Identidade de Gênero é uma Ideologia?
- Atualizado no dia 21 de setembro de 2024 -
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Desde a conturbada eleição presidencial no final de 2018, o uso e abuso em relação ao conceito de gênero, especialmente sob a bandeira da 'ideologia de gênero', vêm crescendo de forma sem precedentes no Brasil. Um dos pilares simbólicos do ex-governo Bolsonaro e insistentemente abordado pela ex-Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, a discussão política sobre ideologia de gênero foge do significado histórico do termo para englobar um amplo espectro de desinformações que mistura cultura, construtivismo social e biologia, incluindo a questão das orientações sexuais. Mas o que de fato é a tão repercutida ideologia de gênero?
Para explorarmos esse tema, podemos começar dividindo 'gênero' em duas esferas de abordagem: histórica e biológica. Entender cada uma dessas esferas separadamente é importante para resolvermos o mar de desinformações no qual hoje nos encontramos. Nesse sentido, este artigo foi dividido em quatro partes:
- IDEOLOGIAS DE GÊNERO - O papel dos gêneros na sociedade
- BIOLOGIA DE GÊNERO - Os fatores biológicos por trás da construção do gênero
- CRUZADA IDEOLÓGICA - O uso da ideologia tradicional de gênero como bandeira política, incluindo a evolução desse movimento aqui no Brasil
- DISCUSSÃO - Uma breve análise conjunta sobre os tópicos anteriores explorados, incluindo também o controverso posicionamento da Faculdade Americana de Pediatras
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As ideologias de gênero estão em íntima associação com o desenvolvimento e volubilidade das sociedades, grupos sociais e indivíduos ao longo da história humana. Nesse sentido, temos que as ideologias de gênero são um conjunto de crenças culturais sobre o valor relativo e as naturezas essenciais de homens e de mulheres, em termos dos seus papeis na sociedade. Historicamente, especialmente no Ocidente, essas crenças são quase sempre baseadas em um entendimento binário ligado à existência de dois sexos biológicos opostos, ou seja, um gênero 'feminino' específico para as mulheres e um gênero 'masculino' específico para os homens.
Como é de amplo conhecimento comum, os papeis do homem e da mulher nas sociedades tanto orientais quanto ocidentais mudou profundamente ao longo nos últimos séculos, alcançando um ponto de virada durante a Revolução Industrial iniciada na Inglaterra do século XVIII, quando as mulheres começaram a sair em massa dos afazeres domésticos e serem empregadas nas fábricas em ascensão. Mas para cada país e/ou cultura, os efeitos de grandes eventos históricos moldaram diferentemente os níveis de suporte para a divisão de trabalho assalariado e de responsabilidades familiares baseada em parte na crença de existência de papeis pré-determinados para cada gênero.
Embora a ideologia de gênero é geralmente enquadrada como um conceito unidimensional variando de igualitário - premissa em que os diferentes gêneros possuem o mesmo potencial e direito de papeis na sociedade - para tradicional - premissa em que os diferentes gêneros possuem papeis bem distintos na sociedade -, existem acadêmicos que defendem um conceito multidimensional, sob a justificativa que as crenças sobre os papeis dos homens e das mulheres são mais complexos do que um espectro contínuo com tradicional de um canto e igualitário do outro (Ref.2). Isso porque dentro de uma única esfera de análise pode existir um tratamento igualitário entre os gêneros no mercado de trabalho, mas na esfera doméstica pode prevalecer um tratamento tradicional dos gêneros, como ocorre em muitos países Europeus atualmente. A sociedade Viking é outro exemplo famoso onde os papeis dos gêneros não eram tão bem definidos, onde mulheres podiam atuar em batalhas, inclusive como comandantes de alta patente, mas ao mesmo tempo eram também associadas às atividades domésticas, algo nunca associado aos homens (1). Além disso, pode existir uma valorização acentuadamente diferenciada entre as duas esferas, com o mercado de trabalho sendo uma maior prioridade para os pais, por exemplo, do que os afazeres domésticos e atenção à família.
- (1) Para saber mais sobre a Era Viking, acesse: Vikings: Uma subestimada sociedade
De qualquer forma, ideologias igualitárias de gênero - ou 'liberal igualitarismo' - refletem a crença na responsabilidade e na capacidade conjunta para ganhos salariais e cuidado da família/filhos e enfatiza a escolha individual, e não um pré-determinismo de traços de gênero, em relação aos acordos de divisão de tarefas adotados na prática. Já as ideologias tradicionais de gênero, em contraste, geralmente se referem a crenças na separação de gêneros para a divisão de tarefas no mercado de trabalho e nos domínios familiares. Na prática e generalizando, os indivíduos tradicionalistas consideram a esfera salarial como masculina e a esfera doméstica não-assalariada ("bela, recatada e do lar") como feminina, onde traços gênero-específicos pré-orientariam essas ocupações (papeis naturais).
Outro exemplo marcante de ideologia de gênero é o uso de cosméticos ao longo da história. Cosméticos eram amplamente usados por homens (algo masculino) no Antigo Egito, nas cortes Francesas dos séculos XVII e XVIII, e pelos oficiais militares Britânicos. Porém, no século XX e parte do século XXI, passou a ser considerado algo característico e apenas aceitável quando associado às mulheres (algo feminino). Mais recentemente, o uso dos cosméticos começou novamente a se tornar cada vez mais aceitável entre os homens nas sociedades Ocidentais. Normas sociais de papeis de gênero determinam a aceitabilidade dos cosméticos entre homens e mulheres.
Além do fator histórico de passagem de tempo, as ideologias de gênero se manifestam à medida que o indivíduo atinge a maturidade e adquire experiência de vida e também são influenciadas significativamente pelas crenças religiosas e ideologias sociais defendidas pelos grupos onde o indivíduo está inserido. Apesar do fator religioso ser visto por muitos como o mais impactante para a emergência de uma ideologia mais tradicional, hierárquica - Judaísmo, Islamismo e Cristianismo sempre foram ligados a uma maior subjugação da mulher frente a figura masculina -, e apesar de crenças tradicionalistas de gênero estarem de fato associadas com as tradições religiosas, estudos recentes (Ref.3) encontram evidências de que as atitudes sócio-ideológicas inerentes ao modo de ver o mundo do indivíduo são um fator bem mais importante. Esses indivíduos mais tradicionalistas têm sido ligados a um comportamento mais autoritário no lado masculino, por exemplo, independentemente do quão religiosos eles são. Porém, esses indivíduos tendem a ser mais religiosos, mas como uma consequência. Por outro lado, uma pessoa muito religiosa não necessariamente possui uma visão mais tradicionalista de gênero.
Entender as ideologias de gênero - através dos estudos de gênero - no contexto de cada país/sociedade é extremamente importante para a discussão e promoção de estratégias políticas que visem licenças paternidade e maternidade, suporte para creches infantis, resolução da violência e das desigualdades econômicas, trabalhistas e educacionais gênero-baseadas (2), programas de planejamento familiar, entre outros.
- (2) Sugestão de leitura: Diferença salarial e o teto invisível: Obstáculos na luta pela igualdade entre homens e mulheres
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Na espécie humana (Homo sapiens), o sexo de uma pessoa - macho ou fêmea - é determinado pelos cromossomos sexuais XX (fêmea) e XY (macho), com exceções envolvendo tipicamente mutações ou anomalias genéticas. O cromossomo Y é herdado sempre do pai, e este irá determinar o sexo masculino. Se um cromossomo Y está presente, uma cascata genética é iniciada que causa as gônadas previamente não diferenciadas a se transformarem em testículos; na ausência de um cromossomo Y, uma cascata alternada leva à diferenciação dos ovários. Os testículos produzem o hormônio andrógeno testosterona, o qual é responsável pela masculinização das genitálias, ductos e sistemas internos, e outras diferenças somáticas, incluindo diferenciação sexual no desenvolvimento neural. Nesse sentido, as características sexuais masculinas e femininas (fenótipo sexual), como as genitálias, são definidas exclusivamente pelo fator genético. Portanto, como uma regra geral, ou um indivíduo é macho (sexo masculino) ou um indivíduo é fêmea (sexo feminino).
Gênero é uma construção social, cultural e histórica que busca classificar os indivíduos com base em comportamentos, atividades, expressão (ex.: roupas), fenótipos externos e outras características esperados para cada sexo (masculino ou feminino). Tradicionalmente, essa classificação distribui os indivíduos como homens ou mulheres. Em termos de biologia, a identidade de gênero - aqui nos afastamos do conceito de ideologias de gênero - é o senso interno do indivíduo de autoidentificação com um gênero em uma dada sociedade (homem, mulher ou não-binário). Geralmente essa autoidentificação coincide com o gênero socialmente esperado para um determinado sexo. A identidade de gênero é muito mais complexa do que um simples determinismo cromossômico ("XX ou XY"), e está associada primariamente a fatores neurobiológicos.
Toda pessoa possui uma identidade de gênero. Crianças tipicamente se tornam cientes do seu gênero entre as idades de três e cinco anos. As variações de identidade de gênero [espectro] são englobadas em dois conjuntos gerais: transgêneros e cisgêneros. Cisgênero é usado para se referir a uma identidade de gênero esperada para o sexo biológico do indivíduo (determinado pela anatomia ou exame genético). Transgênero é uma identidade de gênero que difere daquela esperada para o sexo biológico da pessoa, e pode ou não estar associada à transexualidade (marcada por uma disforia de gênero mais acentuada) (1).
- (1) Sugestão de leitura: A transexualidade é uma doença?
Algo muito importante a ser reforçado é que a identidade de gênero NÃO é o mesmo que 'papeis de gênero' (ideologias de gênero), 'expressão de gênero', ou 'orientação sexual', apesar desses termos estarem correlacionados. Para exemplificar, um indivíduo pode ser um homem cisgênero (sexo masculino) mas rejeitar o papel estereotipado associado à visão tradicional de um homem (chefe de família, autoritário, gerador exclusivo de renda no lar e afastado das atividades domésticas). Além disso, indivíduos transgêneros e cisgêneros podem exibir orientações sexuais diversas (heterossexualidade, bissexualidade, homossexualidade), independentemente do gênero ou sexo biológico. Já a expressão de gênero se refere a como o indivíduo expressa sua identidade de gênero para o mundo (aparência física, roupas, comportamento). Um transgênero, por exemplo, não é necessariamente um travesti ou um transexual.
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> Exemplo de um caso na Espanha, descrito em periódico médico, de um indivíduo transexual do sexo masculino com atração sexual pelo sexo feminino: acesse o texto aqui.
> Indivíduos transgêneros têm sido inferidos ou identificados na história humana desde a Antiguidade e ao longo de várias culturas, sendo interpretados ou referenciados de diferentes formas em mitologias, religiões, medicina e sociedade. Ref.104-106
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Em particular - e talvez mais importante por gerar muita confusão entre o público e mesmo em publicações acadêmicas -, a expressão do gênero está ligada em grande parte às expectativas sócio-culturais e realizada através de uma variedade de meios como roupas, estética corporal (ex.: maquiagem), maneirismos, padrões de fala, comportamentos e pronomes (ex.: ele, ela, dele, dela, etc.). Por exemplo, um homem cisgênero é biologicamente do sexo masculino e se identifica com os padrões da sociedade (expectativa) associados a como alguém do sexo masculino deve se portar, vestir e se comportar. Já a identidade de gênero é justamente essa identificação [ou falta de identificação] interna com os padrões esperados [gênero] para cada sexo. Porém, essa identificação vai além daquela sócio-culturalmente determinada, e também engloba comportamentos, diferenças físicas, processamentos cognitivos e/ou expressões emocionais inatos (ex.: maior empatia entre as mulheres; maior agressividade entre os homens) expressos de forma distinta entre os sexos (fatores biológicos) e os quais podem ser sutis ou não. Por exemplo, uma mulher cisgênera é biologicamente do sexo feminino e geralmente se identifica com uma voz mais aguda (frequência média de vibração da dobra vocal 80 Hz mais baixa), típica de um indivíduo do sexo feminino e determinada por diferenças físicas nas cordas vocais e na laringe.
Em particular - e talvez mais importante por gerar muita confusão entre o público e mesmo em publicações acadêmicas -, a expressão do gênero está ligada em grande parte às expectativas sócio-culturais e realizada através de uma variedade de meios como roupas, estética corporal (ex.: maquiagem), maneirismos, padrões de fala, comportamentos e pronomes (ex.: ele, ela, dele, dela, etc.). Por exemplo, um homem cisgênero é biologicamente do sexo masculino e se identifica com os padrões da sociedade (expectativa) associados a como alguém do sexo masculino deve se portar, vestir e se comportar. Já a identidade de gênero é justamente essa identificação [ou falta de identificação] interna com os padrões esperados [gênero] para cada sexo. Porém, essa identificação vai além daquela sócio-culturalmente determinada, e também engloba comportamentos, diferenças físicas, processamentos cognitivos e/ou expressões emocionais inatos (ex.: maior empatia entre as mulheres; maior agressividade entre os homens) expressos de forma distinta entre os sexos (fatores biológicos) e os quais podem ser sutis ou não. Por exemplo, uma mulher cisgênera é biologicamente do sexo feminino e geralmente se identifica com uma voz mais aguda (frequência média de vibração da dobra vocal 80 Hz mais baixa), típica de um indivíduo do sexo feminino e determinada por diferenças físicas nas cordas vocais e na laringe.
Por outro lado, enquanto a maioria das mulheres transgêneros, por exemplo, consideram crítico uma transição para uma voz mais aguda e feminina - utilizando terapia com testosterona para tal -, outras podem não achar essa questão tão importante. Nem sempre um transgênero busca adquirir as características físicas dimórficas do sexo de afinidade, e pode escolher não utilizar terapias hormonais ou cirurgias de mudança de sexo (transexualidade), limitando-se a expressões travesti-associadas e outros comportamentos ligados ao sexo oposto.
Apesar dos cientistas hoje não terem conseguido identificar todos os fatores que levam às variações de identidade de gênero, causas genéticas, hormonais (durante o desenvolvimento embrionário) e talvez epigenética (ativadas por fatores ambientais) claramente estão presentes, não apenas fatores sócio-culturais. Aliás, para citar um exemplo bem notável, estudos com macacos Rhesus mostram que esses primatas também possuem uma preferência gênero-baseada a brinquedos similar às preferências humanas associadas ao sexo masculino ou ao sexo feminino durante a infância (Ref.8), sem que isso esteja ligado ao aprendizado, o que é uma entre várias evidências que derrubam a ideia de que o encorajamento a adotar [identificação] comportamentos diferenciados dependentes do sexo biológico é puramente ligado às pressões sociais, mas, sim, que está enraizado profundamente nas nossas origens evolucionárias. Crianças humanas do sexo masculino tendem a se identificar com protagonistas homens nas histórias, tendem a formar amizade com meninos e tendem a preferir certas brincadeiras. Crianças do sexo feminino tendem a se identificar com protagonistas mulheres, tendem a formar amizade com meninas e tendem a preferir certas brincadeiras.
