Endometriose pode provocar tosse com sangue?
- Atualizado no dia 15 de junho de 2023 -
Uma mulher de 26 anos apresentou-se ao hospital com recorrente hemoptise (tosse com sangue) coincidindo com seus ciclos menstruais. Ela não tinha outros sintomas abdominais ou pélvicos. Tomografia computacional (CT) sem contraste dos pulmões da paciente mostrou um nódulo cavitário com uma aparência fosca no lobo inferior direito, e com dimensão de 11 mm (Fig.1). Uma resseção toracoscópica vídeo-assistida foi realizada. Análise histopatológica mostrou glândulas endometrióticas e estroma, confirmando o diagnóstico de endometriose torácica. Após intervenção cirúrgica, a paciente ficou livre de sintomas nos próximos 2 anos de acompanhamento.
ENDOMETRIOSE
Endometriose é uma condição benigna, comum e estrógeno-conduzida, sendo caracterizada pela presença de glândulas semi-endometriais e estroma (tecido conjuntivo vascularizado de suporte) fora da cavidade uterina. É estimado que a endometriose afeta aproximadamente 5-10% das mulheres em idade reprodutiva, porém algumas evidências sugerem uma taxa de incidência significativamente maior (10-15%). Nessa população, 12% são estimadas de experienciar endometriose de órgãos não-reprodutivos, referido como endometriose extragenital. Em mulheres inférteis, a prevalência da endometriose é estimada ser de até 50% (Ref.19). A condição se manifesta mais comumente enxertada dentro da cavidade peritoneal, e o mais comum local de endometriose fora da cavidade abdominal-pélvica é dentro da cavidade torácica. E apesar de comum, a doença é ainda pouco reconhecida e entendida pelo público. No Brasil, dados do Ministério da Saúde apontam que mais de 7 milhões de mulheres têm a doença, caracterizando um sério problema de saúde pública (Ref.23).
A manifestação histológica da endometriose ocorre de três principais modos: (1) como implantes superficiais sobre a superfície peritoneal, classificada como superficial ou peritoneal; (2) cistos ovarianos chamados de endometriomas ; ou (3) lesões profundas que infiltram a superfície peritoneal em mais do que 5 milímetros, as quais são classificadas como endometriose profunda. Endometriomas ovarianos ocorrem em 17-44% dos pacientes diagnosticados com endometriose.
A patofisiologia da endometriose origina-se de um amplo espectro de fatores genéticos e influências ambientais (ex.: epigenética e microbioma) (!). O risco de endometriose para parentes de primeiro grau aumenta em até 10,2% contra 0,7% em um grupo de controle (Ref.3), mas genes e fatores epigenéticos revelados até o momento, coletivamente, explicam apenas 5% da variância (Ref.4). Outros fatores como estresse oxidativo, resistência a apoptose, desregulação imunológica (Ref.5) e expressão aberrante de cadeias longas de RNA não-codificante (lncRNAs) (Ref.6) também parecem contribuir significativamente para essa doença. Mais recentemente, níveis relativamente baixos de testosterona durante o desenvolvimento fetal têm sido fortemente ligados, em parte, à emergência da endometriose (Ref.7). Em um contexto evolutivo, esse menor nível de testosterona e outros traços fenotípicos e genéticos associados à endometriose também parecem favorecer maior fecundidade e sucesso reprodutivo a nível populacional na nossa espécie (Homo sapiens) quando não expressos de forma patológica, e podem ter sido fixados via seleção natural - algo que explicaria a alta prevalência da condição na população humana (Ref.7).
Nesse caminho, existem duas principais hipóteses relativas ao desenvolvimento da endometriose:
- A primeira hipótese propõe que a endometriose é causada por 'fluxo retrógrado', quando a mucosa uterina (endométrio) flui para trás através das trompas de Falópio no abdômen, em vez de deixar o corpo pela vagina. Isso faria com que células endometriais se estabelecessem fora do útero. Porém, pelo menos 90% das mulheres expressam algum grau de menstruação retrógrada, e apenas uma pequena parte desenvolve a condição. Além disso, não explica manifestação da endometriose em partes distantes do corpo, como a cavidade torácica. Ou seja, esse fenômeno sozinho não pode ser responsável pelo estabelecimento da doença.
