração, contaminação do ambiente com metais pesados diversos produzidos como subprodutos causam sérios prejuízos à saúde pública mesmo em regiões afastadas das minas.
Para termos uma noção do nível de impacto ambiental a médio e a longo prazo, a produção de 1 kg de cobalto necessita da extração mínima de 2,5-1,25 toneladas de sulfeto magmático em depósitos minerais. Um típico veículo elétrico possui em média 8 kg de cobalto. Estima-se que teremos um adicional de 25,3 milhões de carros no ano de 2030.
No Triângulo do Lítio, a exploração dos recursos hídricos na região provocada pelo processo de mineração possui um forte impacto nos territórios de populações locais, principalmente povos nativos (Ref.24). A mineração de lítio envolve quantidades colossais de água: na Salmoura de Atacama, aproximadamente 65% da água na região é desviada para a prática de mineração. Os recursos hídricos superficiais e subterrâneos são contaminados, desviados e consumidos pela mineração do lítio, provocando conflitos e agravando um grande processo de expropriação das comunidades locais. O deslocamento forçado das populações faz com que as pessoas fiquem em uma posição de alta vulnerabilidade.
Piora esse cenário o fato de que as grandes corporações mineradoras tendem a promover corrupção política nos países explorados e deixar pouco para comunidades locais em termos de lucro, criando mais tensão e pobreza. A cadeia de suprimento de lítio é dominada pela concentração de produção nas mãos de poucas grandes companhias, que frequentemente promovem um "novo colonialismo" nas regiões Sul-Americanas exploradas, sérios danos ambientais e acúmulo absurdo de capital em famílias que residem em países como EUA, Canadá e Coreia do Sul (Ref.25). É muito questionável a habilidade do setor privado de garantir - na prática - os direitos de povos nativos e outras comunidades afetadas, ou de proteger ecossistemas em meio à ávida corrida por minerais críticos.
Com a demanda excedendo cada vez mais o fornecimento para mercados ao redor do mundo, governos e corporações de países desenvolvidos ou potências globais como EUA, Canadá, União Europeia e China lutam pelo domínio de recursos em países menos desenvolvidos - e de forma similar às dinâmicas que marcam a geopolítica dos combustíveis fósseis -, frequentemente fazendo vista grossa para os danos sociais, políticos e ambientais nas regiões exploradas. Isso inclusive entra em conflito com o objetivo de "transição verde" propagandeado por nações de primeiro mundo. A União Europeia é uma das regiões globais mais dependentes da importação de metais críticos, e com grande dependência da Rússia em relação às terras raras (Ref.28-29). O conflito militar entre Rússia e Ucrânia aumentou a pressão sobre a União Europeia para a busca de novas fontes desses metais.
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Sugestão de leitura:
> Em termos de estrutura corporativa, cinco grandes companhias estão hoje fornecendo lítio globalmente: Albemarle (EUA), Ganfeng (China), SQM (Chile), Tianqi (China) E Livent Corp (EUA).
> Em termos de componentes de baterias (cátodos, ânodos e separadores), mais de 65% da capacidade é concentrada na China, seguida pelo Japão. A capacidade de produção de baterias é ainda mais concentrada na China (75%), seguida pela Coreia do Sul (15%).
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O problema também afeta regiões no hemisfério Norte. Na Europa, podemos citar a Sérvia, onde um polêmico projeto de US$2,4 bilhões pretende minerar lítio na região de Jadar. Esperado de ter suas operações iniciadas em 2028, o projeto de mineração atenderia a maior parte da demanda da União Europeia por lítio, mas tem enfrentado grandes protestos da população no território Sérvio. Os Sérvios em protesto estão preocupados com os impactos ambientais das atividades mineradoras em Jadar, incluindo poluição de propriedades rurais, florestas e água na região. Esses protestos foram alimentados com evidências científicas recentes apontando altos níveis de arsênio, boro e lítio em águas subterrâneas associadas às minas em desenvolvimento, potencialmente ameaçando a biodiversidade e a comunidade locais (Ref.30).