ESTRUTURA CEREBRAL E IDENTIDADE DE GÊNERO
É nesse contexto que podemos citar um interessante fenômeno. Desde as décadas de 1950 e de 1960, médicos-cirurgiões, com o intuito de ajudar os bebês com genitália ambígua, muitas vezes realizavam uma cirurgia para deixá-los com uma genitália feminina, porque é mais fácil criar uma vagina do que um pênis, e pediam que os pais nunca contassem para seus filhos sobre o procedimento, orientando-os a criá-los como se fossem meninas. A crença sempre era de que o simples construtivismo social moldaria uma identidade de gênero correspondente ao sexo feminino nessas crianças. Porém, isso mostrou-se extremamente falho: à medida que essas crianças cresciam, muitas (mais da metade) com o genótipo XY percebiam que não eram meninas, mesmo vestindo-se como meninas e possuindo um órgão genital típico de uma menina. Ou seja, quando a identidade de gênero de uma pessoa, via influências hormonais e genéticas, é decididamente correspondente ao sexo masculino, não adianta muito ensiná-las o contrário.
Por causa desses casos e de outros similares, pesquisadores em um simpósio da Associação Americana para o Progresso da Ciência de 2005 (encontro anual) (Ref.9) pediram veementemente para que cirurgias de mudança de sexo nesses bebês de gênero ambíguo não fossem realizadas sem antes a criança identificar seu gênero.
GENÉTICA
No caso genético, a hipótese mais aceita e com um vasto número de evidências é que o fenótipo de gênero é expresso a partir de um modelo poligenético, o que explicaria perfeitamente porque não existe uma clara divisão ao longo do espectro cis-transgênero. Nesse sentido, a identidade de gênero é determinada por uma complexa, multifatorial e poligenética rede de fatores. E uma coisa é mais do que evidente: gênero não é uma simples questão de escolha, assim como a orientação sexual.
Definindo masculinidade em termos de ser "agressivo, dominante e independente" e feminidade como sendo "caloroso, sensível e zeloso" - de forma mais generalista possível -, estudos com gêmeos monozigóticos e dizigóticos, e com adultos e jovens aleatórios em diferentes populações, sugerem que a hereditariedade genética de gênero fica em torno de 38-40%. Usando ferramentas mais complexas de diagnóstico de gênero, essa hereditariedade chega a alcançar 53% (Ref.18). Fatores ambientais não compartilhados explicam o restante da variância. Na infância, os fatores genéticos parecem ter menor influência nos meninos do que nas meninas. Dois estudos de 2005 (Ref.16-17) mostram que o fator genético para meninos era 17-34%, ambiental (compartilhado) 29-67%; e para as meninas o genético encontrado foi de 40-57% e ambiental (compartilhado) 0-45%.
Outra situação nesse sentido demonstrada em um estudo publicado em 2018 na Science (Ref.54) é que uma única deleção em uma região regulatória crítica (alelo Enh13) do gene Sox9 - crucial para a determinação do sexo masculino (diferenciação dos testículos, etc.) - faz com que machos XY tenham um fenótipo de fêmeas, incluindo ovários e aparelho reprodutor indistinguíveis de uma fêmea XX. Mutações no gene Sox9 também estão ligadas com o desenvolvimento sexual reverso nos humanos.
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> Nos mamíferos, o gene Sry, presente no cromossomo Y, codifica uma proteína que é temporariamente expressa e inicia o desenvolvimento dos testículos e subsequente desenvolvimento masculino ao ativar a diferenciação das células da linhagem celular de suporte em células Sertoli ao invés de células granulosas típicas de ovários. O gene Sox9 é o seu principal alvo.
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O cérebro embriônico de ratos mostra claras diferenças sexo-específicas. Nesses mamíferos, dezenas de genes são expressos diferentemente no cérebro de machos e de fêmeas apenas 10 dias após a concepção, e anterior à exposição de hormônios. Em um estudo publicado recentemente no periódico Cell (Ref.81), analisando áreas no cérebro de ratos (conservadas em humanos) associadas a comportamentos sociais ligados ao sexo ou ao típico estado de cio, foram encontrados 1415 genes com atividade sexualmente dismórfica em quatro populações de neurônios expressando o receptor-1 de estrogênio (Esr1+), incluindo um tipo celular essencial para o reconhecimento de sexo, agressividade e engajamento sexual em machos, e um tipo celular essencial para o comportamento de acasalamento nas fêmeas.
Na verdade, podemos enumerar múltiplas fortes evidências sendo acumuladas nos últimos anos dando suporte ao papel da genética na construção da identidade de gênero:
- Publicado em janeiro deste ano periódico eLife (Ref.10), um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de Columbia, EUA, ao analisar vermes da espécie Caenorhabditis elegans, revelou genes regulatórios - let-7, lin-28 e lin-41 - que agem dentro de neurônios específicos para induzir diferenças anatômicas e funcionais entre os cérebros dos machos e dos hermafroditas. E esses genes possuem correspondência conservada - durante a evolução biológica - no cérebro dos humanos. Ou seja, esses genes provavelmente também são os responsáveis por parte das diferenças entre masculino e feminino, incluindo orientações hormonais durante a puberdade.
Os pesquisadores mostraram que quando mutado o gene lin28 - presente tanto em humanos quanto nesses vermes - o C. elegans passava a ter uma puberdade adiantada, exatamente como os humanos. A partir desse achado, os pesquisadores procuraram por outros genes ligados ao lin28 e também associados com uma maturação sexual prematura no verme. O mais interessante entre os genes identificados foi o lin29A, presente apenas no cérebro dos vermes machos e expresso nos neurônios centrais. Quando jovem, o gene lin-41 fica ativo e reprime o lin-29A, mas quando o verme atinge a maturidade, o let-7 desliga o lin-41, ativando o lin-29A em neurônios específicos. Os pesquisadores então mostraram que vermes sem o Lin29A possuíam uma aparência de macho mas se comportavam mais como hermafroditas! Na palavra dos pesquisadores, a ausência do Lin29A basicamente feminizava os machos. Correspondentes desse gene nos humanos possuem a mesma função? Provável. De qualquer forma, o estudo mostrou que o gene lin29A possui a função de ativar comportamentos específicos dos vermes machos não-dependentes de hormônios ou da constituição anatômica.
Aliás, um recente avanço no campo da neurociência emergiu com o mapeamento completo dos circuitos neurais (connectomes) do C. elegans em resolução subcelular (Ref.56). Analisando integralmente os sistemas nervosos de ambos os sexos (hermafrodita, XX, e macho, XO) os pesquisadores encontraram que numerosas conexões - até 30% - pareciam diferir em força na região da cabeça, particularmente no tamanho médio em certas sinapses. Esse achado foi uma surpresa, já que a anatomia geral do sistema nervoso é quase equivalente entre os sexos nessa região. Ou seja, isso reforça que pequenas perturbações no desenvolvimento ou na expressão de genes podem ser suficientes para modificar esses circuitos de forma a acarretar mudanças substanciais de comportamento entre os sexos. Não é necessário modificar drasticamente a estrutura cerebral.
Além disso, evidências científicas confirmam os efeitos de andrógenos durante o desenvolvimento embrionário nas atividades associadas à orientação do gênero (Ref.12). O grau de exposição aos andrógenos (inferido do tipo de mutação no gene CYP21A2 que causa a HAC e a severidade da doença) está relacionado linearmente e moderadamente à extensão de interesse em atividades típicas do gênero masculino. Variações no nível de testosterona no ambiente uterino (medido no fluído amniótico), independentemente da existência de uma HAC, também estão ligadas ao comportamento preferencial das crianças. Existe inclusive documentado o caso de três indivíduos expressando disforia de gênero na fase adulta que foram expostos no útero a anti-convulsantes (fenobarbital e difantoína), estes os quais podem interferir com o metabolismo de hormônios sexuais e, portanto, agir da diferenciação sexual do cérebro (Ref.71).
Em outras palavras, e de forma resumida, a identidade de gênero é o senso interno do indivíduo de afinidade a padrões biológicos e sócio-culturais atribuídos ao sexo masculino ou ao sexo feminino. Variações nessa afinidade resultam em um espectro de gêneros marcando a cisgeneridade e a transgeneridade. A expressão do gênero pode ser moldada via fatores sociais e culturais. A identidade de gênero não é uma escolha, e o acúmulo de evidências científicas suportam sua determinação como fruto principalmente - se não inteiramente - de fatores neurobiológicos e inerentes ao indivíduo. O gênero (expressão e identidade), portanto, engloba uma mistura de fatores biológicos e sócio-culturais.
Nos EUA, é estimado que aproximadamente 0,6% das pessoas são transgêneros e, na Europa, de 0,8% a 1,1%, com base em pesquisas nacionais de autoreporte. A nível global, é estimado que 0,5% da população adulta (~25 milhões de pessoas) se identifica como transgênero. Porém, esses números podem estar significativamente subestimados devido ao alto nível de preconceito contra essas minorias e considerando a grande variação no espectro de gêneros. De qualquer forma, assim como a orientação sexual é fortemente determinada por fatores biológicos (genética, hormônios e talvez epigenética), esses mesmos fatores atuam para a determinação da identidade de gênero, explicando também a emergência da transgeneridade.
Nos EUA, é estimado que aproximadamente 0,6% das pessoas são transgêneros e, na Europa, de 0,8% a 1,1%, com base em pesquisas nacionais de autoreporte. A nível global, é estimado que 0,5% da população adulta (~25 milhões de pessoas) se identifica como transgênero. Porém, esses números podem estar significativamente subestimados devido ao alto nível de preconceito contra essas minorias e considerando a grande variação no espectro de gêneros. De qualquer forma, assim como a orientação sexual é fortemente determinada por fatores biológicos (genética, hormônios e talvez epigenética), esses mesmos fatores atuam para a determinação da identidade de gênero, explicando também a emergência da transgeneridade.
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> Gênero Fluído e Não-Binário: Indivíduos não-binários e gênero fluídos englobam um grupo diverso: alguns indivíduos usam esses termos para descrever identidades de gênero que desviam dos conceitos binários de gênero (homem e mulher), enquanto outros os usam para descrever modos de expressão do gênero. Alguns veem sua identidade ou expressão de gênero como ambos, homem e mulher, ou nenhum dos dois, algo no meio termo, ou como algo fluído ao longo do tempo. Alguns se consideram parte de uma mais ampla categoria trans, enquanto outros não. É sugerido que entre adultos gênero-diversos, dois terços descrevem a si mesmos como transgêneros, enquanto o terço restante descreve a si mesmo como não-binário, gênero fluído ou mesmo gênero queer (Ref.77).
> Quase todas as crianças corretamente se autoclassificam como 'menino' ou 'menina' com base em pistas óbvias (ex.: anatomia ou roupas) aos 3 anos de idade - algo às vezes chamado de "identidade de gênero básica". Pela idade de 6 anos, a maioria das crianças possuem um gênero conservado, ou percebem que seus gêneros permanecem invariantes independente de mudanças superficiais nas roupas, comprimento do cabelo e outros aspectos nesse sentido. Ou seja, a identidade de gênero do indivíduo tipicamente é estabelecida (ou totalmente desenvolvida) aos ~6 anos de idade (Ref.93).
> As crianças transgêneras são socialmente transicionadas - ex.: mudança de pronomes, frequentemente acompanhada por mudanças no primeiro nome, roupas e estilo de cabelo - no pré-escolar e no período de escola primária. E importante esclarecer que terapias hormonais e/ou cirurgias são feitas em quadros de disforia de gênero (acentuada incongruência de gênero) e a partir da adolescência. Sinais sugestivos de transgeneridade em crianças incluem falas espontâneas como "Eu queria ter nascido menino/a".
> Em um notável estudo publicado em 2019 no periódico PNAS (Ref.94), pesquisadores analisaram 317 crianças transgêneras com idades de 3 a 12 anos, as quais, no início da infância estavam se identificando e vivendo em um gênero distinto daquele atribuído no nascimento com base no sexo. O estudo também analisou comparativamente 189 irmãos cisgêneros e, como controle 316 crianças cisgêneras. Primeiro, os pesquisadores encontraram que as crianças transgêneras fortemente se identificavam com o gênero distinto daquele normalmente atribuído ao sexo, incluindo preferências gênero-baseadas. Segundo, eles encontraram que a identidade de gênero e as preferências gênero-baseadas das crianças transgêneras não diferia em relação àquela de crianças cisgêneras (irmãos e controle) - ex.: forte similaridade entre meninos trans (sexo feminino) e meninos cis (sexo masculino) em relação a brincadeiras, amizades, roupas, etc. Por fim, os pesquisadores encontraram que a autoidentificação com um gênero e preferências associadas não diferiam significativamente em relação ao tempo após o qual a criança transgênera havia sido socialmente transicionada - fortalecendo a importância do fator neurobiológico na determinação da identidade de gênero.
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Apesar dos cientistas hoje não terem conseguido identificar todos os fatores que levam às variações de identidade de gênero, causas genéticas, hormonais (durante o desenvolvimento embrionário) e talvez epigenética (ativadas por fatores ambientais) claramente estão presentes, não apenas fatores sócio-culturais. Aliás, para citar um exemplo bem notável, estudos com macacos Rhesus mostram que esses primatas também possuem uma preferência gênero-baseada a brinquedos similar às preferências humanas associadas ao sexo masculino ou ao sexo feminino durante a infância (Ref.8), sem que isso esteja ligado ao aprendizado, o que é uma entre várias evidências que derrubam a ideia de que o encorajamento a adotar [identificação] comportamentos diferenciados dependentes do sexo biológico é puramente ligado às pressões sociais, mas, sim, que está enraizado profundamente nas nossas origens evolucionárias. Crianças humanas do sexo masculino tendem a se identificar com protagonistas homens nas histórias, tendem a formar amizade com meninos e tendem a preferir certas brincadeiras. Crianças do sexo feminino tendem a se identificar com protagonistas mulheres, tendem a formar amizade com meninas e tendem a preferir certas brincadeiras.
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> Já pela idade de três anos, crianças começam a segregar e passar a maior parte do tempo com indivíduos do mesmo sexo, aprendendo a trabalhar e competir com esses indivíduos e aumentando o viés de gênero (construção social baseada no sexo). Ao redor de 6 anos de idade, a maioria das crianças brincam com crianças do mesmo gênero. Ref.98
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Por outro lado, obviamente existem pressões sociais e culturais (ideologias de gênero) que limitam a escolha e o potencial dos indivíduos na infância com base apenas em expectativas associadas a fenótipos sexuais, e que frequentemente ignoram ou desrespeitam a identidade de gênero. Tendências a preferências e atividades na infância estão longe de ser uma regra, e dependem também, além da identidade de gênero, do contexto social e cultural.
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ESTRUTURA CEREBRAL E IDENTIDADE DE GÊNERO
Diferenças sexo-baseadas no processamento emocional representam um dos mais robustos estereótipos sexuais ao redor do mundo, e possuem associação com certas áreas do cérebro - especificamente sistemas subcorticais incluindo a amígdala, hipotálamo e hipocampo. Em particular, o córtex pré-frontal está envolvido com a geração de comportamentos dismórficos, e, com suas conexões subcorticais no sistema límbico, o córtex pré-frontal é uma estrutura neurológica fortemente envolvida no cérebro social
Indivíduos do sexo feminino tendem a exibir performance superior em proficiência verbal e social, reconhecimento de emoções, e empatia; indivíduos do sexo masculino tendem a exibir maior processamento espacial e agressividade (Ref.84-86) (!). O fato das fêmeas humanas tenderem a ser mais empáticas é particularmente importante no cuidado de bebês (filhotes). As mulheres no geral pontuam mais alto e favorecem atividades envolvendo relacionamentos, e homens no geral favorecem atividades envolvendo coisas. Crianças possuem preferências a brinquedos que são, em parte, dependentes do sexo biológico; as evidências acumuladas apontam que essas preferências são produto de fatores inatos (origem biológica), sendo reforçadas ou reduzidas por fatores sociais (Ref.87-88). Essas diferenças podem ser amplificadas ou reduzidas dependendo do ambiente social de desenvolvimento do indivíduo (!) (Ref.89).
