Como água régia impediu que Nazistas confiscassem medalhas do Prêmio Nobel de físicos Alemães?
Figura 1. Medalha do Prêmio Nobel. |
Água régia é uma mistura simples de ácido clorídrico (HCl) e ácido nítrico (HNO3) na proporção de 3:1 muito usada para a digestão de amostras contendo metais e/ou minerais. No caso, para a preparação de 40 mL de água régia, basta misturar 10 mL de uma solução concentrada de HNO3 com 30 mL de uma solução concentrada de HCl. A água régia é bastante corrosiva e consegue dissolver até metais nobres (muito resistentes a reações), incluindo platina, paládio e ouro.
A razão pela qual a água régia dissolve ouro e outros metais nobres é a ação independente e complementar de cada um dos seus componentes ácidos. Por exemplo, vamos considerar o ouro (Au). Quando um pedaço de ouro é imerso em uma solução de água régia, o ácido nítrico, altamente oxidante, oxida alguns átomos na superfície desse metal (Au → Au3+), enquanto os íons cloreto (Cl-) do ácido clorídrico estabilizam o cátion Au3+ na solução ao formar um complexo de coordenação solúvel (AuCl4-). O processo de oxidação seguido pela estabilização em meio aquoso dos cátions gerados - impedindo a formação de filmes protetores sobre a superfície do sólido - acaba progressivamente removendo todos os átomos de ouro do material e dissolvendo-os na solução ácida.
Figura 2. Reações durante interação entre ouro e água régia. |
Na presença apenas de ácido clorídrico ou de ácido nítrico, ouro e outros metais como paládio e platina não são dissolvidos.
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> A água régia é um poderoso agente oxidante e um forte ácido. Reage de forma exotérmica com bases químicas (ex.: aminas e hidróxidos inorgânicos) para formar sais e água. Reage com a maioria dos metais, dissolvendo-os com a geração concomitante de gases tóxicos e/ou inflamáveis (ex.: cloreto de nitrosila, dióxido de nitrogênio e gás cloro). Manipulação de água régia deve ser conduzida dentro de capela com ventilação.
> Ácido nítrico concentrado (~68%) deve sempre ser adicionado sobre o ácido clorídrico concentrado (~37%) na preparação da água régia. Durante a mistura exotérmica, a solução resultante pode alcançar >100°C.
> NÃO se deve armazenar água régia. Essa solução ácida perde rapidamente sua efetividade devido à oxidação dos seus próprios componentes reativos. Solução em excesso não utilizada deve ser neutralizada com bicarbonato de sódio e descartada em local adequado com grande quantidade de água.
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No contexto histórico, algo inusitado ocorreu envolvendo a água régia durante a Segunda Guerra Mundial.
Medalhas de ouro do Prêmio Nobel têm sido oferecidas aos ganhadores da premiação desde 1902. Até 1980, todas as medalhas do Nobel possuíam aproximadamente 200 gramas (g), 66 milímetros (mm) de diâmetro e feitas com ouro 23 quilates. Cada quilate é dividido em 24 partes, tornando-o uma medida padrão para determinar a quantidade de ouro em uma liga. O ouro 24 quilates, também conhecido como ouro mil, é considerado o ouro puro e é composto por 24 partes de ouro em um total de 24 partes, o que equivale a 99,9% de ouro. Após 1980, as medalhas do Nobel começaram a ser feitas com ouro 18 quilates reciclado, e com massa total de 175 g (exceto para o Nobel de Ciências Econômicas, com 185 g) (Fig.3).
Em meio à ascensão de Hitler e do Partido Nazista na Alemanha na década de 1930, dois físicos Alemães e vencedores do Prêmio Nobel, Max von Laue (1914) e James Franck (1925), enviaram suas medalhas de ouro para o lendário físico Niels Bohr, que vivia em Copenhagen, Dinamarca, e também um ganhador do Nobel por suas contribuições na teoria atômica. Franck era Judeu e um militante que se opôs ferozmente aos ataques étnicos e políticos que estavam ocorrendo nas universidades da Alemanha. Já von Laue era um simpatizante dos Judeus. E ambos temiam que suas medalhas fossem confiscadas pelo regime Nazista, justificando o envio para a Dinamarca.
Com os Nazistas no poder, enviar ouro para fora do território Germânico tornou-se ilegal e quase uma ofensa capital. Quando em abril de 1940 os Nazistas invadiram a Dinamarca, a presença das medalhas de Franck e de von Laue no laboratório de Bohr - onde estavam mantidas seguras - se tornou um perigo para todos os pesquisadores no local. E se os oficiais Nazistas capturassem as medalhas e vissem os nomes dos laureados ali gravados, isso poderia também levar à execução dos dois físicos na Alemanha.
Nesse sentido, um dos membros do time de Bohr, o químico Húngaro George de Hevesy - outro de origem Judia e que mais tarde também ganharia o prêmio Nobel (Fig.6) - sugeriu enterrar as medalhas no chão do laboratório. Mas Bohr rejeitou essa ideia: assim como todos os cientistas forenses sabem bem, a única coisa impossível de esconder é um buraco no chão. Com isso, Hevesy resolveu dissolver as medalhas de ouro em água régia, correndo contra o tempo à medida que as tropas Nazistas avançavam em Copenhagen. O procedimento deu certo e Hevesy colocou os béqueres contendo as medalhas dissolvidas em água régia no alto de uma prateleira do laboratório.
