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O que é a Febre de Oropouche?

Figura 1. Inseto da espécie Culicoides paraensis, principal transmissor do vírus OROV. É um inseto muito pequeno, e tipicamente mede em torno de 1,5 mm. Ref.1

- Atualizado no dia 27 de fevereiro de 2025 -

          O Brasil está testemunhando a crescente disseminação do vírus Oropouche (OROV), com a ocorrência inédita de dois óbitos causadas pela doença febril associada, ambas as ambas as vítimas do sexo feminino (21 e 24 anos de idade). Além disso, existe forte suspeita de transmissão vertical em alguns casos (infecção do feto através da grávida infectada), incluindo potenciais malformações e óbitos fetais (Ref.2, 18, 20). A febre Oropouche é uma infecção transmitida pelo inseto maruim (Fig.1) e manifesta-se de forma semelhante à dengue, incluindo dor de cabeça, dor muscular, náusea e diarreia. Em 2024, no território Brasileiro, foram confirmados quase 13,8 mil casos, a maioria nos estados do Amazonas e de Rondônia, mas com crescente expansão da doença para fora da região norte. Em comparação, em 2023 foram apenas 831 casos confirmados no país inteiro (Ref.3). Em 2025, já são mais de 5,5 mil casos confirmados, e a grande maioria fora da região norte e concentrados no Espírito Santo (Fig.2).

Figura 2. Quantidade de casos confirmados no Brasil em 2025. A cor laranja representa regiões com números significativos de casos e, quanto mais escura a cor laranja, maior o número de casos. No Espírito Santo, são 4643 casos. O segundo estado com maior número de casos é o Rio de Janeiro (485) e o terceiro é a Paraíba (287). Em Minas Gerais, são 63 casos. No total, são 5514 casos. Ref.3
 
           O Oropouche é uma doença causada por um arbovírus (vírus transmitido por artrópodes) do gênero Orthobunyavirus, da família Peribunyaviridae. Especificamente, esse vírus é transmitido com maior importância pelo mosquito Culicoides paraensis, conhecido como maruim ou mosquito-pólvora. O Orthobunyavirus oropoucheense (OROV) foi isolado pela primeira vez no Brasil em 1960, a partir de amostra de sangue de uma bicho-preguiça (Bradypus tridactylus) capturada durante a construção da rodovia Belém-Brasília. Desde então, casos isolados e surtos têm sido relatados no Brasil, principalmente nos estados da região Amazônica. O primeiro surto relevante ocorreu no ano seguinte à detecção do vírus no país, em 1961, resultando em aproximadamente 11 mil casos (Ref.4). Casos e surtos têm sido historicamente também reportados em outros países das Américas Central e do Sul.

Figura 3. Representação esquemática de um Orthobunyavirus vírion (partícula viral). Os três segmentos genômicos (pequeno, médio e grande) são encapsulados pelo nucleocapsídeo (proteína N) para formar complexos ribonucleoproteicos (RNP), os quais estão associados com a polimerase RdRp. Os RNPs são empacotados dentro de um envelope lipídico que é derivado O OROV é um vírus de RNA de fita única, com diâmetro do complexo de Golgi da célula hospedeira, modificado pela inserção das glicoproteínas virais da partícula viral. Nesse sentido, o vírus OROV, cuja partícula viral possui diâmetro de 80 a 120 nm, é um vírus baseado em RNA. Existem quatro genótipos do vírus (I, II, III e IV) em circulação; o genótipo I - com emergência estimada há aproximadamente 112 anos - é o mais disseminado no Brasil. A febre Oropouche foi primeiro descrita em Trindade e Tobago, no Caribe, em 1954. Ref.5-6

           Existem dois tipos de ciclos de transmissão do vírus Orthobunyavirus oropoucheense (OROV). No ciclo silvestre, ou seja, em áreas de mata, tanto o maruim quanto os mosquitos Coquilletti diavenezuelensis, Culex quinquefasciatus e o Aedes serratus podem carregar o vírus (Ref.3). Primatas não-humanos (ex.: Callinthrix penicillata, Sarajus spp. e Alouatta caraya), roedores, aves e bichos-preguiças parecem atuar como hospedeiros no ciclo silvestre. No ciclo urbano, isto é, nas cidades, os humanos são os principais hospedeiros do vírus e o C. paraensis é o principal vetor, mas o C. quinquefasciatus, conhecido como pernilongo ou muriçoca (Fig.4), parece também ocasionalmente transmitir o vírus. Humanos são provavelmente a ligação entre os dois ciclos: quando uma pessoa visita uma floresta ou área de mata, é infectada e retorna para uma área urbana durante a fase virêmica (Ref.6).