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(!) Esses comportamentos diferenciados não estão ligados a papeis de gênero impostos por fatores culturais, ou seja, falácias, por exemplo, de que certos esportes ou tarefas são para meninos ou meninas. Essas preferências ligadas à polarização sócio-cultural de gêneros é explicada pela teoria dos papeis sociais, e inclui diferenças observadas em funções executivas (habilidades que permitem um indivíduo organizar seu comportamento para responder a situações ambientais e planejar para o futuro) (Ref.82). Comportamentos sexualmente diferenciados, em termos biológicos, fazem menção, por exemplo, a diferentes níveis de agressividade associados à exposição androgênica, e são explicados pela teoria da seleção sexual. Por exemplo, em um estudo publicado em 2014 no periódico Agressive Behavior (Ref.83), os pesquisadores analisaram 863 crianças com idades de 7 a 13 anos em Zurique, Suíça; a amostra possuía um diverso espectro cultural, incluindo várias crianças cujos países tinham origem de diferentes países com baixo ou alto níveis de desigualdade de gênero. Os resultados mostraram que enquanto as diferenças sexuais em agressividade eram geralmente maiores entre crianças com pais associados a uma cultura de alta polarização entre os gêneros, esse efeito era pequeno em comparação com o efeito direto do sexo biológico da criança (sexo masculino significativamente mais agressivo do que o sexo feminino).
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Existem diferenças anatômicas e de neuroestimulação entre os cérebros masculino e feminino. Para começar, o volume cerebral do sexo masculino é, na média, 8-13% maior*, e homens no geral tendem a ter maiores volumes do cerebelo, no hipocampo, na amígdala e no tálamo, além de maiores concentrações de receptores de andrógenos do que de estrógenos no cérebro. Já indivíduos do sexo feminino possuem maiores concentrações de receptores e de hormônios estrógenos, especialmente no hipocampo, e uma maior densidade neural no lobo esquerdo frontal e maiores volumes no lobo frontal direito. Essas diferenças mostram um claro desenvolvimento assimétrico do cérebro apontando não apenas para uma orientação sexual, suscetibilidades a transtornos mentais (Ref.96) e comportamentos inatos distintos entre os sexos, como também para a emergência da identidade de gênero que tipicamente entra em afinidade com o gênero esperado para determinado sexo biológico.
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*Importante esclarecer que esse maior volume cerebral NÃO está associado a maior inteligência ou capacidade cognitiva. E isso vale para o reino animal em geral: maior volume cerebral não reflete necessariamente maior capacidade cognitiva. Aliás, leitura recomendada nesse sentido:
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Essa dismorfia cerebral sexo-baseada é confirmada por um estudo publicado em 2020 na PNAS, o qual encontrou claras diferenças de volume de matéria cinzenta em várias regiões cerebrais entre homens e mulheres e que estavam associadas com diferenças na expressão de genes ligados aos cromossomos sexuais (Para mais informações, acesse: Estudo confirma que existem substanciais diferenças cerebrais entre homens e mulheres). Para uma revisão mais recente sobre o tema, acesse a Ref.98. Tudo isso aponta que certas diferenças na estrutura e circuitos cerebrais, independentes de outros fenótipos sexuais ou níveis hormonais circulantes, podem causar uma incongruência de gênero (ex.: transgeneridade).
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> Mais recentemente, pesquisadores da Stanford Medicine desenvolveram um modelo de inteligência artificial (IA) com eficácia de >90% em termos de identificar a origem masculina ou feminina da atividade cerebral, reforçando que existem consistentes e replicáveis diferenças sexuais no cérebro adulto saudável, especificamente relacionadas a padrões de organização funcional do cérebro - embora o modelo de IA em questão seja incapaz de esclarecer a raiz causal (sociais, hormonais e/ou inatas) das diferenças observadas (Ref.101). Outro estudo similar e recente, conduzido por pesquisadores da Universidade de New York, desenvolveu um modelo IA com eficácia entre 92% e 98% em termos de correta identificação do sexo biológico (masculino ou feminino) ao analisar padrões cerebrais a nível celular (estrutura e complexidade) e a partir de dados de ressonância magnética com difusão volumétrica; diferenças sexualmente dimórficas de organização tecidual a nível celular mostraram ser particularmente relevantes na matéria branca central (Ref.102).
> Esses estudos que buscam identificar diferenças cerebrais entre os sexos biológicos são especialmente importantes para um melhor entendimento do risco diferenciado de transtornos mentais e doenças neurodegenerativas. Por exemplo, o autismo é muito mais comum na população masculina do que na feminina. E, historicamente, maior atenção têm sido dada ao cérebro da população masculina em estudos psiquiátricos e afins, ignorando ou marginalizando particularidades cerebrais da população feminina.
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De fato, um número de estudos nos últimos anos têm apontado assinaturas neurobiológicas - incluindo em especial diferenças em certas estruturas cerebrais - associadas à transgeneridade (Ref.99). Em um estudo publicado em 2020 no periódico Nature Neuropsychopharmacology (!), pesquisadores revelaram significativas diferenças em estruturas cerebrais de mulheres transgêneras, particularmente na ínsula e no putâmen, quando comparado com as estruturas cerebrais correspondentes em homens e mulheres cisgêneros. Um estudo de 2022 publicado no periódico Psychological Medicine (Ref.97) encontrou alterações no fascículo fronto-occipital inferior correlacionada com a incongruência de gênero em adolescentes.
Para mais informações, acesse:
É sugerido por alguns autores (Ref.69, 73) que o gênero é a ciência subconsciente do comportamento diferencial dimórfico associado ao acasalamento e ao cuidado dos filhos, com origem evolucionária do eixo reprodutivo macho-fêmea. O cérebro sexual dimórfico - determinado por genética, hormônios pré-natais e/ou epigenética - seria um substrato do desenvolvimento psicossexual suportando a construção do gênero e sua identificação pelos indivíduos.
Se a identidade de gênero fosse inteiramente um constructo social, isso entraria em conflito com o desenvolvimento de autoidentificação do gênero já em idades de seis meses a 5 anos, onde parece existir tempo insuficiente para aprender as estruturas políticas e sócio-culturais do gênero sem alguma forma de influência [inata/biológica] prévia. A maioria das crianças expressam a sensação interna de gênero e corretamente classificam outros indivíduos nesse sentido (meninos ou meninas) pela idade de dois a três anos. Além disso, a maioria das crianças desenvolvem a habilidade de categorizar outros de acordo com o gênero e de usar categorias de gênero regularmente na fala entre 18 e 24 meses de idade, fase na qual as crianças estão começando a desenvolver um senso de identidade própria e ativamente buscam informações sobre como devem se comportar - ou seja, antes mesmo de desenvolverem a Teoria da Mente (entendimento que outros indivíduos possuem suas próprias crenças, intenções, sentimentos, estados e pontos de vista) (Ref.77).
Existe pouca evidência na literatura acadêmica de que identidade de gênero não-conformante - e consequentes comportamentos diferenciados - é algo encorajado ou ensinado. A transgeneridade, por exemplo, tipicamente emerge em meio a uma socialização convencional, mesmo em sociedades muito conservadoras (ex.: países com governos orientados pelo extremismo religioso, teocráticos). E não existe evidência convincente de que o ambiente social pós-natal atua de forma determinante na formação da identidade de gênero - apenas na expressão do gênero, como já explorado.
Somando-se a isso, a desconexão entre sexo e gênero autopercebido no desenvolvimento é reforçada pelo fato da diferenciação sexual dos genitais ocorrer antes da diferenciação sexual do cérebro (<2 meses e 4-5 meses de gestação, respectivamente), tornando plenamente plausível que esses dois processos não sejam sempre congruentes. Na verdade, existem dois períodos críticos no desenvolvimento humano caracterizado por maiores níveis de testosterona nos indivíduos de sexo masculino do que nos indivíduos do sexo feminino: meados da gravidez e os primeiros 3 meses após o nascimento. Esses picos de testosterona, junco com mudanças funcionais em receptores de esteroides, podem estar envolvidos na programação e organização de estruturas e circuitos no cérebro masculino.
Por causa desses casos e de outros similares, pesquisadores em um simpósio da Associação Americana para o Progresso da Ciência de 2005 (encontro anual) (Ref.9) pediram veementemente para que cirurgias de mudança de sexo nesses bebês de gênero ambíguo não fossem realizadas sem antes a criança identificar seu gênero.
Outro exemplo interessante, crianças do sexo masculino com uma rara desordem endócrina chamada de deficiência GnRH - caracterizada por baixa ou ausente produção de hormônios sexuais a partir do segundo trimestre de desenvolvimento uterino -, mesmo sendo criadas em um ambiente social "para meninos", apresentam uma forte tendência de expressarem um gênero não-conformista (comportamentos, atitudes e desejos não associados tipicamente ao sexo biológico) (Ref.75). E, nesses casos, o sexo não é ambíguo, já que o desenvolvimento da genitália externa (diferenciação sexual) ocorre no primeiro trimestre de gestação. Isso reforça que andrógenos produzidos pelos testículos influenciam diretamente o desenvolvimento cerebral masculino, como já demonstrado em estudos experimentais com mamíferos não-humanos: nesses animais, administração de andrógenos no início do desenvolvimento masculiniza comportamentos e estruturas neurais associadas..
Nesse sentido, a identidade de gênero emerge primordialmente de estruturas e padrões diferenciados na estrutura cerebral dos indivíduos, os quais podem ser determinados por fatores genéticos, hormonais e/ou epigenéticos. Fatores puramente sociais ou culturais não são capazes de explicar a identidade de gênero.
GENÉTICA
No caso genético, a hipótese mais aceita e com um vasto número de evidências é que o fenótipo de gênero é expresso a partir de um modelo poligenético, o que explicaria perfeitamente porque não existe uma clara divisão ao longo do espectro cis-transgênero. Nesse sentido, a identidade de gênero é determinada por uma complexa, multifatorial e poligenética rede de fatores. E uma coisa é mais do que evidente: gênero não é uma simples questão de escolha, assim como a orientação sexual.
Definindo masculinidade em termos de ser "agressivo, dominante e independente" e feminidade como sendo "caloroso, sensível e zeloso" - de forma mais generalista possível -, estudos com gêmeos monozigóticos e dizigóticos, e com adultos e jovens aleatórios em diferentes populações, sugerem que a hereditariedade genética de gênero fica em torno de 38-40%. Usando ferramentas mais complexas de diagnóstico de gênero, essa hereditariedade chega a alcançar 53% (Ref.18). Fatores ambientais não compartilhados explicam o restante da variância. Na infância, os fatores genéticos parecem ter menor influência nos meninos do que nas meninas. Dois estudos de 2005 (Ref.16-17) mostram que o fator genético para meninos era 17-34%, ambiental (compartilhado) 29-67%; e para as meninas o genético encontrado foi de 40-57% e ambiental (compartilhado) 0-45%.
Humanos nascem com 46 cromossomos em 23 pares. Como já mencionado, os cromossomos X e Y determinam o sexo biológico de uma pessoa. A maioria das mulheres são 46XX e a maioria dos homens são 46XY. Alguns indivíduos, porém, irão nascer com apenas 45X ou 45Y (monossomia sexual) e alguns com três ou mais cromossomos sexuais (47XXX, 47XYY ou 47XXY, etc.) (polissomias sexuais). Além disso, alguns homens nascem 46XX devido à translocação de uma pequena seção da região do cromossomo Y. Similarmente, algumas mulheres também nascem 46XY devido a mutações no cromossomo Y. Aliás, todos nós fomos 'fêmeas' no útero antes do cromossomo Y se expressar. Nas primeiras cinco ou seis semanas de desenvolvimento fetal, todos persistirão com um corpo mais próximo daquele do sexo feminino, em termos fenotípicos. Só a partir desse período é que o gene Sry irá ser expresso no cromossomo Y para iniciar o desenvolvimento das características sexuais masculinas. Aliás, como os mamilos se desenvolvem antes, os homens acabam persistindo com eles mesmo sem necessidade (vestígio embrionário).
Para exemplificar de forma mais detalhada e prática, podemos citar os indivíduos classificados como "gêneros ambíguos", condição que afeta 1-2 bebês a cada 4000-5000 bebês. Durante o desenvolvimento embrionário desses indivíduos, mutações genéticas ou desequilíbrios hormonais fazem com que características sexuais morfológicas masculinas ou femininas - como as genitálias - não correspondam ao genótipo. Por exemplo, uma condição chamada de Hiperplasia Adrenal Congênita (HAC) em humanos XX (geneticamente mulheres) resulta em uma exposição pré-natal a altos níveis de andrógenos (hormônios esteroides que ativam o desenvolvimento masculino). Características genitais de garotas nascidas com HAC podem parecer de machos. Em outros casos, coletivamente chamados de Síndrome da Insensibilidade a Andrógenos (SIA), humanos XY (geneticamente machos) podem ter características morfológicas femininas quando uma mutação do gene que codifica receptores de andrógenos resulta em uma resistência aos efeitos androgênicos (masculinizantes) durante o desenvolvimento embrionário. Dependendo do tempo de exposição aos andrógenos no útero ou à mutação nos indivíduos com HAC ou SIA, o bebê pode nascer com a genitália ambígua (apresentar ambas, masculina e feminina, ou uma genitália não muito bem definida).
Devido ao fenótipo muito conflitante com a arquitetura geral do genótipo, existe uma boa chance de que gênero do indivíduo não entre em conformidade com a mera existência de um XY ou de um XX no material genético do indivíduo. De fato, hiperplasia adrenal congênita resulta em indivíduos do sexo feminino expressando maior agressividade.
Fica claro nesse sentido que não existe uma clara linha separando machos e fêmeas na nossa espécie - assim como em outros animais. Pequenas variações genéticas são suficientes para alterar os resultados fenotípicos de desenvolvimento sexual. Não existem apenas fêmeas XX. Não existem apenas machos XY. Existe um espectro de complementos cromossômicos, balanços hormonais e expressões gênicas que orientam as diferenciações no desenvolvimento fetal responsáveis pela determinação do sexo. Isso resulta inclusive em indivíduos hermafroditas.
Outra situação nesse sentido demonstrada em um estudo publicado em 2018 na Science (Ref.54) é que uma única deleção em uma região regulatória crítica (alelo Enh13) do gene Sox9 - crucial para a determinação do sexo masculino (diferenciação dos testículos, etc.) - faz com que machos XY tenham um fenótipo de fêmeas, incluindo ovários e aparelho reprodutor indistinguíveis de uma fêmea XX. Mutações no gene Sox9 também estão ligadas com o desenvolvimento sexual reverso nos humanos.
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> Nos mamíferos, o gene Sry, presente no cromossomo Y, codifica uma proteína que é temporariamente expressa e inicia o desenvolvimento dos testículos e subsequente desenvolvimento masculino ao ativar a diferenciação das células da linhagem celular de suporte em células Sertoli ao invés de células granulosas típicas de ovários. O gene Sox9 é o seu principal alvo.