Os soldados Nazistas eventualmente ocuparam o instituto de Bohr e investigaram minuciosamente os laboratórios no local, mas não encontraram nada - apenas observaram dois béqueres cheios com um líquido de coloração laranja, aparentemente sem importância.
Três anos mais tarde, em 1943, a Copenhagen ocupada pelos Nazistas não mais era segura para um cientista Judeu e, nesse contexto, Hevesy deixou a Suécia. Após a derrota da Alemanha Nazista, Hevesy retornou ao laboratório, constatando alegre que os béqueres não haviam sido perturbados. Usando procedimentos básicos de química, ele então precipitou o ouro dissolvido e enviou os sólidos metálicos obtidos de volta à Academia Real Sueca de Ciências, em Estocolmo, que tinha originalmente premiado os dois Físicos Alemães com as medalhas dissolvidas. A fundação do Nobel aceitou de bom grado recunhar as medalhas, retornando-as aos seus respectivos donos em 1952.
Nas próprias palavras de Hevesy sobre os acontecimentos (Ref.3):
"Eu sugeri que nós deveríamos enterrar as medalhas, mas Bohr não gostou dessa ideia à medida que elas poderiam ser desenterradas. Eu decidi dissolver a medalhas de Laue e do James Franck. Após a guerra, o ouro foi recuperado e a Fundação do Nobel generosamente presenteou Laue e Franck com novas medalhas."
SUBSTITUTOS DA ÁGUA RÉGIA
Água régia tem sido usada por séculos para a dissolução de metais preciosos e nobres, essenciais na economia mundial, dispositivos eletrônicos e em processos industriais diversos. A maior vantagem da água régia é a simplicidade na sua preparação e, de fato, é um solvente de metais comumente usado na indústria. Porém, existem importantes desvantagens. Primeiro, a água régia não é seletiva, dissolvendo variados metais (nobres ou não) em um material, sem significativa preferência ou distinção, algo que pode dificultar a separação posterior dos metais de interesse durante reciclagem. Segundo, a água régia é altamente tóxica e corrosiva, levantando preocupações de segurança no trabalho e ambientais.
Nas últimas décadas, cientistas têm desenvolvido uma variedade de diferentes solventes para substituir a água régia no processo de recuperação de metais preciosos. Um exemplo é a "água régia orgânica", descrita por Lin et al. em 2010 (Ref.11): uma mistura entre cloreto de tionila (SOCl2) e um solvente orgânico polar como piridina, imidazol ou N, N-dimetilformamida. A água régia orgânica é capaz de dissolver seletivamente metais nobres de interesse (prata, platina, paládio, ouro) ao se variar o componente orgânico. No entanto, esses solventes não são considerados ambientalmente amigáveis.
Em 2022, em um periódico do grupo Cell (Ref.12), Xiao et al. reportou um "sal de água régia" como um solvente verde para a recuperação de metais preciosos em processos hidrometalúrgicos. O solvente em questão é baseado no sal hidratado Al(NO3)3·9H2O e em cloreto de sódio (NaCl) em solução aquosa, com posterior recuperação dos metais dissolvidos via eletrodeposição.
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REFERÊNCIAS
- https://pubchem.ncbi.nlm.nih.gov/compound/Aqua-regia
- Low et al. (2010). A visual tutorial on the synthesis of gold nanoparticles. Biomedical Imaging and Intervention Journal, 6(1):e9.
- https://pubchem.ncbi.nlm.nih.gov/compound/Aqua-regia
- https://uwaterloo.ca/safety-office/sites/default/files/uploads/files/aqua_regia_v.1.0_oct2022.pdf
- https://www.nobelprize.org/prizes/about/the-nobel-medals-and-the-medal-for-the-prize-in-economic-sciences/
- https://www.osti.gov/opennet/manhattan-project-history/People/Scientists/james-franck.html
- https://www.sydney.edu.au/news-opinion/news/2017/07/05/gold-slips-past-nazis.html
- https://ahf.nuclearmuseum.org/ahf/profile/george-de-hevesy/
- https://www.iaea.org/sites/default/files/22/06/poster-radioactive-tracers-pr.pdf
- Walters, D. B. (2008). Chemical safety in Hungary. Journal of Chemical Health and Safety, 15(1), 20–23. https://doi.org/10.1016/j.jchas.2007.06.001
- Lin et al. (2010). "Organic Aqua Regia" — Powerful Liquids for Dissolving Noble Metals. Angewandte Chemie 49, 7929 –7932. https://doi.org/10.1002/anie.201001244
- Xiao et al. (2022). Salt aqua regia as a green solvent for recovering precious metals. Cell Reports Physical Science, Volume 3, Issue 12, 101159. https://doi.org/10.1016/j.xcrp.2022.101159