- A segunda hipótese propõe que tecido endometrial ectópico pode ser derivado de células do sistema reprodutivo feminino (duto Mülleriano) manifestando diferenciação alterada, migração ou ambos, durante o desenvolvimento uterino. Essa hipótese pode explicar lesões ectópicas em locais diversos do corpo além da cavidade peritoneal, assim como casos extremamente raros da condição em indivíduos do sexo masculino (dada à presença dos dutos Müllerianos no início do desenvolvimento fetal). Porém, a validade geral dessa hipótese é ainda desconhecida.
(!) Recentemente, em um estudo publicado na Science Translational Medicine (Ref.28), encontrou que bactérias do gênero Fusobacterium parecem estar associadas com a patogênese da endometriose - em particular, endometriose ovariana. Analisando 155 mulheres no Japão, os pesquisadores mostraram que essas bactérias estavam presentes em 64% daquelas com endometriose, comparado com apenas 7% daquelas sem a doença (grupo de controle). Além disso, experimentos in vitro e in vivo apontaram que a infecção de células endometriais com essas bactérias promovia proliferação dessas células e intensificação de lesões endometrióticas. Por fim, tratamento com antibióticos de ratos [modelos de endometriose humana] infectados com Fusobacterium amplamente preveniu o estabelecimento de endometriose e reduziu o número e a gravidade de lesões endometrióticas estabelecidas. Os resultados do estudo sugerem que erradicação dessas bactérias pode ser uma potencial via terapêutica contra a endometriose em humanos.
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A endometriose frequentemente resulta em dor pélvica crônica e severa, dispareunia (dor genital persistente ou recorrente que surge pouco antes, durante ou após a relação sexual) e fertilidade alterada, mas também pode incluir comumente dismenorreia (cólica menstrual), disuria (dor ao urinar) e fatiga crônica. No geral, os sintomas mais importantes da condição são dor e infertilidade (Ref.19). Estima-se que a endometriose é responsável por 50-80% dos casos de dor pélvica em mulheres e adolescentes e que 30-50% das mulheres com a condição possuem problemas de infertilidade (Ref.10-11). Os sintomas emergem e, para muitas mulheres, se intensificam durante um número de estágios críticos de vida, como na adolescência e no período de gravidez. Nesse último ponto, existe evidência sugerindo um risco aumentado de parto prematuro para mulheres com endometriose (Ref.12), mas um estudo mais recente conduzido na França não encontrou tal associação (Ref.17). Existe também limitada evidência sugerindo um maior risco de câncer de ovário, de tireoide e minimamente (apenas 4% maior risco) de câncer de mama em mulheres com a condição (Ref.13).
Evidência acumulada aponta que a endometriose reduz a função sexual feminina e aumenta a severidade da dor pélvica crônica e da dispareunia (Ref.21). Consequências psicológicas da endometriose incluem depressão, ansiedade, culpa, falta de força de vontade, violência auto-dirigida e deterioração das relações interpessoais, podendo também contribuir para uma menor produtividade no trabalho e menor satisfação na vida íntima (Ref.22).
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> Os mecanismos pelos quais a endometriose pode causar infertilidade são controversos, mas acredita-se que possa haver, em parte, relação com o estágio da doença.