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O cérebro embriônico de ratos mostra claras diferenças sexo-específicas. Nesses mamíferos, dezenas de genes são expressos diferentemente no cérebro de machos e de fêmeas apenas 10 dias após a concepção, e anterior à exposição de hormônios. Em um estudo publicado recentemente no periódico Cell (Ref.81), analisando áreas no cérebro de ratos (conservadas em humanos) associadas a comportamentos sociais ligados ao sexo ou ao típico estado de cio, foram encontrados 1415 genes com atividade sexualmente dismórfica em quatro populações de neurônios expressando o receptor-1 de estrogênio (Esr1+), incluindo um tipo celular essencial para o reconhecimento de sexo, agressividade e engajamento sexual em machos, e um tipo celular essencial para o comportamento de acasalamento nas fêmeas.
Na verdade, podemos enumerar múltiplas fortes evidências sendo acumuladas nos últimos anos dando suporte ao papel da genética na construção da identidade de gênero:
- Publicado em janeiro deste ano periódico eLife (Ref.10), um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de Columbia, EUA, ao analisar vermes da espécie Caenorhabditis elegans, revelou genes regulatórios - let-7, lin-28 e lin-41 - que agem dentro de neurônios específicos para induzir diferenças anatômicas e funcionais entre os cérebros dos machos e dos hermafroditas. E esses genes possuem correspondência conservada - durante a evolução biológica - no cérebro dos humanos. Ou seja, esses genes provavelmente também são os responsáveis por parte das diferenças entre masculino e feminino, incluindo orientações hormonais durante a puberdade.
Os pesquisadores mostraram que quando mutado o gene lin28 - presente tanto em humanos quanto nesses vermes - o C. elegans passava a ter uma puberdade adiantada, exatamente como os humanos. A partir desse achado, os pesquisadores procuraram por outros genes ligados ao lin28 e também associados com uma maturação sexual prematura no verme. O mais interessante entre os genes identificados foi o lin29A, presente apenas no cérebro dos vermes machos e expresso nos neurônios centrais. Quando jovem, o gene lin-41 fica ativo e reprime o lin-29A, mas quando o verme atinge a maturidade, o let-7 desliga o lin-41, ativando o lin-29A em neurônios específicos. Os pesquisadores então mostraram que vermes sem o Lin29A possuíam uma aparência de macho mas se comportavam mais como hermafroditas! Na palavra dos pesquisadores, a ausência do Lin29A basicamente feminizava os machos. Correspondentes desse gene nos humanos possuem a mesma função? Provável. De qualquer forma, o estudo mostrou que o gene lin29A possui a função de ativar comportamentos específicos dos vermes machos não-dependentes de hormônios ou da constituição anatômica.
Aliás, um recente avanço no campo da neurociência emergiu com o mapeamento completo dos circuitos neurais (connectomes) do C. elegans em resolução subcelular (Ref.56). Analisando integralmente os sistemas nervosos de ambos os sexos (hermafrodita, XX, e macho, XO) os pesquisadores encontraram que numerosas conexões - até 30% - pareciam diferir em força na região da cabeça, particularmente no tamanho médio em certas sinapses. Esse achado foi uma surpresa, já que a anatomia geral do sistema nervoso é quase equivalente entre os sexos nessa região. Ou seja, isso reforça que pequenas perturbações no desenvolvimento ou na expressão de genes podem ser suficientes para modificar esses circuitos de forma a acarretar mudanças substanciais de comportamento entre os sexos. Não é necessário modificar drasticamente a estrutura cerebral.
Ainda mais recente, Um estudo publicado no periódico Current Biology (Ref.68) mostrou que o gene TRA-1 não se torna completamente silenciado nos machos como antes pensado. Um macho C. elegans tipicamente prefere perseguir fêmeas para o acasalamento ao invés de procurar comida, ao contrário das fêmeas. Porém, caso o macho fique muito tempo sem comer, os pesquisadores mostraram que o TRA-1 é ativado, mudando naturalmente seu comportamento para um típico de fêmeas. Isso mais uma vez mostra que a nível molecular (controle genético do estado sexual), sexo - e sua expressão - não é binário ou estático, mas dinâmico e flexível.
- Em um estudo de 2017, publicado na Scientific Reports (Ref.11), pesquisadores analisaram 13 indivíduos transgêneros (no caso 9 transexuais fêmea-para-macho e 4 transexuais macho-para-fêmea) e identificaram três mutações heterozigóticas comuns entre os voluntários associadas ao gene RYR3, e nenhuma delas presentes em um grupo de controle de não-transgêneros. Esse gene é altamente expresso no cérebro e regula a homeostase intracelular de cálcio.
- Um estudo de 2018 (Ref.21), analisando as diferenças no número de cópias de cada gene no DNA de pessoas não-transgêneras (controle) e de 717 transgêneros (444 transexuais macho-para-fêmea e 273 homossexuais fêmea-para-macho), encontrou uma significativa maior frequência de alterações citogenéticas e especificamente uma significativa maior frequência da síndrome de Klinefelter na população transgênera. Em uma análise separada, em 7 de 23 indivíduos transgêneros foi encontrada a mesma microduplicação genética na região 17q21.31, nas posições chr17:44,187,491–44,784,639, englobando o gene KANSLI. A disrupção desse gene está envolvida na Síndrome de Koolen-De Vries, a qual envolve problemas comportamentais e baixa interação social. Os transgêneros com a microduplicação, no entanto, não expressam a doença ou qualquer patogenicidade associada e se mostram saudáveis, mas essas alterações podem potencialmente afetar o comportamento e consequentemente a construção do gênero. O gene em si é importante para a regulação de complexas funções cerebrais.
- Dois estudos publicados em janeiro de 2019 trouxeram novas evidências sobre as bases genéticas e epigenéticas envolvidas na determinação das características sexuais e comportamentais de machos e fêmeas entre os mamíferos. Enquanto um estudo mostrou que ratos já nascem sabendo reconhecer indivíduos machos e fêmeas, o outro estudo explorou uma curiosa espécie de roedor que não apresenta o cromossomo sexual Y para a determinação do sexo biológico, apenas o X. Aliás, no primeiro estudo, quando os pesquisadores estimulavam circuitos neurais chamados de 'neurônios AB' nos ratos machos, estes mudavam completamente seus comportamentos sexo-baseados, não mostrando mais agressividade frente a outros machos e não mais mostrando preferência de acasalamento com as fêmeas. Para mais informações sobre os estudos, acesse: Comportamentos e preferências sexuais em ratos variam ao se ativar ou desativar uma região específica do cérebro.
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ATUALIZAÇÃO (27/03/19): Mais uma evidência de fatores biológicos desde o desenvolvimento fetal determinando comportamentos sócio-sexuais de mamíferos: Alergia pré-natal faz ratos fêmeas se comportarem como ratos machos
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- Um estudo publicado em julho de 2019 no periódico European Psychiatry (Ref.58) mostrou que os indivíduos transgêneros e não-binários são significativamente mais prováveis de terem autismo ou expressaram traços autísticos. Entre 177 participantes analisadas acima de 18 anos (68 cisgêneros e 50 transgêneros), 14% daquelas que eram transgêneras e não-binárias tinham diagnóstico de autismo, enquanto que mais 28% desse grupo alcançaram o limiar para o diagnóstico de autismo. O espectro do autismo possui forte componente genético e provavelmente epigenética para o seu desenvolvimento, reforçando a importância dos genes ou da expressão diferenciada desses genes para a construção do gênero. Esse e outros estudos de pequeno porte foram corroborados por um mais recente e robusto publicado no periódico de alto impacto Nature Communications (Ref.67) encontrou que os adultos transgêneros e gênero-diversos são três a seis vezes mais prováveis do que adultos cisgêneros a serem diagnosticados com autismo. O estudo analisou dados clínicos de mais de 640 mil indivíduos adultos do Reino Unido, implicando que 3,5-6,5% dos adultos transgêneros ou gênero-diversos nesse bloco estão no espectro autista.
- Um estudo publicado em 2020 no periódico Scientific Reports, analisando o DNA de 30 indivíduos transgêneros, reportou 19 variantes em genes associados com áreas no cérebro envolvidas na masculinização e na feminização não encontradas em um grupo de controle (80 indivíduos não-transgêneros) e dois bancos de dados genéticos (população geral). Para mais informações, acesse: Assinatura genética por trás da transgeneridade revelada por estudo
- Em um estudo de 2017, publicado na Scientific Reports (Ref.11), pesquisadores analisaram 13 indivíduos transgêneros (no caso 9 transexuais fêmea-para-macho e 4 transexuais macho-para-fêmea) e identificaram três mutações heterozigóticas comuns entre os voluntários associadas ao gene RYR3, e nenhuma delas presentes em um grupo de controle de não-transgêneros. Esse gene é altamente expresso no cérebro e regula a homeostase intracelular de cálcio.
- Um estudo de 2018 (Ref.21), analisando as diferenças no número de cópias de cada gene no DNA de pessoas não-transgêneras (controle) e de 717 transgêneros (444 transexuais macho-para-fêmea e 273 homossexuais fêmea-para-macho), encontrou uma significativa maior frequência de alterações citogenéticas e especificamente uma significativa maior frequência da síndrome de Klinefelter na população transgênera. Em uma análise separada, em 7 de 23 indivíduos transgêneros foi encontrada a mesma microduplicação genética na região 17q21.31, nas posições chr17:44,187,491–44,784,639, englobando o gene KANSLI. A disrupção desse gene está envolvida na Síndrome de Koolen-De Vries, a qual envolve problemas comportamentais e baixa interação social. Os transgêneros com a microduplicação, no entanto, não expressam a doença ou qualquer patogenicidade associada e se mostram saudáveis, mas essas alterações podem potencialmente afetar o comportamento e consequentemente a construção do gênero. O gene em si é importante para a regulação de complexas funções cerebrais.
- Dois estudos publicados em janeiro de 2019 trouxeram novas evidências sobre as bases genéticas e epigenéticas envolvidas na determinação das características sexuais e comportamentais de machos e fêmeas entre os mamíferos. Enquanto um estudo mostrou que ratos já nascem sabendo reconhecer indivíduos machos e fêmeas, o outro estudo explorou uma curiosa espécie de roedor que não apresenta o cromossomo sexual Y para a determinação do sexo biológico, apenas o X. Aliás, no primeiro estudo, quando os pesquisadores estimulavam circuitos neurais chamados de 'neurônios AB' nos ratos machos, estes mudavam completamente seus comportamentos sexo-baseados, não mostrando mais agressividade frente a outros machos e não mais mostrando preferência de acasalamento com as fêmeas. Para mais informações sobre os estudos, acesse: Comportamentos e preferências sexuais em ratos variam ao se ativar ou desativar uma região específica do cérebro.
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ATUALIZAÇÃO (27/03/19): Mais uma evidência de fatores biológicos desde o desenvolvimento fetal determinando comportamentos sócio-sexuais de mamíferos: Alergia pré-natal faz ratos fêmeas se comportarem como ratos machos
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- Um estudo publicado em julho de 2019 no periódico European Psychiatry (Ref.58) mostrou que os indivíduos transgêneros e não-binários são significativamente mais prováveis de terem autismo ou expressaram traços autísticos. Entre 177 participantes analisadas acima de 18 anos (68 cisgêneros e 50 transgêneros), 14% daquelas que eram transgêneras e não-binárias tinham diagnóstico de autismo, enquanto que mais 28% desse grupo alcançaram o limiar para o diagnóstico de autismo. O espectro do autismo possui forte componente genético e provavelmente epigenética para o seu desenvolvimento, reforçando a importância dos genes ou da expressão diferenciada desses genes para a construção do gênero. Esse e outros estudos de pequeno porte foram corroborados por um mais recente e robusto publicado no periódico de alto impacto Nature Communications (Ref.67) encontrou que os adultos transgêneros e gênero-diversos são três a seis vezes mais prováveis do que adultos cisgêneros a serem diagnosticados com autismo. O estudo analisou dados clínicos de mais de 640 mil indivíduos adultos do Reino Unido, implicando que 3,5-6,5% dos adultos transgêneros ou gênero-diversos nesse bloco estão no espectro autista.
- Um estudo publicado em 2020 no periódico Scientific Reports, analisando o DNA de 30 indivíduos transgêneros, reportou 19 variantes em genes associados com áreas no cérebro envolvidas na masculinização e na feminização não encontradas em um grupo de controle (80 indivíduos não-transgêneros) e dois bancos de dados genéticos (população geral). Para mais informações, acesse: Assinatura genética por trás da transgeneridade revelada por estudo
- Mais recentemente, três estudos foram publicados reforçando a atuação de fatores genéticos e neurobiológicos na determinação da identidade de gênero, especialmente para a manifestação da incongruência de gênero, onde a separação entre identidade de gênero e sexo biológico é mais notável. Para mais informações, acesse: Três estudos reforçam a transgeneridade como fruto de fatores biológicos
Outros vários genes já foram implicados positivamente com a transgeneridade em estudos de moderado-grande porte (500-1000 voluntários), como o gene CYP17 - o qual codifica a enzima hidroxilase 17-alfa (associada com a produção de androstenediona) -, os genes dos receptores de estrógeno beta (ERb) e alfa (ERα), alelos STS, SRD5A2, SULT2A1, entre outros. Combinações de alelos mais prevalentes em transgêneros são também reportados, especialmente aqueles associados ao gene AR, responsável pela expressão do receptor de andrógeno (Ref.68) - uma proteína que permite ao corpo responder de forma apropriada a hormônios andrógenos, como a testosterona. Essas e outras evidências suportam a ideia de que a identidade de gênero possui uma base poligênica, envolvendo interações entre múltiplos genes e poliformismos genéticos, especialmente genes associados com a expressão de receptores de andrógenos
HORMONAIS
Em termos de fatores hormonais, podemos começar citando que o comportamento de pacientes (fêmeas) com hiperplasia adrenal congênita (HAC) é mais masculinizado do que mulheres sem a condição e do que mulheres com uma variação não-clássica da HAC, as quais são expostas aos hormônios andrógenos em excesso após o nascimento. Isso claramente mostra que o gênero também é moldado pelo ambiente uterino sob dependência de hormônios. Meninas e mulheres com HAC tendem a ser menos interessadas em bebês, mais agressivas, possuírem melhores habilidades espaciais e menos prováveis de sentirem empatia.
Outros vários genes já foram implicados positivamente com a transgeneridade em estudos de moderado-grande porte (500-1000 voluntários), como o gene CYP17 - o qual codifica a enzima hidroxilase 17-alfa (associada com a produção de androstenediona) -, os genes dos receptores de estrógeno beta (ERb) e alfa (ERα), alelos STS, SRD5A2, SULT2A1, entre outros. Combinações de alelos mais prevalentes em transgêneros são também reportados, especialmente aqueles associados ao gene AR, responsável pela expressão do receptor de andrógeno (Ref.68) - uma proteína que permite ao corpo responder de forma apropriada a hormônios andrógenos, como a testosterona. Essas e outras evidências suportam a ideia de que a identidade de gênero possui uma base poligênica, envolvendo interações entre múltiplos genes e poliformismos genéticos, especialmente genes associados com a expressão de receptores de andrógenos
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HORMONAIS
Em termos de fatores hormonais, podemos começar citando que o comportamento de pacientes (fêmeas) com hiperplasia adrenal congênita (HAC) é mais masculinizado do que mulheres sem a condição e do que mulheres com uma variação não-clássica da HAC, as quais são expostas aos hormônios andrógenos em excesso após o nascimento. Isso claramente mostra que o gênero também é moldado pelo ambiente uterino sob dependência de hormônios. Meninas e mulheres com HAC tendem a ser menos interessadas em bebês, mais agressivas, possuírem melhores habilidades espaciais e menos prováveis de sentirem empatia.