Figura 4. Espécime de Culicoides paraensis, principal vetor do vírus Oropouche. As fêmeas desse inseto estão entre os menores artrópodes sugadores de sangue (de 1,5 a ~2,5 mm), tornando difícil sua detecção, captura e preservação. Os maruins adultos, machos e fêmeas, se alimentam do néctar de plantas. Porém, as fêmeas do gênero Culicoides picam porque elas precisam de sangue para amadurecimento dos ovos. A picada desse inseto é muito dolorosa. Ref.1, 8

 

Figura 4. O vírus OROV pode ser potencialmente transmitido pelo pernilongo doméstico (Culex quinquefasciatusfoto). Assim como no caso do Culicoides paraenses, é a fêmea do pernilongo que seria responsável pela transmissão. Fêmeas adultas dos gêneros CulexCulicoides e Aedes se alimentam de sangue para a maturação dos ovos fertilizados. Machos desses mosquitos nunca se alimentam de sangue.

 

Figura 5. Comparação entre os mosquitos adultos Culicoides paraensis (A) e Culex quinquefasciatus (B). Ref.11

  

Figura 6. Enxame de Culicoides picando uma mão humana. Pontos avermelhados começam a se formar logo após exposição aos maruins. A picada dos Culicoides causa grande incômodo, principalmente quando presente em grande quantidade. Ela pode causar reações como dermatites alérgicas, pápulas, pústulas até reações mais graves como eczema, descamação e cicatrizes com pigmentação anormal da pele de humanos.

           Essa arbovirose causa uma infecção aguda, assim como outras doenças arbovirais, com picos febris (~39°C), dor de cabeça intensa, dor muscular, artralgia (dor nas articulações), náusea, fotofobia, diarreia e vômitos. Febre e dor de cabeça são os sintomas mais comuns. A infecção sintomática - chamada de febre de Oropouche - é autolimitada com duração de aproximadamente cinco dias (faixa de 2 a 7 dias), mas pode existir em casos muito raros evolução mais grave causando meningites ou meningocefalites (Ref.5, 12). Em alguns casos, erupções cutâneas, petéquias e sinais hemorrágicos podem ser manifestados. O período de incubação da doença - período de infecção antes da emergência de sintomas - é de 3-8 dias. A ocorrência de um segundo episódio sintomático 2-4 semanas após resolução sintomática inicial é comum, mas sem aparente detecção viral no corpo durante a recorrência.

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           O diagnóstico é clínico, epidemiológico e laboratorial, incluindo testes moleculares (ex.: RT-PCR). Todo caso com diagnóstico de infecção pelo OROV deve ser notificado. O Oropouche compõe a lista de doenças de notificação compulsória, classificada entre as doenças de notificação imediata, em função do potencial epidêmico e da alta capacidade de mutação, podendo se tornar uma ameaça à saúde pública. 

           Tratamento da doença é voltado totalmente para os sintomas apresentados, e é tipicamente feito com antitérmicos (1), analgésico e anti-inflamatórios, exceto fármacos baseados em ácido acetilsalicílico (aspirina) (3) devido a possível quadro de dengue não esclarecido (3). Não existe tratamento antiviral específico; os pacientes devem permanecer em repouso, com tratamento sintomático e acompanhamento médico. Também não existe vacina contra a doença.

Leitura recomendada:


          Considerando que é uma doença viral transmitida primariamente pelo maruim, prevenção envolve:

- evitar o contato com áreas de ocorrência e/ou minimizar a exposição às picadas dos vetores;

- usar roupas que cubram a maior parte do corpo e aplique repelente nas áreas expostas da pele.

- limpeza de terrenos e de locais de criação de animais;

- recolhimento de folhas e frutos que caem no solo;

- uso de telas de malha fina em portas e janelas.

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Importante: em caso de sintomas suspeitos, procure ajuda médica imediatamente e informe sobre sua exposição potencial à doença.

> Os mosquitos vetores também se proliferam em água parada, portanto, remova possíveis criadouros. As larvas de C. paraensis podem se desenvolver em vários habitats capazes de permanecer úmidos e ricos em matéria orgânica.

 

Figura 6. Insetos da espécie Culicoides paraensis. A fêmea do maruim procura locais com bastante matéria orgânica e umidade para depositar seus ovos. Nas florestas, troncos de árvore em decomposição, cascas de frutas caídas no chão, bromélias, beiras de riachos, folhagem do solo são os locais preferenciais. Nos bananais, ela deposita os ovos no cepo da bananeira, parte do caule que fica quando a árvore é cortada para colheita da banana. Na área urbana, ela pode colocar ovos no quintal se houver qualquer tipo de matéria orgânica acumulada no chão. Ref.1

> O C. paraensis é reportado de ser abundante durante mentes chuvosos ou quentes do ano. Prefere picar humanos em ambientes internos (ex.: dentro de casas) durante o dia e a noite, mais frequentemente no final da tarde. Essas características também atuam para dificultar o diagnóstico diferencial em relação a outras doenças causadas por arbovírus e comuns na estação chuvosa, como dengue, Zika, chikungunya, Mayaro e encefalite equina Venezuelana.