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A endometriose ainda é uma doença diagnosticada tardiamente, e sua natureza crônica, associada ao início tardio do tratamento, frequentemente contribui para a deterioração da qualidade de vida e desenvolvimento de sofrimento psíquico das mulheres afetadas. Na vasta maioria dos casos, mulheres afetadas reportam ter suportado sintomas como forte dor menstrual e abdominal por uma média de 10 anos, e em mais de 60% dos casos os sintomas ocorrem antes dos 20 anos de idade, com visitas a até 10 diferentes médicos antes de um correto diagnóstico ser finalmente feito (Ref.18). A maioria das portadoras dessa condição começa a ter os primeiros sintomas no início da adolescência, perfazendo um percentual de 40 a 50% dos casos, mas geralmente o diagnóstico só é estabelecido por volta dos 30 anos (Ref.23). Os sintomas e lesões podem também afetar a região perianal, perineal e anal, incluindo raro envolvimento do esfíncter anal (Ref.24-27).
Para a obtenção de um diagnóstico mais preciso, destaca-se a laparoscopia, que é considerada o melhor método, o padrão ouro para diagnósticos de endometriose, por ser mais assertiva em estabelecer o resultado tanto em adolescentes quanto em adultos, permitindo dimensionar e analisar a posição correta dos focos de endometriose, o que gera maior confiabilidade quanto à existência da doença na paciente. No entanto, não existe um método diagnóstico específico para a detecção de endometriose, mas a ultrassonografia transvaginal e a ressonância magnética nuclear da pelve também são usadas, já que podem mostrar locais da doença avançada e infiltrativa. Quando a condição se manifesta fora da cavidade pélvica-abdominal, diagnóstico pode se tornar mais complicado.
Por ser uma doença de difícil diagnóstico, descobri-la torna-se uma sensação de alívio para as portadoras, pois conviver com a doença sem a certeza do diagnóstico é não saber lidar com as dores.
Não existe cura, e controle da condição tipicamente envolve reduzir ou eliminar o estímulo estrogênico que promove a proliferação do tecido endometrial (assim como os ciclos normais e fertilidade), estratégias terapêuticas para minimizar os processos associados à patogênese da condição (ex.: inflamação e formação de espécies oxidativas), cirurgia para remover as lesões ou histerectomia (remoção cirúrgica do útero). Cirurgia para a remoção das lesões pode reduzir os sintomas, mas cerca de 50% dos pacientes manifestam recorrência após 5 anos.
Nesse último ponto, repetidas cirurgias ou tratamento hormonal não garantem melhora de longo prazo relativa à redução na dor crônica causada pela endometriose. Isso possui relação com os processos patofisiológicos envolvidos nos mecanismos de dor. No começo, dor nociceptiva (dismenorreia e dor cíclica na parte inferior do abdômen) é o principal sintoma da condição, mas com o tempo processos nociplásticos também levam a uma redução no limite mínimo de sensibilidade à dor acompanhado por hiperalgesia espinhal e disfunção do chão pélvico, o que por sua vez resulta em disuria, disquesia, dispareunia e dor pélvica crônica. Somando-se a isso, mudanças nos processos inflamatórios e na inervação dentro de lesões podem levar a inflamação neurogênica, as quais podem causar dor abdominal inferior acíclica e independente de fatores hormonais. De fato, quadros de dor são reportados como a principal razão de consulta ao dermatologista em mulheres com endometriose (diagnosticada ou não, sob tratamento ou não). Tratamento para o alívio dessas dores persistentes pode ser complexo e desafiador para o profissional de saúde e o paciente, e nem sempre a via cirúrgica é recomendada. Para uma revisão completa sobre a questão, acesse as Ref.18 e Ref.19.
Existe evidência limitada de progressiva redução das taxas de incidência da endometriose nas últimas décadas, ligadas talvez a mudanças nas taxas de natalidade e uso crescente de métodos hormonais contraceptivos (Ref.13).
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CURIOSIDADE: Não apenas humanos modernos (H. sapiens), mas outros primatas com ciclo menstrual também podem desenvolver endometriose. Babuínos (Papio anubis) - cujo ciclo menstrual é similar àquele de humanos - é o exemplo mais conhecido, desenvolvendo espontaneamente endometriose com lesões ectópicas semelhantes àquelas observadas na nossa espécie (Ref.16).
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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
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