Além disso, evidências científicas confirmam os efeitos de andrógenos durante o desenvolvimento embrionário nas atividades associadas à orientação do gênero (Ref.12). O grau de exposição aos andrógenos (inferido do tipo de mutação no gene CYP21A2 que causa a HAC e a severidade da doença) está relacionado linearmente e moderadamente à extensão de interesse em atividades típicas do gênero masculino. Variações no nível de testosterona no ambiente uterino (medido no fluído amniótico), independentemente da existência de uma HAC, também estão ligadas ao comportamento preferencial das crianças. Existe inclusive documentado o caso de três indivíduos expressando disforia de gênero na fase adulta que foram expostos no útero a anti-convulsantes (fenobarbital e difantoína), estes os quais podem interferir com o metabolismo de hormônios sexuais e, portanto, agir da diferenciação sexual do cérebro (Ref.71).
Em indivíduos com deficiência na enzima 5-alfa-reductase, existe uma dramática redução na taxa de conversão de testosterona em DHT (<1%, comparado com >7% em indivíduos normais), prevenindo o desenvolvimento de genitália masculina externa normal no útero e resultando em ambiguidade genital no nascimento. A maioria desses indivíduos, historicamente, eram simplesmente considerados de ter clitoromegalia (aumento atípico do clitóris) e criados como pessoas do sexo feminino. No entanto, durante a virilização na puberdade, trazendo engrossamento da voz, aumento do falo e aumento da massa muscular, a identidade de gênero mudava naturalmente de feminino para masculino durante a adolescência e a fase adulta em 56-63% desses indivíduos, sem qualquer correlação com o grau de masculinização da genitália (Ref.71). Isso indica também algum papel dos hormônios na puberdade na determinação/exacerbação do gênero. Estudos analisando essa população sugerem que se a puberdade for permitida de ocorrer espontaneamente, e sem pressão para se 'manter' uma identidade de gênero via cirurgia e terapia hormonal, a identidade de gênero masculina - apesar de discordante com a criação social do indivíduo afetado - irá prevalecer (Ref.72).
No geral, várias desordens de desenvolvimento sexual (DDS) estão associadas com falhas na produção ou sensibilização androgênica, fazendo com que indivíduos XY ou XX apresentem genitália ambígua ou fenótipo externo típico do sexo oposto, independentemente da presença do cromossomo Y. Esses indivíduos na maioria das vezes são criados como meninas/mulheres durante toda a infância, e, mesmo assim, as taxas de transtorno da identidade de gênero (forte desconexão entre a identidade de gênero e o gênero imposto) são altas, especialmente durante e após a adolescência.
Um estudo de revisão sistemática e meta-análise publicado em 2020 no periódico Journal of Pediatric Urology (Ref.80), investigando casos comuns de DDS (hiperplasia adrenal congênita, síndrome de insensibilidade androgênica completa/parcial, deficiência de 5-alfa redutase, deficiência de 17-hidroxiesteroide dehidrogenase, digênese gonadal misturada) encontrou uma prevalência geral de 15% para o diagnóstico de transtorno de identidade de gênero. Algumas condições tinham taxas de prevalência tão altas quanto 53%. Já com indivíduos XY totalmente insensíveis a andrógenos - tipicamente criados como meninas -, a prevalência era de apenas 1,7%. Isso reforça o papel dos andrógenos na construção da identidade de gênero.
Invertendo a análise, um estudo de 2023 (Ref.103) resolveu investigar a taxa de DSDs ou intersexo em uma população pediátrica de transgêneros, constituída por 612 indivíduos trans do sexo masculino e 215 indivíduos trans do sexo feminino. Taxas de DSDs/intersexo detectáveis mostraram ser de 1,5% no sexo masculino e de 1,9% no sexo feminino. Esses valores são mais do que significativos considerando que são condições muito raras na população em geral. Além disso, um adicional de 0,7% dos pacientes exibiam condições adrenais hiperandrogênicas e um adicional de 1% dos pacientes foram diagnosticados com insuficiência ovariana primária.
Outras fortes evidências de estudos publicados nas últimas décadas - envolvendo humanos ou outros mamíferos - podem ser listadas:
- Um estudo de revisão publicado em 2018 na Current Opinion in Psychology (Ref.13) reforçou que o comportamento agressivo é expressado mais na forma indireta nas meninas (manipulações sociais com a intenção de machucar alguém), mais fisicamente (direta) nos meninos e igualmente entre os dois gêneros na forma verbal. Além disso, eles apontaram determinantes genéticos na agressividade direta e na indireta (49-50%), e que o ambiente hormonal durante o desenvolvimento embrionário era crucial para a expressão de agressividade (geral). Em outras palavras, apesar dos níveis de testosterona e fatores sociais/ambientais estarem fortemente associados com a agressividade, fatores genéticos e embrionários também moldam esse comportamento de forma diferenciada entre os gêneros. Aliás, existem animais, como a hiena, onde a agressividade não é determinada substancialmente pela testosterona, já que as fêmeas são mais agressivas do que os machos. Esses comportamentos, portanto, sugerem papeis importantes de seleção natural durante a evolução biológica.
- Um estudo unindo a genética e a atuação de hormônios no desenvolvimento embrionário, e publicado em 2008 no periódico Biological Psychiatry (Ref.14), investigou o genoma de 112 indivíduos transgêneros transexuais (macho-para-fêmea) e comparou os sequenciamentos com o genoma de indivíduos não-transgêneros (controle). Os pesquisadores encontraram que os transgêneros eram mais prováveis de terem uma versão mais longa do gene associado ao receptor andrógeno, a qual é responsável por modificar a ação da testosterona no corpo. Esses genes podem interferir na ação da testosterona durante o desenvolvimento embrionário do indivíduo, sub-masculinizando o cérebro.
- Saindo do gênero Homo, a mais morfologicamente e comportamentalmente masculinizada fêmea entre os mamíferos, a hiena-pintada (Crocuta crocuta), claramente possui a androstenediona e a testosterona implicadas na organização e na ativação desses traços mais ligados ao sexo masculino (maior agressividade, competitividade territorial, etc.), mesmo com as concentrações de testosterona na fêmea adulta não rivalizando com aquelas dos machos. Outra fêmea altamente masculinizada, a fossa (Cryptoprocta ferox), possui também concentrações de andrógenos significativamente menores do que aquelas vistas nos machos, mesmo durante períodos de transição masculinizante (geralmente na puberdade). Isso indica que outros fatores estão atuando para emergir características tipicamente masculinas nas fêmeas dessas espécies, independentes das concentrações pós-natais de hormônios andrógenos.
- Um estudo publicado na Hormones and Behavior (Ref.64) mostrou que na espécie Lemur catta (lêmure-de-cauda-anelada), pertencente à subordem Strepsirrhini - onde frequentemente as fêmeas dominam os machos indiretamente (prioridade de alimentação) ou diretamente (via agressão) - a masculinização das fêmeas adultas é determinada durante o desenvolvimento embrionário, via ação androgênica organizacional e ativadora no feto. Em específico, os pesquisadores encontraram que maiores doses de androstenediona no útero geravam fêmeas mais agressivas quando adultas. Isso potencialmente explica a dominância e ascensão da agressividade das fêmeas de L. catta mesmo na presença de níveis de hormônios androgênicos circulantes muito menores do que aqueles do sexo masculino.
EPIGENÉTICA
O modo de ação dos hormônios parece ocorrer principalmente via epigenética (Ref.19-20). 'Epigenética' refere-se a mudanças no DNA ou cromatinas associadas (2) que influenciam a expressão dos genes mas não mudam a composição do material genético. Evidências sugerem, de fato, que a diferenciação sexual do cérebro requer também mudanças orquestradas na metilação e acetilação de histonas do DNA, e interferências nessa orquestra podem levar às variações de gênero. Fatores ambientais, incluindo eventos sociais, podem também ativar ou desativar marcadores epigenéticos. Estudos já mostraram, por exemplo, que, comparadas com crianças criadas pelos pais biológicos, crianças criadas em orfanatos possuem um maior nível de metilação no DNA associados com resposta imune, humor e comportamentos sociais (Ref.57). Enquanto que eventos sociais marcantes (traumáticos ou não) não serem capazes de por si só determinarem uma transgeneridade via intermediários epigênicos, eles representam fatores que provavelmente influenciam nas variações de gênero masculino ou feminino.
Um estudo publicado recentemente na Biological Psychiatry (Ref.39) mostrou que entre modelos de ratos para memórias traumáticas, os espécimes machos lembram melhor de memórias ligadas ao medo do que espécimes fêmeas. Essa diferença entre os dois sexos foi atribuída a um gene importante para a criação de memórias de medo e comportamento de estresse, chamado de Cdk5 (quinase dependentes de ciclina 5), o qual mostrou ser naturalmente ativado nos machos e não nas fêmeas, através de mecanismos epigenéticos. Quando artificialmente ativado nos dois sexos - via edição epigenética -, nenhuma mudança comportamental foi observada nos machos, mas as memórias associadas ao medo diminuíram de força nas fêmeas. De fato, homens e mulheres respondem diferentemente a transtornos associados ao medo e ao estresse, mas a base neurobiológica para o medo era desconhecida. Essas diferenças biológicas certamente influenciam na construção de gênero nos indivíduos, já que estão diretamente associadas ao comportamento psicológico e modo de interagir com o ambiente e as pessoas ao redor.
Já um estudo publicado na Cell (Ref.35) mostrou que os ratos possuem tipos de células cerebrais que são únicas aos machos e únicas às fêmeas. Analisando uma pequena região do hipotálamo desses roedores chamada de VMHvl, os pesquisadores mostraram a existência de 17 tipos transcriptômicos de células cerebrais com base na expressão diferenciada de genes entre elas, e onde parte desse total era muito mais abundante nos machos do que na fêmeas, enquanto alguns tipos eram encontrados apenas nas fêmeas. E essa região no hipotálamo - contendo cerca de ~4 mil neurônios - é responsável pelo controle de comportamentos sociais inatos, incluindo agressividade e acasalamento.
- Um estudo de revisão publicado em 2018 na Current Opinion in Psychology (Ref.13) reforçou que o comportamento agressivo é expressado mais na forma indireta nas meninas (manipulações sociais com a intenção de machucar alguém), mais fisicamente (direta) nos meninos e igualmente entre os dois gêneros na forma verbal. Além disso, eles apontaram determinantes genéticos na agressividade direta e na indireta (49-50%), e que o ambiente hormonal durante o desenvolvimento embrionário era crucial para a expressão de agressividade (geral). Em outras palavras, apesar dos níveis de testosterona e fatores sociais/ambientais estarem fortemente associados com a agressividade, fatores genéticos e embrionários também moldam esse comportamento de forma diferenciada entre os gêneros. Aliás, existem animais, como a hiena, onde a agressividade não é determinada substancialmente pela testosterona, já que as fêmeas são mais agressivas do que os machos. Esses comportamentos, portanto, sugerem papeis importantes de seleção natural durante a evolução biológica.
- Um estudo unindo a genética e a atuação de hormônios no desenvolvimento embrionário, e publicado em 2008 no periódico Biological Psychiatry (Ref.14), investigou o genoma de 112 indivíduos transgêneros transexuais (macho-para-fêmea) e comparou os sequenciamentos com o genoma de indivíduos não-transgêneros (controle). Os pesquisadores encontraram que os transgêneros eram mais prováveis de terem uma versão mais longa do gene associado ao receptor andrógeno, a qual é responsável por modificar a ação da testosterona no corpo. Esses genes podem interferir na ação da testosterona durante o desenvolvimento embrionário do indivíduo, sub-masculinizando o cérebro.
- Saindo do gênero Homo, a mais morfologicamente e comportamentalmente masculinizada fêmea entre os mamíferos, a hiena-pintada (Crocuta crocuta), claramente possui a androstenediona e a testosterona implicadas na organização e na ativação desses traços mais ligados ao sexo masculino (maior agressividade, competitividade territorial, etc.), mesmo com as concentrações de testosterona na fêmea adulta não rivalizando com aquelas dos machos. Outra fêmea altamente masculinizada, a fossa (Cryptoprocta ferox), possui também concentrações de andrógenos significativamente menores do que aquelas vistas nos machos, mesmo durante períodos de transição masculinizante (geralmente na puberdade). Isso indica que outros fatores estão atuando para emergir características tipicamente masculinas nas fêmeas dessas espécies, independentes das concentrações pós-natais de hormônios andrógenos.
- Um estudo publicado na Hormones and Behavior (Ref.64) mostrou que na espécie Lemur catta (lêmure-de-cauda-anelada), pertencente à subordem Strepsirrhini - onde frequentemente as fêmeas dominam os machos indiretamente (prioridade de alimentação) ou diretamente (via agressão) - a masculinização das fêmeas adultas é determinada durante o desenvolvimento embrionário, via ação androgênica organizacional e ativadora no feto. Em específico, os pesquisadores encontraram que maiores doses de androstenediona no útero geravam fêmeas mais agressivas quando adultas. Isso potencialmente explica a dominância e ascensão da agressividade das fêmeas de L. catta mesmo na presença de níveis de hormônios androgênicos circulantes muito menores do que aqueles do sexo masculino.
- Homens homossexuais passivos são mais gênero não-conformativos do que homens homossexuais ativos, e tendem a apresentar uma razão entre o segundo e o quarto dedos maior do que esses últimos (Ref.76). Isso fortemente sugere que os andrógenos durante o desenvolvimento uterino influenciam o status de ativo ou passivo nos homossexuais assim como a conformidade de gênero nesses indivíduos.
- Deficiência isolada do hormônio liberador da gonadotrofina (IGD), uma rara desordem endócrina. A IGD é caracterizada por produção baixa ou ausente do hormônio gonadal após o primeiro trimestre de gestação, mas sem interferir no desenvolvimento da genitália externa (ou seja, o fenótipo é tipicamente concordante com os cromossomos sexuais), está associada a uma maior prevalência de não-conformismo de gênero durante a infância no sexo masculino. Para mais informações, acesse: Hormônios androgênicos no desenvolvimento fetal estão associados à não-conformidade de gênero, aponta estudo
EPIGENÉTICA
O modo de ação dos hormônios parece ocorrer principalmente via epigenética (Ref.19-20). 'Epigenética' refere-se a mudanças no DNA ou cromatinas associadas (2) que influenciam a expressão dos genes mas não mudam a composição do material genético. Evidências sugerem, de fato, que a diferenciação sexual do cérebro requer também mudanças orquestradas na metilação e acetilação de histonas do DNA, e interferências nessa orquestra podem levar às variações de gênero. Fatores ambientais, incluindo eventos sociais, podem também ativar ou desativar marcadores epigenéticos. Estudos já mostraram, por exemplo, que, comparadas com crianças criadas pelos pais biológicos, crianças criadas em orfanatos possuem um maior nível de metilação no DNA associados com resposta imune, humor e comportamentos sociais (Ref.57). Enquanto que eventos sociais marcantes (traumáticos ou não) não serem capazes de por si só determinarem uma transgeneridade via intermediários epigênicos, eles representam fatores que provavelmente influenciam nas variações de gênero masculino ou feminino.