O governo da China incluiu 24 minerais estratégicos em seu Plano Nacional de Recursos Minerais publicado em 2016, incluindo metais como ferro, cobre, alumínio, ouro, níquel, cobalto, lítio e terras raras (Ref.32). Segundo o governo Chinês, esses minerais são essenciais para "salvaguardar a segurança econômica nacional, a segurança da defesa nacional e o desenvolvimento de indústrias emergentes estratégicas". Nesse sentido, a presença da China tem sido agressiva no Triângulo do Lítio, com investimento pesado em colossais projetos de mineração desse metal e também para a produção industrial de veículos elétricos. Só em janeiro deste ano, três empresas Chinesas se comprometeram com um investimento de US$1 bilhão na Bolívia - país hoje amplamente dependente dos recursos Chineses para produção de lítio.
"Minerais críticos fornecem os alicerces para muitas tecnologias modernas e são essenciais para nossa segurança nacional e prosperidade econômica", disse o governo de Joe Biden, EUA, em um comunicado de 2023, e fazendo menção ao lítio e às terras raras (Ref.32). "A demanda global por esses minerais críticos disparará entre 400% e 600% nas próximas décadas, e, para minerais como o lítio e o grafite, a procura vai aumentar ainda mais, até cerca de 4000%".
Países com significativas reservas de terras raras e lítio tendem a se tornar estrategicamente cada vez mais importantes. O Chile, por exemplo, percebendo a importância estratégica da eletrificação do setor de transporte, nacionalizou sua indústria de lítio (Ref.33). No território Chileno, desde 1983, a exploração de lítio só pode ser feita através de três formas: companhias estatais, via concessões administrativas ou via contratos especiais de operações. Essa tendência de nacionalização das reservas de lítio tem causado grande tensão com investidores estrangeiros.
A Tesla Motors, empresa pertencente ao controverso bilionário Elon Musk e especializada em desenvolver e produzir veículos elétricos, está cada vez mais faminta por lítio. Tornando-se lucrativa pela primeira vez em 2020, e com lucro bruto de quase US$21 bilhões em 2022, os veículos elétricos de médio a grande porte utilizando baterias de lítio são o futuro de crescimento da empresa, um caminho pavimentado com a aliança estratégica entre Tesla e Panasonic (líder na tecnologia e produção industrial dessas baterias) (Ref.34). A capacidade de mercado da Tesla está crescendo rápido, assim como a necessidade de lítio.
O potencial e a produção de lítio na América do Sul têm sido avidamente cobiçados por companhias como Volvo, Tesla, BMW e Ford, fomentando tensão política cada vez maior na Argentina, Bolívia e Chile. Nesses três países, historicamente, o "ouro branco" tem sido fortemente controlado pelos governos ou representado uma constante promessa política de alavancagem desenvolvimentista, enquanto atores internacionais entram em forte atrito contra as políticas protecionistas e buscam maior abertura para exploração do metal. Musk tem sido um dos protagonistas nesse contexto, se envolvendo na política Sul-Americana no sentido de apoiar políticos de extrema-direita amigáveis aos seus interesses, como recentemente ocorreu com Javier Milei na Argentina (Fig.14).
A Bolívia abriu, em 2021, uma série de leilões internacionais para dar início à exploração pesada de lítio no país (Ref.33). O governo boliviano fechou acordos com empresas da Rússia e da China para instalar plantas-piloto de extração do mineral no país. Nenhuma das empresas Norte-Americanas e Argentinas foi selecionada, e entre as excluídas estava a EnergyX, que faz parte do conglomerado comandado pelo Musk. O empresário vem aparentemente tentando, sem sucesso, ter acesso privilegiado ao lítio da Bolívia e, para isso, tem também se envolvido de forma explícita nos debates políticos do país (Fig.15).
O Brasil, ao deter grandes fontes de lítio de fácil extração e representar uma das maiores reservas de terras raras do mundo, acaba também sendo alvo de disputas internacionais por esses minerais críticos. Envolvimento político de Musk cada vez mais agressivo no país, com explícito apoio a grupos de extrema-direita, particularmente políticos associados ao "Bolsonarismo", parecem refletir o interesse do empresário em garantir acesso privilegiado a esses recursos no território Brasileiro. Ao apoiar esses grupos e potencialmente enfraquecer o governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Musk também enfraquece governos de esquerda na América do Sul - que podem ser encarados como inimigos dos seus interesses econômicos. É especulado que o Musk iniciou a compra do Twitter para turbinar a extrema-direita global favorável aos seus negócios. Relevante, o JPMorgan - uma grande holding que presta serviços financeiros e de banco de investimento - foi fiador da compra do Twitter por Musk e é um grande investidor da Vale - uma poderosa companhia multinacional de mineração em atuação no território Brasileiro (Ref.38).