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          Negligenciada por muitos anos no Brasil, a doença tem ganhado cada vez mais atenção da comunidade científica a partir de surtos isolados periódicos cada vez mais frequentes, principalmente na região Norte e no Mato Grosso. Mais de 500 mil casos de infecção pelo vírus OROV têm sido registrados na América Latina, especialmente no Brasil e no Peru, e o real número de infecções provavelmente é muito maior (Ref.13).

          No atual surto epidêmico no território Brasileiro, onde a doença está afetando de forma significativa regiões além do Norte, existe evidência recente que o vírus OROV em ampla circulação ganhou maior capacidade de replicação e maior capacidade de evasão imune em relação a cepas prévias. 

            Em um estudo recente (Ref.14), pesquisadores conduziram testes in vivo e in vitro e concluíram que a atual cepa epidêmica do vírus OROV é resultante de um novo rearranjo viral - quando células infectadas com múltiplos e distintos vírus de RNA promovem mistura e combinação de diferentes materiais genéticos nas novas partículas virais sendo produzidas no meio intracelular - que resultou em partículas virais com replicação aproximadamente 100x maior em células de mamíferos do que uma cepa de controle. Soro coletado de indivíduos em 2016 infectados com o vírus OROV mostrou uma redução de pelo menos 32x na capacidade de neutralização em relação ao controle. Os experimentos in vitro também apontaram que a nova cepa é também mais virulenta.

          Existe também evidência crescente de transmissão vertical do vírus OROV e resultantes complicações fetais e neonatais envolvendo malformações congênitas. Em um estudo publicado no periódico The Lancet Infectious Diseases (Ref.20), pesquisadores analisaram amostras de 3 casos históricos e de 3 casos de 2024 de bebês que nasceram com malformações congênitas (microcefalia sem causa determinada) no Brasil. Todos os casos testaram positivo para OROV, e com IgM para OROV detectado nas amostras de fluido cerebrospinal de cinco dos casos. Desses cinco casos, quatro das amostras sanguíneas maternas disponíveis testaram positivo para IgM-OROV. Teste de PCR-RT em tempo real para RNA de OROV foi positivo no fluido cerebrospinal de um dos bebês; neste caso, grandes mudanças microscópicas e macroscópicas no tecido cerebral foram observadas, incluindo mudanças necróticas e apoptóticas de neurônios, micróglias e astrócitos, vacuolização e atrofia tecidual - e RNA e antígenos do vírus OROV foram encontrado disseminado em tecidos diversos do corpo.

           Existe também evidência de potencial aborto espontâneo induzido por infecção do vírus OROV no primeiro trimestre de gestação (Ref.21).

          Um estudo recente publicado no periódico Genes (Ref.22) apontou 3 casos confirmados de transmissão vertical, dois casos de morte fetal e um caso de malformação congênita envolvendo o vírus OROV. O autor do estudo apontou também investigação do possível papel do vírus em 15 casos de morte fetal, 3 casos de malformações congênitas e 5 abortos espontâneos.

          Além de transmissão vertical no processo de parto, um provável mecanismo de transmissão transplacentária envolve a entrada do vírus OROV na placenta através do sangue materno nas artérias espirais uterinas, permitindo ao vírus circular dentro do espaço inverviloso e se ligar na camada celular protetora da interface materna-fetal, alcançando eventualmente as células trofoblásticas e a circulação fetal (Ref.23). Na circulação sanguínea do feto, o vírus pode causar malformações diversas. Mecanismos moleculares e celulares exatos de transmissão através da placenta ainda precisam ser esclarecidos.


   Aquecimento global

           As arboviroses (doenças virais transmitidas principalmente por mosquitos), em geral, têm tido um comportamento anormal ao longo dos últimos anos pelo aquecimento, se manifestando até na Europa, na América Central e nos Estados Unidos (1). Tanto que a Organização Mundial da Saúde passou a considerar grandes surtos de arboviroses como novas ameaças globais à saúde – sobretudo os que têm ocorrido desde 2014 em áreas não endêmicas. Diante do avanço da febre Oropouche por áreas incomuns no Brasil, é possível aventar um impacto das mudanças climáticas nessa dinâmica. Longas estiagens e o desmatamento na região amazônica podem disseminar a ocorrência destas doenças para outras regiões.