- (2) Para mais informações, acesse: Epigenética, Plasticidade Fenotípica e Evolução Biológica
Um estudo publicado recentemente na Biological Psychiatry (Ref.39) mostrou que entre modelos de ratos para memórias traumáticas, os espécimes machos lembram melhor de memórias ligadas ao medo do que espécimes fêmeas. Essa diferença entre os dois sexos foi atribuída a um gene importante para a criação de memórias de medo e comportamento de estresse, chamado de Cdk5 (quinase dependentes de ciclina 5), o qual mostrou ser naturalmente ativado nos machos e não nas fêmeas, através de mecanismos epigenéticos. Quando artificialmente ativado nos dois sexos - via edição epigenética -, nenhuma mudança comportamental foi observada nos machos, mas as memórias associadas ao medo diminuíram de força nas fêmeas. De fato, homens e mulheres respondem diferentemente a transtornos associados ao medo e ao estresse, mas a base neurobiológica para o medo era desconhecida. Essas diferenças biológicas certamente influenciam na construção de gênero nos indivíduos, já que estão diretamente associadas ao comportamento psicológico e modo de interagir com o ambiente e as pessoas ao redor.
Já um estudo publicado na Cell (Ref.35) mostrou que os ratos possuem tipos de células cerebrais que são únicas aos machos e únicas às fêmeas. Analisando uma pequena região do hipotálamo desses roedores chamada de VMHvl, os pesquisadores mostraram a existência de 17 tipos transcriptômicos de células cerebrais com base na expressão diferenciada de genes entre elas, e onde parte desse total era muito mais abundante nos machos do que na fêmeas, enquanto alguns tipos eram encontrados apenas nas fêmeas. E essa região no hipotálamo - contendo cerca de ~4 mil neurônios - é responsável pelo controle de comportamentos sociais inatos, incluindo agressividade e acasalamento.
No geral, com base em estudos com animais não-humanos, os dois principais determinantes do sexo biológico (cromossomos sexuais e esteroides gonadais) contribuem para diferenças sexuais no epigenoma do cérebro (Ref.90).
Nesse mesmo caminho, estudos já mostraram que a sensação de dor é experienciada de forma diferente entre os sexos e que componentes hormonais - especialmente envolvendo a testosterona - estão envolvidos nessa diferenciação. Ratos machos, por exemplo, que não possuem testosterona circulando no corpo passam a expressar uma resposta molecular à dor idêntica a vista nas fêmeas; já ratos fêmeas que não possuem células-T, ou que estão grávidas, demonstram um caminho molecular de dor idêntico ao dos machos (Ref.55). Experiências diferenciadas em relação a dores decisivamente possuem o potencial de alterar o comportamento dos indivíduos.
Nesse mesmo caminho, estudos já mostraram que a sensação de dor é experienciada de forma diferente entre os sexos e que componentes hormonais - especialmente envolvendo a testosterona - estão envolvidos nessa diferenciação. Ratos machos, por exemplo, que não possuem testosterona circulando no corpo passam a expressar uma resposta molecular à dor idêntica a vista nas fêmeas; já ratos fêmeas que não possuem células-T, ou que estão grávidas, demonstram um caminho molecular de dor idêntico ao dos machos (Ref.55). Experiências diferenciadas em relação a dores decisivamente possuem o potencial de alterar o comportamento dos indivíduos.
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DISFORIA DE GÊNERO
"TERAPIAS DE CONVERSÃO"
Um estudo publicado no periódico JAMA Psychiatric (Ref.59), analisando quase 28 mil adultos transgêneros ao longo dos EUA, mostrou que as terapias de conversão da identidade de gênero (tentativa de 'transformar' transgêneros em cisgêneros') estão associadas com efeitos mentais adversos, como aumento na taxa de suicídio. O estudo observacional encontrou que 3869 (19,6%) dos participantes foram expostos a esforços de conversão do gênero. Essa exposição mostrou-se associada com graves distúrbios psicológicos ao longo da vida comparado com adultos transgêneros que discutiram a identidade de gênero com um profissional mas que não foram expostos aos esforços de conversão. Tentativas de conversão antes dos 10 anos de idade foram também associados com uma maior chance de tentativas de suicídio ao longo da vida.
Nos EUA, existem leis a nível estadual banindo essas terapias de conversão, as quais são repudiadas por diversas associações de saúde e de psicologia Norte-Americanas, como a Associação Médica Americana e a Associação Americana de Psiquiatria. O novo estudo e essas organizações suportam que as terapias de conversão de identidade de gênero devem ser evitadas com crianças e adultos.
Não existe evidência científica mínima de que essas terapias de conversão são efetivas (Ref.60-62), pelo contrário, são medicamente desnecessárias e mesmo perigosas. Os métodos utilizados são diversos, incluindo hipnose, para tentar tornar o "paciente" mais estereotipicamente feminino ou masculino. Isso reforça que fatores biológicos são cruciais para a construção da identidade de gênero e que as variações de gênero (identidade e expressão) não são dependentes apenas de fatores psicossociais e sócio-culturais, especialmente para a emergência da transgeneridade.
CONSTRUTIVISMO BIOLÓGICO E SÓCIO-CULTURAL (Identidade de gênero e Expressão de Gênero)
Essas diferenças de exposição/sensibilidade hormonal, de fatores genéticos e de fatores ambientais (incluindo interatividade social e epigenética) agem em conjunto para determinar o gênero de uma pessoa (identidade e expressão). Um fenótipo resultante dessa ação conjunta foi inclusive bem demonstrado por um estudo apresentado na Sociedade Europeia de Endocrinologia em maio de 2018 (Ref.5), onde foi mostrado que a atividade cerebral de adolescentes transgêneros se aproxima mais dos padrões típicos do gênero auto-reportado, e essas funções cerebrais invertidas em relação ao sexo biológico parecem já serem estabelecidas durante o desenvolvimento embrionário do indivíduo. E como visto no verme C. elegans, diferenças entre as forças de conexão neural já são suficientes para determinar os comportamentos tipicamente associados com um ou outro sexo, e a expressão ou não de certos genes são suficientes para alterar esses comportamentos independentemente do sexo. Nesse sentido, padrões de atividade cerebral são gênero-dependentes, não apenas ligados ao sexo biológico. No final, podemos seguramente afirmar que gênero não é possível de ser definido apenas com 'doutrinação' ou apenas pela existência de um cromossomo XX ou de um XY. Em particular, a identidade de gênero é claramente determinada por fatores biológicos.
E o estabelecimento de gêneros associados aos sexos biológicos e a autoidentificação inata a esses gêneros fazem sentido no contexto do ambiente em que os humanos modernos (Homo sapiens) e ancestrais evoluíram, no sentido de otimizar a interação ambiental e as chances de sobrevivência e reprodutivas dos indivíduos de diferentes sexos. No caso das fêmeas, comportamentos que melhor se ajustem aos eventuais processos de gravidez e maior proximidade com os filhos durante a amamentação; no caso de machos para prováveis, intensas e agressivas disputas intraespecíficas por territórios e fêmeas; e em ambos os sexos para melhor lidarem com a prole, atividades de caça e de coleta de alimentos, e defesa do grupo e/ou família, espelhando as diferenças biológicas e reprodutivas dos indivíduos. Aliás, é estimado que durante 95% do percurso evolutivo dos humanos modernos desde a emergência da nossa espécie há cerca de 300 mil anos na África, vivemos como caçadores-coletores, com possível divisão de tarefas ou provável afinidade diferencial de tarefas entre os sexos: fêmeas mais focadas na coleta de frutos, sementes e outros vegetais; machos mais focados na caça e conflitos intra- e interespecíficos (!). Elementos físicos, sociais e ecológicos repetidos por um longo tempo geralmente levam a adaptações genéticas ao ambiente de modo a maximizar as chances de sobrevivência e reprodutivas. Por exemplo, machos preferencialmente disputando agressivos conflitos é um fator que pode ajudar a prevenir perda de fêmeas e, portanto, crítico potencial reprodutivo no grupo.
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Em 2016, o Papa Francismo chegou a declarar que a teoria de gênero é um "grande inimigo" do casamento tradicional e da família, uma "guerra global" que teria como meta, "não com armas, mas com ideias", propagar a "colonização ideológica", a qual "é contra a natureza". Segundo o pontífice, a "Ideologia de Gênero" seria uma tática aplicada por países do Primeiro Mundo para oprimir outras nações, e que "uma coisa é alguém ter essa tendência, e outra é ensinar isso na escola". Este ano, o Papa voltou a criticar o assunto, afirmando (Ref.53): "Você precisa de uma educação sexual objetiva, sem colonização ideológica. Se você começar a dar educação sexual repleta de colonização ideológica, você destrói a pessoa."
MOVIMENTO NO BRASIL
De qualquer forma, ideologias de gênero mais tradicionais (segregadoras) podem trazer graves prejuízos porque tendem a impor normas que limitam o potencial das crianças e adolescentes. Forçar aleatoriamente que certas coisas são apenas para meninas e outras coisas são apenas para meninos pode fazer com que as pessoas sejam subvalorizadas e reprimidas com bases apenas ideológicas. Mais mulheres, por exemplo, podem ser alienadas com a segregação injustificada de gêneros e acabarem em funções não adequadas ao seu perfil e habilidades, ou escolhendo cursos de graduação em áreas de não-afinidade. Isso desperdiça potenciais bons profissionais e acaba ferindo não apenas o indivíduo subvalorizado mas a economia como um todo e o progresso da sociedade (3).
Um estudo publicado em 2018 no periódico Child Development (Ref.31), ao analisar um grupo bastante diverso de 230 crianças com idades de 7 a 12 anos, mostrou que elas falam em duas vozes: uma que a sociedade espera que elas digam (ideológica) e uma que representa suas próprias experiências e forma de ver o mundo. Todas as faixas de idade sabiam diferenciar bem o que era coisa de menino e o que era coisa de menina, porém também demonstravam resistência a uma ou mais imposições que pareciam ilógicas, especialmente as meninas. Entre os 10 e 12 anos, muitas meninas questionavam injustiças ou limitações impostas a elas apenas por serem meninas. Ao ser questionada sobre dificuldades que enfrenta, uma menina, por exemplo, disse: "Eu acho injusto que garotos não me deixem brincar com eles nos seus 'jogos de meninos.'" Já outra menina questionou porque só os meninos podiam gostar de super-heróis. Outras, principalmente as mais velhas, questionavam regras sociais mais complexas, como injustiças contra as mulheres ao redor do mundo ou a resistência normativa na hora de escolher uma ocupação profissional ("lugar de mulher é dentro de casa"). Meninas mais novas e mais velhas frequentemente relatavam que meninos eram mais valorizados e vistos como mais habilidosos em vários esportes e atividades, e questionavam incisivamente a validade disso. Meninos também mostraram não entender alguns estereótipos colocados nas meninas, como nos esportes, e citavam, por exemplo, diversas atletas profissionais. Mas como os meninos estão inseridos em uma sociedade patriarcal, em uma mais alta hierarquia, eles acabam criando uma menor resistências às ideologias de gênero impostas, como foi, de fato, reforçado pelo estudo.
Esse último trabalho reforça a importância dos educadores e familiares agirem nessa fase de idade - infância e pré-adolescência - para que estereótipos e normas preconceituosas não alienem e/ou subjugue os gêneros com o passar do tempo, aproveitando da resistência natural das crianças e adolescentes às regras impostas que sejam injustas e preconceituosas. Um indivíduo não deixa de ser mulher porque gosta de usar cabelo curto, ou porque não gosta de usar saia e maquiagem, ou porque gosta de jogar futebol. Um indivíduo não deixa de ser mulher porque escolheu uma carreira militar ou policial. Chorar frequentemente de emoção ou não gostar de esportes não faz um indivíduo deixar de ser homem. Gostar de dançar, incluindo balé, não faz um indivíduo deixar de ser homem. Existem variações naturais de afinidade independentemente da identidade de gênero. Deixar isso claro para as crianças é mais do que importante. Precisamos eliminar desde cedo o rótulo negativo imposto à figura do ser feminino, e mostrar que um indivíduo não pode ser alvo de subjugação ou exclusão injustificada para ser aceito como uma mulher ou uma menina.
Nas últimas décadas, as ideologias mais igualitárias estão crescendo substancialmente em influência, acompanhando a evolução social no Antropoceno. Se antes, na pré-história, quando nossa espécie estava se aventurando pelas savanas e ambientes muito perigosos e com recursos mais escassos, a função das fêmeas era primariamente engravidar e amamentar para garantir a persistência humana na Terra, hoje as diversas tecnologias e avanços sociais tornam as imposições de tarefas e de expectativas entre os gêneros injustificáveis, principalmente com a existência do planejamento familiar e grande sucesso e maior atuação das mulheres no mercado de trabalho. Não é errado a valorização de uma cultura diferenciando os indivíduos com base no sexo a nível de vestuário e outras características associadas a gêneros, mas é importante não impor padrões aos indivíduos contra a vontade desses últimos e muito menos fomentar desigualdades sócio-econômicas e de oportunidades com tratamentos diferenciados.
As ideologias de gênero muito conservadoras também podem trazer preconceito e violência. Por exemplo, um juiz pode decidir por um caso baseado em falsos preceitos sobre o papel do homem e da mulher na família, favorecendo uma mãe na guarda dos filhos apenas porque ela é mulher, onde o pai pode ser um responsável muito melhor. Outra cruel realidade é a intensa violência física, sexual e psicológica contra a mulher, esta a qual tende a ser subjugada frente ao homem sob normalização social. O número de feminicídios - homicídio contra mulheres pelo fato de serem mulheres - é alarmante. No mundo todo, em 2017, a ONU reportou 87 mil mulheres mortas vítimas do feminicídio, sendo 58% dos casos envolvendo pessoas próximas da vítima (companheiro, ex-maridos, familiares) (Ref.22). Na América Latina, a cada 6 horas um feminicídio ocorre, e 40% dos casos em 2017 se concentraram no Brasil. Por fim, muitos casos de depressão e de suicídios estão ligados aos transgêneros e a quadros de rejeição social baseados em uma injusta não adequação às expectativas sociais. Em um estudo Norte-Americano de 2011, 41% dos indivíduos transgêneros em um grupo de análise reportaram ter tentado suicídio, em comparação com 1,6% da população em geral (Ref.36).
Porém, também é errôneo seguir um pensamento igualitário extremista esperando que todas as habilidades, preferências e visão de mundo de meninos e meninas - ou outros gêneros no espectro - possam ser iguais. Podemos citar um exemplo a frase emblemática da Simone de Beauvoir "Não se nasce mulher: torna-se mulher." (1949), a qual é frequentemente distorcida para uma interpretação extremista das obras da filósofa, apesar desta última minimizar ao máximo a importância das diferenças biológicas. Esse é, obviamente, um pensamento ultrapassado para se definir 'gênero' do ponto de vista sócio-biológico, e só faz sentido quando aplicado para os 'papéis de gênero'. Ora, esses gêneros normalmente estão associados a corpos anatomicamente diferentes, orientados também por fatores biológicos distintos, não apenas sociais. A testosterona, por exemplo, naturalmente eleva a agressividade no indivíduo e seu desejo sexual, e encontra-se em maior nível circulante e atuante [receptores androgênicos] no sexo masculino. Algumas profissões, por exemplo, podem fomentar uma maior afinidade de indivíduos do sexo feminino do que com o masculino, sem que isso esteja necessariamente associado com desigualdades sócio-econômicas, educacionais ou preconceito, e sim às características do próprio corpo e/ou cérebro dependentes no geral do sexo biológico.
Por isso o estudo das ideologias de gênero em diferentes sociedades, culturas e tempos históricos é importante para o entendimento e progresso da humanidade. O fomento às ideologias de gêneros mais igualitárias, fugindo dos extremos ideológicos, é o caminho lógico para a busca por justiça social, desenvolvimento econômico e combate ao preconceito.