Sugestão de leitura:
Em uma visita este ano à Bolívia e reunião amigável com o presidente Boliviano Acre, Lula chegou a comentar (Ref.39):
"No centro da transição [verde] também estarão os minerais críticos. A Bolívia tem grandes reservas de lítio, enquanto o Brasil possui terras raras, nióbio, cobalto, entre outros. Há pouco tempo descobriu-se em solo brasileiro o terceiro maior depósito de manganês do planeta. Como bem descreveu Eduardo Galeano, pelas veias abertas da América Latina correram o ouro de Minas e a prata de Potosí, que enriqueceram outras partes do mundo."
Em 2024, as ações da Tesla despencaram 44% de acordo com o índice da Nasdaq. Garantir suprimento privilegiado de minerais críticos, especialmente lítio, pode ser essencial para garantir a dominância e mesmo sobrevivência da empresa nas próximas décadas. Um possível meio nesse sentido é a interferência política em democracias na América do Sul. Importante também ressaltar que Musk detém várias outras empresas em setores tecnológicos que exploram campos desde inteligência artificial até o setor espacial e de satélites, com destaque especial para a SpaceX. O crescimento e sobrevivência dessas empresas dependem fortemente do acesso a metais críticos.
Além do lítio de rochas duras e das terras raras, o Brasil possui um quarto das reservas globais de grafite - outro material que está revolucionando o setor tecnológico (2) -, quase 15% das reservas globais de níquel e de manganês, e representa a maior fonte do mundo em nióbio (>90% da produção global). O nível de produção desses valiosos metais ainda é muito baixo no país, mas a indústria está crescendo, alcançando um excedente comercial de US$27,9 bilhões em 2022 (Ref.40). Nesse sentido, o potencial de produção de minerais críticos no Brasil é enorme - entre os cinco maiores do mundo - e torna o território Brasileiro extremamente importante no contexto geopolítico da Quarta Revolução Industrial.
Leitura recomendada:
Considerando todo o exposto até aqui, o recente choque político entre Musk e a justiça federal Brasileira, beneficiando um grupo político específico, não parece ser coincidência, luta pela liberdade de expressão ou um "delírio mental" do empresário como vem sendo sugerido em alguns canais de mídia. O Musk é um empreendedor de sucesso e provavelmente sabe muito bem o que está fazendo, no sentido de sempre apostar em estratégias que beneficiam os seus empreendimentos a médio e a longo prazo. A sugestão de uma "causa nobre" de liberdade torna-se extremamente ingênua considerando a ausência de atrito entre Musk e ditaduras na Ásia, em especial Índia e China, onde o empresário é muito beneficiado.
REFERÊNCIAS
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- https://www.funcmater.com/lithium-metal-li-granules.html
- "Is Lithium the 21st Century’s Oil?" Erik Bethel, Juan Andres Panama & Sam Luo (2010).
- Sanchez-Lopez, M. D. (2023). Geopolitics of the Li-ion battery value chain and the Lithium Triangle in South America. Latin American Policy, Volume 14, Issue 1, Pages 22-45. https://doi.org/10.1111/lamp.12285
- Fornillo, B. (2018). La energía del litio en Argentina y Bolivia: comunidad, extractivismo y posdesarrollo. Colombia Internacional, No. 93. https://doi.org/10.7440/colombiaint93.2018.07
- https://jornal.usp.br/radio-usp/brasil-possui-grande-potencial-na-extracao-de-litio-mas-precisa-aprimorar-a-logistica/
- https://sgb.gov.br/litio/nomundo.html
- Gandhi et al. (2021). India’s Strategy to Procure Lithium to be a Leading Lithium-Ion Battery Manufacturer. International Journal of Engineering and Management Research, 11(5), 143–148. https://doi.org/10.31033/ijemr.11.5.17
- Sun et al. (2024). The future nickel metal supply for lithium-ion batteries. Green Chemistry, 26, 6926-6943. https://doi.org/10.1039/D4GC01980F
- https://fund.ar/wp-content/uploads/2024/06/Fundar_Convergence-divergence-or-mixed-results_A-comparison-between-private-and-public-rules-governing-lithium-mining-in-Argentina-1.pdf
- Rodrigues & Padula (2022). Lithium Geopolitcs in the 21st Century Austral: Brazilian Journal of Strategy & International Relations, 6(11). https://doi.org/10.22456/2238-6912.66687
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