Leitura recomendada:


           Fatores contribuindo para a disseminação de doenças como a febre Oroupoche, chikungunya (2), dengue e Zika incluem urbanização, desmatamento e mudanças climáticas, estas as quais estão associadas com crescente temperatura global, ondas de calor, secas, chuvas extremas e inundações. Esses fatores tornam o ambiente mais favorável à reprodução e atividade de mosquitos vetores de doenças diversas

          É provável que em um futuro próximo o vírus OROV vai se expandir além da América Latina (Ref.15).


REFERÊNCIAS

  1. https://www.ioc.fiocruz.br/noticias/conheca-o-inseto-culicoides-paraensis-vetor-principal-da-febre-oropouche
  2. https://portal.fiocruz.br/noticia/2024/08/comunidade-cientifica-discute-oropouche-em-pernambuco
  3. https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/o/oropouche
  4. Sah et al. (2024). Oropouche fever outbreak in Brazil: an emerging concern in Latin America. The Lancet Microbe. https://doi.org/10.1016/S2666-5247(24)00136-8
  5. Elliott, R. (2014). Orthobunyaviruses: recent genetic and structural insights. Nature Review Microbiology 12, 673–685. https://doi.org/10.1038/nrmicro3332
  6. Sakkas et al. (2018). Oropouche Fever: A Review. Viruses 10(4), 175. https://doi.org/10.3390/v10040175
  7. https://butantan.gov.br/noticias/febre-oropouche-entenda-a-doenca-e-os-possiveis-motivos-para-ela-se-espalhar-pelo-brasil
  8. Romero-Álvarez et al. (2018). Emergent viruses in America: The case of Oropouche virus. International Journal of Infectious Diseases. 73. 98. https://doi.org/10.1016/j.ijid.2018.04.3644
  9. Pereira et al. (2021). Epidemiologia, diagnóstico e tratamento da febre de Oropouche no Brasil: revisão de literatura. Brazilian Journal of Health Review, vol. 4, n. 6, p.23912-23920. https://doi.org/10.34119/bjhrv4n6-023
  10. Romero-Alvarez et al. (2023). Transmission risk of Oropouche fever across the Americas. Infectious Disease of Poverty 12, 47. https://doi.org/10.1186/s40249-023-01091-2
  11. https://www.paho.org/pt/noticias/24-7-2024-perguntas-e-respostas-sobre-virus-oropouche
  12. Wesselmann et al. (2024). Emergence of Oropouche fever in Latin America: a narrative review. The Lancet Infectious Diseases, Volume 24, Issue 7, E439-E452. https://doi.org/10.1016/S1473-3099(23)00740-5
  13. Vieira et al. (2024). Outbreak of Oropouche virus in frontier regions in western Amazon. Microbiology Spectrum, Vol. 12, No. 3. https://doi.org/10.1128/spectrum.01629-23
  14. Scachetti et al. (2024). Re-emergence of Oropouche virus between 2023 and 2024 in Brazil: an observational epidemiological study. The Lancet Infectious Diseases. https://doi.org/10.1016/S1473-3099(24)00619-4
  15. Sun et al. (2024). Oropouche virus: A neglected global arboviral threat. Virus Research, Volume 341, 199318. https://doi.org/10.1016/j.virusres.2024.199318
  16. https://www.nature.com/articles/d41586-024-02746-2
  17. https://www.cdc.gov/oropouche/about/index.html
  18. Samara et al. (2024). Potential vertical transmission of Oropouche virus during the current outbreak. The Lancet Infectious Diseases. https://doi.org/10.1016/S1473-3099(24)00571-1
  19. https://www.paho.org/en/news/10-9-2024-paho-publishes-update-oropouche-fever-americas
  20. Martins et al. (2025). Newborns with microcephaly in Brazil and potential vertical transmission of Oropouche virus: a case series. The Lancet Infectious Diseases, Volume 25, Issue 2, P155-165. https://doi.org/10.1016/S1473-3099(24)00617-0
  21. https://wwwnc.cdc.gov/eid/article/31/4/24-1986_article
  22. Schwartz, D. A. (2025). Novel Reassortants of Oropouche Virus (OROV) Are Causing Maternal–Fetal Infection During Pregnancy, Stillbirth, Congenital Microcephaly and Malformation Syndromes. Genes 2025, 16(1), 87. https://doi.org/10.3390/genes16010087
  23. Schwartz et al. (2025). A potential mechanism of transplacental transmission of Oropouche virus in pregnancy. The Lancet Microbe. https://doi.org/10.1016/j.lanmic.2025.101083