IDEOLOGIA POLÍTICA DE GÊNERO
Mas nessa história toda, estamos novamente nos desviando da questão central. A transgeneridade afeta uma parcela muito pequena da população e indivíduos com disforia de gênero são ainda menos comuns. O que essa questão tem a ver com a promoção de ideologias mais igualitárias de gênero, as quais visam os papéis de gênero, não a identidade, comportamento ou expressão de gênero?
De novo, os indivíduos da Cruzada Ideológica usam o criticismo da APCeds em relação aos estudos biológicos de gênero e tratamento de crianças com disforia de gênero para sustentarem um suposto movimento tentando transformar meninos em meninas e vice-versa, heterossexuais em homossexuais, e por aí vai. Como já reforçado inúmeras vezes neste artigo, não importa o gênero de uma pessoa, os movimentos de promoção das ideologias igualitárias querem o fim do preconceito e segregação dos gêneros em relação aos seus papéis na sociedade, independentemente se a pessoa é transgênera, gênero-diversa ou cisgênera, homem ou mulher, ou independentemente das causas para essas determinações.
CONCLUSÃO
Ideologias de gênero referem-se a diferentes visões sobre os papeis e valores de homens e de mulheres na sociedade. Gênero (expressão e identidade) é uma complexa construção biológica e psicossocial que define como o indivíduo vê a si mesmo, expressa-se e interage com o mundo ao seu redor. Identidade de gênero é uma manifestação neurobiológica de autoidentificação com um gênero. Biologia endógena e exposição a andrógenos pré-natais têm sido estabelecidos como fatores primários determinando a identidade de gênero. Não existe evidência suportando uma 'teoria exógena' para como a identidade de gênero se desenvolve. Expressão de gênero depende de fatores sócio-culturais e biológicos. Já a bandeira política acusando a suposta ameaça de um movimento de "Ideologia de Gênero" é uma falácia que aborda erroneamente temas diversos que englobam sexualidade, gênero, ideologias de gênero e família.
A construção dessa falsa Ideologia de Gênero e a defesa de que as visões mais tradicionalistas dos papeis de gênero na sociedade são as corretas e 'naturais', representam um grave retrocesso político instaurado no Brasil que coloca em risco vários avanços sociais no campo da afirmação dos direitos das mulheres, das políticas de planejamento familiar, da saúde pública e da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais/transgêneros (LGBT) obtidos nas últimas décadas.
Não incentivar a discussão de gênero e sexualidade na escola contribui para a persistência das desigualdades e discriminações sociais, fomentando violências e prejuízos de todos os tipos no espaço escolar ou em outros ambientes sociais. O debate sobre gênero e sexualidade na escola pode diminuir a subvalorização da mulher e a misoginia, conduzir à promoção da igualdade de oportunidades e de liberdades para os gêneros, e da diversidade sexual, por meio do aprendizado do convívio com diferenças socioculturais. Assim, evitam-se situações de sofrimento, adoecimento e abandono escolar, elevando o potencial de desenvolvimento saudável das crianças e adolescentes.
Discutir sobre sexualidade NÃO promove homossexualidade ou outras mudanças na orientação sexual. Discutir sobre os papeis dos gêneros na sociedade e sobre o conceito de gênero NÃO promove confusão na cabeça das crianças e adolescentes, ou - mais absurdo ainda - transgeneridade. Ignorar que diferentes variações de identidade de gênero existem e martelar que meninas e meninos só podem fazer determinadas coisas, SIM, promove danos às crianças e adolescentes e às famílias.
A disforia de gênero é definida como uma "marcante incongruência entre o gênero experienciado ou expressado e aquele no qual o indivíduo foi identificado no nascimento (menino ou menina)" (Ref.78). Pessoas que experienciam esse nível de incongruência não conseguem correlacionar a própria identidade de gênero com aquela tradicionalmente esperada pela rígida separação binária da sociedade (homem/sexo masculino e mulher/sexo feminino), algo que pode causar estigmatização cultural. Isso pode eventualmente resultar em dificuldades de relacionamento com a família, parentes, amigos e levar a conflitos interpessoais, rejeição da sociedade, sintomas de depressão e ansiedade, transtornos de uso de substâncias, um senso negativo de bem-estar e baixa autoestima, e um risco aumentado de auto-inflição de danos e de suicídio. Pacientes com essa condição precisam de suporte psiquiátrico.
A disforia de gênero é particularmente significante quando afeta adolescentes, isso porque a puberdade representa uma dramática fase que aumenta a atenção do indivíduo para a expressão natural do sexo biológico em uma direção não desejada que não pode, a princípio, ser evitada. Aliás, a adolescência é descrita como o momento onde problemas psicológicos tendem a emergir ou aumentar, especialmente em termos de depressão, ansiedade, comportamentos auto-destrutivos, pensamentos e tentativas suicidas, baixa autoestima e isolamento social. Portanto, pais e educadores devem estar mais atentos quanto à questão de gênero nessa fase.
Dois exemplos notáveis de disforia de gênero que exemplificam bem esse cenário foram descritos em 2019 no periódico Archives of Sexual Behavior (Ref.79), e que podem representar um padrão ignorado. No caso, dois adolescentes, um de 14 anos do sexo masculino ("L.") e o outro de 13 anos do sexo feminino ("M."), intencionalmente restringiram de forma dramática o consumo alimentar porque ouviram na aula de biologia (em distintas escolas) que uma severa restrição dietética era capaz de impedir o desenvolvimento pubertário. L. desejava prevenir engrossamento da voz e virilização dos pelos faciais e corporais - algo que lhe causava profundo distresse - e M. desejava impedir o aparecimento de um corpo com forma feminina, crescimento das mamas e o ciclo menstrual. Além disso, M. corria várias horas por dia, na esperança de aumentar a massa muscular e virilizar a forma do corpo, e evitava contato com a imagem corporal (ex.: espelho) e partes sexualizadas (ex.: usava uma bandagem cobrindo suas mamas). Obviamente, a drástica restrição calórica resultou, em ambos os casos, um índice de massa corporal (IMC) bem abaixo do saudável.
Adolescentes com disforia de gênero têm sido descritos como tendo altas taxas de sintomas de anorexia nervosa e distúrbios de imagem corporal. Restrição alimentar severa pode representar um mecanismo disfuncional de cópia para prevenir mudanças corporais durante a puberdade em indivíduos transgêneros, e não uma tradicional anorexia nervosa. Ambos os pacientes foram submetidos a uma transição com hormônios e, no caso de L., aos 18 anos de idade, intervenção cirúrgica, com ótimos resultados em termos psicológicos, sociais e de alimentação (IMC progressivamente alcançou um nível saudável).
Durante a avaliação psicológica antes do tratamento, L. reportou uma história desde muito novo de identificação com o sexo oposto ("Eu sempre soube que era uma menina, mas percebia que não era tratada como uma"). Ela sentia que sua transgeneridade era clara, mas escondia isso desde criança porque sentia que o mundo ao redor dela esperava que se comportasse como um menino. L. descreveu a puberdade como um dramático momento onde ela se sentia enojada com o desenvolvimento cada vez mais masculino do corpo, particularmente da genitália, da distribuição capilar e da voz. Passou a evitar olhar o corpo, e as mudanças corporais aprofundaram a disforia de gênero, a depressão, ansiedade, isolamento social e uma idealização suicida emergiu. Por causa disso, nunca tinha se masturbado e nunca teve experiências sexuais. No entanto, ela teve relações amorosas com um menino homossexual que a ajudou a resolver sua confusão sobe sua orientação sexual ("Eu me sentia desconfortável com meu namorado me tratando como um menino e queria ser considerada como uma menina em uma relação heterossexual"). Ela também sofria bullying de colegas da escola por causa dos seus comportamentos femininos. Seus pais sempre deram suporte à filha e rapidamente se tornaram ativistas pela causa transgênera.
A situação de M. era similar, e, até onde lembrava, sempre se sentiu como um menino e nunca como uma menina. Ele também escondia sua transgeneridade porque temia reações negativas da família e do ambiente escolar. Desde a infância, M. manifestava clara preferência por brinquedos e brincadeiras tipicamente de meninos, com estes os quais ele compartilhava mais interesses. Ele também preferia roupas tipicamente masculinas e escolhia personagens masculinos em jogos diversos (ex.: RPG). Além disso, M. reportou sempre ter se sentido desconfortável em vestir roupas femininas, e tinha atração sexual exclusiva por meninas. Sua puberdade foi descrita como um momento de intenso sofrimento, e ele lembrou que a menstruação aos 10,5 anos de idade foi um grande choque e percebida como repulsiva porque confirmava que seu corpo estava se desenvolvendo em uma direção oposta à sua identidade de gênero. Com o crescimento das mamas e um corpo cada vez mais feminino, ele começou a se isolar socialmente e funções escolares começaram a ficar comprometidas.
A disforia de gênero entre crianças e adolescentes transgêneros pode ser resolvida ao alterar a expressão de gênero de modo a coincidir com a identidade de gênero, através de mudanças nas roupas, aparência e, em alguns casos, ao modificar o corpo através de hormônios ou cirurgias.
"TERAPIAS DE CONVERSÃO"
Um estudo publicado no periódico JAMA Psychiatric (Ref.59), analisando quase 28 mil adultos transgêneros ao longo dos EUA, mostrou que as terapias de conversão da identidade de gênero (tentativa de 'transformar' transgêneros em cisgêneros') estão associadas com efeitos mentais adversos, como aumento na taxa de suicídio. O estudo observacional encontrou que 3869 (19,6%) dos participantes foram expostos a esforços de conversão do gênero. Essa exposição mostrou-se associada com graves distúrbios psicológicos ao longo da vida comparado com adultos transgêneros que discutiram a identidade de gênero com um profissional mas que não foram expostos aos esforços de conversão. Tentativas de conversão antes dos 10 anos de idade foram também associados com uma maior chance de tentativas de suicídio ao longo da vida.
Nos EUA, existem leis a nível estadual banindo essas terapias de conversão, as quais são repudiadas por diversas associações de saúde e de psicologia Norte-Americanas, como a Associação Médica Americana e a Associação Americana de Psiquiatria. O novo estudo e essas organizações suportam que as terapias de conversão de identidade de gênero devem ser evitadas com crianças e adultos.
Não existe evidência científica mínima de que essas terapias de conversão são efetivas (Ref.60-62), pelo contrário, são medicamente desnecessárias e mesmo perigosas. Os métodos utilizados são diversos, incluindo hipnose, para tentar tornar o "paciente" mais estereotipicamente feminino ou masculino. Isso reforça que fatores biológicos são cruciais para a construção da identidade de gênero e que as variações de gênero (identidade e expressão) não são dependentes apenas de fatores psicossociais e sócio-culturais, especialmente para a emergência da transgeneridade.
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CONSTRUTIVISMO BIOLÓGICO E SÓCIO-CULTURAL (Identidade de gênero e Expressão de Gênero)
Essas diferenças de exposição/sensibilidade hormonal, de fatores genéticos e de fatores ambientais (incluindo interatividade social e epigenética) agem em conjunto para determinar o gênero de uma pessoa (identidade e expressão). Um fenótipo resultante dessa ação conjunta foi inclusive bem demonstrado por um estudo apresentado na Sociedade Europeia de Endocrinologia em maio de 2018 (Ref.5), onde foi mostrado que a atividade cerebral de adolescentes transgêneros se aproxima mais dos padrões típicos do gênero auto-reportado, e essas funções cerebrais invertidas em relação ao sexo biológico parecem já serem estabelecidas durante o desenvolvimento embrionário do indivíduo. E como visto no verme C. elegans, diferenças entre as forças de conexão neural já são suficientes para determinar os comportamentos tipicamente associados com um ou outro sexo, e a expressão ou não de certos genes são suficientes para alterar esses comportamentos independentemente do sexo. Nesse sentido, padrões de atividade cerebral são gênero-dependentes, não apenas ligados ao sexo biológico. No final, podemos seguramente afirmar que gênero não é possível de ser definido apenas com 'doutrinação' ou apenas pela existência de um cromossomo XX ou de um XY. Em particular, a identidade de gênero é claramente determinada por fatores biológicos.
Um exemplo bem interessante que pode ilustrar bem a independência entre gênero [identidade] e sexo biológico, e a influência da expressão de gênero na atividade cerebral, foi fortemente sugerido na tese de PHD da pesquisadora Therese Rydberg, da Universidade de Gothenburg, Suécia (Ref.66). Rydberg, ao analisar vários indivíduos expressando diferentes aspectos de feminidade, masculinidade e androgenia, encontrou que tanto entre homens quanto entre mulheres com um mais alto nível de feminidade a prevalência de depressão era maior. Para traços mais masculinos e de androgenia, uma relação inversa foi encontrada: entre homens e mulheres mais masculinos ou andrógenos, a prevalência de depressão era menor.
E o estabelecimento de gêneros associados aos sexos biológicos e a autoidentificação inata a esses gêneros fazem sentido no contexto do ambiente em que os humanos modernos (Homo sapiens) e ancestrais evoluíram, no sentido de otimizar a interação ambiental e as chances de sobrevivência e reprodutivas dos indivíduos de diferentes sexos. No caso das fêmeas, comportamentos que melhor se ajustem aos eventuais processos de gravidez e maior proximidade com os filhos durante a amamentação; no caso de machos para prováveis, intensas e agressivas disputas intraespecíficas por territórios e fêmeas; e em ambos os sexos para melhor lidarem com a prole, atividades de caça e de coleta de alimentos, e defesa do grupo e/ou família, espelhando as diferenças biológicas e reprodutivas dos indivíduos. Aliás, é estimado que durante 95% do percurso evolutivo dos humanos modernos desde a emergência da nossa espécie há cerca de 300 mil anos na África, vivemos como caçadores-coletores, com possível divisão de tarefas ou provável afinidade diferencial de tarefas entre os sexos: fêmeas mais focadas na coleta de frutos, sementes e outros vegetais; machos mais focados na caça e conflitos intra- e interespecíficos (!). Elementos físicos, sociais e ecológicos repetidos por um longo tempo geralmente levam a adaptações genéticas ao ambiente de modo a maximizar as chances de sobrevivência e reprodutivas. Por exemplo, machos preferencialmente disputando agressivos conflitos é um fator que pode ajudar a prevenir perda de fêmeas e, portanto, crítico potencial reprodutivo no grupo.
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(!) Válido mencionar que essas divisões binárias em atividades diversas não eram necessariamente estritas, e tanto homens quanto mulheres pareciam participar na atividade de caça em diferentes extensões ao longo da história evolutiva humana. Obviamente o contexto ambiental e outras circunstâncias influenciavam nesse aspecto. Exemplo: Atividade de caça na pré-história era gênero neutro: mulheres e homens caçavam nas Américas
> Comportamentos inatos diferenciados, papeis reprodutivos distintos e divisões naturais de tarefas inclusive fazem sentido com óbvios dismorfismos sexuais exibidos na nossa espécie. Humanos machos são frequentemente mais altos, possuem ossos mais fortes, possuem mais massa muscular e força, e maior capacidade aeróbica. Durante exercícios de resistência, fêmeas humanas exibem menos fatiga e se recuperam mais rapidamente.
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Nesse sentido, fica também mais do que óbvio as múltiplas variações na identidade de gênero nas populações humanas. Devido à complexa rede interligada de fatores biológicos, sócio-culturais e psicossociais responsáveis pela construção, identidade e expresssão de gêneros, cada pessoa terá uma assinatura diferenciada em termos de interagir com o mundo e identificar a si mesmo, assim como aspectos físicos do corpo (cor da pele, altura, formato do rosto, etc.) são diferentes para cada um, inclusive padrões totalmente inesperados em raros casos (ex.: desenvolvimento sexual diferente causado por anomalias genéticas ou fatores atípicos no desenvolvimento uterino). Nesse último ponto, no geral, a identidade de gênero corresponde ao gênero esperado para um determinado sexo dentro de um grupo, mas desvios podem ocorrer (transgeneridade e não-binaridade) .
Para finalizar, apesar das pessoas associarem erroneamente os transgêneros aos tempos modernos e de sociedades mais igualitárias e liberais, indivíduos transgêneros sempre foram documentados em muitas tribos indígenas, e em culturas Ocidentais e Orientais desde a Antiguidade, assumindo diferentes significados ao longo das culturas. Isso reforça que a manifestação da identidade de gênero é uma real entidade neurobiológica, associada a gêneros e expressões de gênero moldados por fatores sócio-culturais.
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Existe gênero nos animais não-humanos? Apesar de termos usado experimentos em animais não-humanos sugestivos de uma base biológica para a identidade de gênero, não exploramos em específico se esses e outros animais expressam alguma forma de gênero. Se consideramos o construtivismo social como necessário para a determinação de um gênero, ficaria difícil demostrar tal característica nos animais em geral. Porém, se pudermos considerar 'gênero' como o modo que você é tratado pelos outros indivíduos da sua própria espécie, ou ao "poder e recursos" que você é capaz de acumular em seu meio de convívio, temos como atribuir a noção de gênero a outros animais. Gênero nesse caso pode representar simplesmente a aparência, comportamento e história de vida do corpo sexuado ou um sistema que restringe e encoraja comportamentos padronizados. Seria a forma como os outros indivíduos tratam você baseado em como o seu sexo é percebido.
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Nesse sentido, fica também mais do que óbvio as múltiplas variações na identidade de gênero nas populações humanas. Devido à complexa rede interligada de fatores biológicos, sócio-culturais e psicossociais responsáveis pela construção, identidade e expresssão de gêneros, cada pessoa terá uma assinatura diferenciada em termos de interagir com o mundo e identificar a si mesmo, assim como aspectos físicos do corpo (cor da pele, altura, formato do rosto, etc.) são diferentes para cada um, inclusive padrões totalmente inesperados em raros casos (ex.: desenvolvimento sexual diferente causado por anomalias genéticas ou fatores atípicos no desenvolvimento uterino). Nesse último ponto, no geral, a identidade de gênero corresponde ao gênero esperado para um determinado sexo dentro de um grupo, mas desvios podem ocorrer (transgeneridade e não-binaridade) .
Para finalizar, apesar das pessoas associarem erroneamente os transgêneros aos tempos modernos e de sociedades mais igualitárias e liberais, indivíduos transgêneros sempre foram documentados em muitas tribos indígenas, e em culturas Ocidentais e Orientais desde a Antiguidade, assumindo diferentes significados ao longo das culturas. Isso reforça que a manifestação da identidade de gênero é uma real entidade neurobiológica, associada a gêneros e expressões de gênero moldados por fatores sócio-culturais.
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Existe gênero nos animais não-humanos? Apesar de termos usado experimentos em animais não-humanos sugestivos de uma base biológica para a identidade de gênero, não exploramos em específico se esses e outros animais expressam alguma forma de gênero. Se consideramos o construtivismo social como necessário para a determinação de um gênero, ficaria difícil demostrar tal característica nos animais em geral. Porém, se pudermos considerar 'gênero' como o modo que você é tratado pelos outros indivíduos da sua própria espécie, ou ao "poder e recursos" que você é capaz de acumular em seu meio de convívio, temos como atribuir a noção de gênero a outros animais. Gênero nesse caso pode representar simplesmente a aparência, comportamento e história de vida do corpo sexuado ou um sistema que restringe e encoraja comportamentos padronizados. Seria a forma como os outros indivíduos tratam você baseado em como o seu sexo é percebido.
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Como uma resposta aos movimentos feministas e ao maior reconhecimento de direitos pelos indivíduos LGBT, especialmente na questão da formação de casais homossexuais (adoção de filhos e casamento), grupos religiosos Cristãos e certas organizações conservadoras iniciaram uma verdadeira Cruzada Ideológica sob a bandeira de combate à Ideologia de Gênero. Segundo essa bandeira, a estrutura da família estaria sendo degradada pela imposição dessa assim chamada 'ideologia de gênero' na sociedade, alienando as crianças e sugerindo que não existiria uma dictomia de gênero e que as pessoas poderiam escolher o gênero e orientações sexuais que quisessem.
A bandeira anti-ideologia de gênero distorce de forma incoerente as atitudes mais igualitárias de gênero, as orientações sexuais e a base biológica de gênero e de sexo, visando o fortalecimento político, social e cultural de uma visão mais tradicionalista do que seria o comportamento 'certo' do homem e da mulher na sociedade. Muitos ativistas conservadores têm também argumentado que o 'genderismo' é uma ideologia reforçada por forças políticas estrangeiras para dar suporte a um projeto de longo prazo que intenciona a disrupção dos papeis tradicionais dos gêneros e da família. Isso fomentou a emergência de várias campanhas 'anti-genderismo' ao redor do mundo, as quais acusam uma crescente subversão dos papeis naturais dos gêneros e a tentativa anti-natural de separar sexo biológico de gênero.
Muitos acadêmicos consideram que a reação do Vaticano à Quarta Conferência das Nações Unidas sobre as Mulheres, sediada em Pequim no ano de 1995, foi o ponto de início dos movimentos baseados na Ideologia de Gênero. Naquele mesmo ano, o Vaticano condenou parte dos documentos preparatórios da conferência relacionados à saúde sexual e reprodutiva, e começou a usar termos como 'agenda de gênero' ou 'feministas de gênero' para descrever o que seriam políticas 'anti-família' sendo construídas. Em 1997, uma católica, Dale O’Leary, que também esteve na Conferência de Pequim, lançou nos Estados Unidos o livro The Gender Agenda: Redefining Equality ('A Agenda de Gênero: Redefinindo Igualdade'). Segundo a autora, o objetivo da publicação era discutir a “radicalização do feminismo” a partir das influências do pensamento marxista para a construção do 'feminismo de gênero' pelas acadêmicas feministas. Já em 1998, inspiradas pelas reflexões de O’Leary (1997), a Comissão Episcopal do Apostolado Laical e a Conferência Episcopal do Peru lançaram um documento intitulado La ideologia de género: sus peligros y alcances, associando a perspectiva de gênero ao marxismo, ao ateísmo e à "visão construcionista" que negaria a dimensão natural e instintiva de homens e mulheres. Essa última obra influenciaria muitos movimentos de ideologia aqui na América Latina.
Em 2003, o Concílio Pontifício para a Família publicou o Léxicon da Família no qual incluiu termos como 'teoria de gênero' e 'genderismo' para descrever uma ideologia que forças políticas não-especificadas ou organizações LGBT estariam tentando impor para enfraquecer e destruir as tradições nacionais e a estabilidade. A partir daí, diversas questões relacionadas ou não com as ideologias de gênero começaram a ser incluídas nesses ataques, incluindo adoção de filhos por casais do mesmo sexo, casamentos entre pessoas do mesmo sexo, direito reprodutivo das mulheres, e programas progressivos de educação sexual.
No ano seguinte, em 2004, a Congregação para a Doutrina da Fé, dirigida pelo então Cardeal J. Ratzinger, enviou uma Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre a Colaboração do Homem e da Mulher na Igreja e na Sociedade, refutando as colocações da Antropologia moderna acerca da construção social dos gêneros, ou seja, negando a evolução e volubilidade histórica e social do papel do homem e da mulher nas diferentes sociedades e culturas.
Em 2010, tivemos outro grande marco da Cruzada Ideológica com a publicação do livro Ideologia de gênero: El género como heramienta de poder, de autoria do advogado Argentino, católico e professor de bioética Jorge Scala. O livro foi publicado no Brasil, em 2011, com o título 'Ideologia de Gênero: neototalitarismo e morte da família'. Em um comentário sobre sua obra, Scala argumenta:
"... o fundamento principal e falso (da ideologia de gênero) é este: o sexo seria o aspecto biológico do ser humano; e o gênero seria construção social ou cultural do sexo. Ou seja, cada um seria absolutamente livre, sem condicionamento algum, nem sequer o biológico -, para determinar seu próprio gênero, dando-lhe o conteúdo que quiser e mudando de gênero quantas vezes quiser."
Em 2016, o Papa Francismo chegou a declarar que a teoria de gênero é um "grande inimigo" do casamento tradicional e da família, uma "guerra global" que teria como meta, "não com armas, mas com ideias", propagar a "colonização ideológica", a qual "é contra a natureza". Segundo o pontífice, a "Ideologia de Gênero" seria uma tática aplicada por países do Primeiro Mundo para oprimir outras nações, e que "uma coisa é alguém ter essa tendência, e outra é ensinar isso na escola". Este ano, o Papa voltou a criticar o assunto, afirmando (Ref.53): "Você precisa de uma educação sexual objetiva, sem colonização ideológica. Se você começar a dar educação sexual repleta de colonização ideológica, você destrói a pessoa."
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MOVIMENTO NO BRASIL
Entrando na América Latina, a Cruzada Ideológica contra a suposta Ideologia de Gênero rapidamente alcançou o território Brasileiro. Desde o final da década de 1990, um maior diálogo do governo com os movimentos feministas e LGBT começou a ascender no país, com várias iniciativas sendo colocadas em prática a partir de 2003, com a subida de um programa político mais de esquerda ao poder. Entre os destaques nesse sentido, podemos citar:
- a realização da 1ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres e o lançamento do “Brasil sem homofobia: programa de combate à violência e à discriminação contra GLBT e promoção da cidadania homossexual”, em 2004;
- a instalação de uma Comissão Tripartite de Revisão da Legislação Punitiva sobre o Aborto, no ano de 2005; a realização de uma Audiência Pública sobre o Aborto, durante 2007;
- a realização da primeira Conferência Nacional de Políticas Públicas de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais, em 2008;
- o lançamento de um novo Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-III), em dezembro de 2009 e o Plano Nacional de Educação (PNE), enviado para o Congresso brasileiro em 2010.
Essas iniciativas, obviamente, irritaram os grupos mais conservadores no país, incluindo organizações Católicas e, principalmente, Evangélicas. Isso culminou, em 2003, com as primeiras contra-iniciativas de parlamentares em relação ao emprego das terminologias 'gênero' e 'orientação sexual' nas políticas públicas do governo de situação.
O Deputado Elimar Máximo Damasceno (PRONA/SP) propôs, na Comissão de Seguridade Social e Família, uma ementa ao Projeto de Lei n.º 007/2003, de autoria da parlamentar Iara Bernardi (PT/SP), que dispunha sobre a criação do Programa de Orientação Sexual, de Prevenção das Doenças Sexualmente Transmissíveis e do Uso de Drogas. Nessa ementa, o legislador do PRONA sugere suprimir as expressões gênero e orientação sexual dos artigos 1º e 2º do referido projeto, com a seguinte justificativa:
"Gênero e orientação sexual’ são neologismos para consagrar o homossexualismo contrário às tradições da sociedade brasileira. A pessoa homossexual merece o mesmo respeito dispensado a todo ser humano, já o homossexualismo, ou a sua apologia não podem ter o respaldo do Estado."
Nos anos seguintes, Damasceno continuou seus discursos contra a “ideologia de gênero” no plenário e em 2005 apresentou o PL 5.816/2005 propondo a criação de um projeto de apoio psicológico para pessoas que decidirem "voluntariamente deixar a homossexualidade". Vários outros políticos Cristãos e mais conservadores também atuaram para evitar que a perspectiva de gênero dirigisse iniciativas do governo federal no campo da educação, da saúde e dos Direitos Humanos. O Projeto de Lei 8035/10 com o Plano Nacional de Educação (PNE), em 2010, visando o período de 2011-2020 incitou um grande levante da Cruzada Ideológica, porque, entre os vários objetivos do PNE, encontrava-se, como colocado no artigo 2, a superação das desigualdades educacionais com o destaque de que se deveria dar "ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e orientação sexual."
Em 2013, referindo-se entre outras coisas ao PNE, o Pastor Marco Feliciano - naquela época um sacerdote católico - declarou: "existem inúmeros projetos de lei que querem inocular, no sistema jurídico brasileiro, a palavra gênero, como um vírus... É uma ideologia onde o ser humano é uma massa de modelar, totalmente flexível ou versátil e destrói a família". Em meio a outros ataques ideológicos de parlamentares ao PNE, Feliciano vêm em 2015 com dois projetos de lei: o PL 3235/2015, acrescentando um artigo (o 234-A) à Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990, que "Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências", e tem o objetivo de criminalizar o comportamento que induza à ideologia de gênero; e o PL 3236/2015, o qual insere um parágrafo que exclui a ideologia de gênero ao artigo 2º da Lei n.º 13.005, de 25 de junho de 2014, que "Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE e dá outras providências".
Citando o ano de 2014, o deputado estadual do Rio de Janeiro, Flávio Bolsonaro (católico e integrante do PSC), pediu a Miguel Nagib (católico e advogado) por um projeto de lei baseado no movimento do Escola Sem Partido, este o qual foi fundado por Nagib. O movimento Escola Sem Partido luta pelo fim da assim chamada 'doutrinação nas escolas', visando a "descontaminação e desmonopolização política e ideológica das escolas"; o "respeito à integridade intelectual e moral dos estudantes"; e o "respeito ao direito dos pais de dar aos seus filhos a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções." A Escola sem Partido também inclui a luta contra a Ideologia de Gênero. Com a ideia sendo abraçada por grupos conservadores e religiosos, isso culminou na criação do PL 2974/2014, o qual também foi apresentado na câmara municipal da capital do Rio de Janeiro pelo seu irmão e vereador Carlos Bolsonaro.
Voltando a 2015, parlamentares da bancada evangélica apresentaram o PDC 30/2015, um conjunto de projetos que visam "sustar" a Resolução n.º 12, de 16 de janeiro de 2015, do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoções dos Direitos de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais - CNDC/LGBT, que "...estabelece parâmetros para a garantia das condições de acesso e permanência de pessoas travestis e transexuais [...] nos sistemas e instituições de ensino, formulando orientações quanto ao reconhecimento institucional da identidade de gênero e sua operacionalização." Outros PDCs da bancada evangélica foram também apresentados com objetivos similares ao longo de 2015 e 2016, basicamente tentando silenciar discussões de gênero em relação aos transexuais.
Ainda em 2016, o senador e pastor pentecostal Magno Malta (PR/ES) apresentou o projeto de lei PLS193, o qual inclui o "Programa Escola Sem Partido" entre as diretrizes e bases da educação nacional, de que trata a Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996. No parágrafo único do artigo 2, temos:
"...o Poder Público não se imiscuirá na opção sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer, precipitar ou direcionar o natural amadurecimento e desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero."
Nas últimas eleições presidenciais (2018), a ameaça da Ideologia de Gênero, assim como supostas ameaças da implantação de um Fascismo ou de um Comunismo caso um ou outro candidato fosse eleito, foi bastante utilizado como campanha política, com um dos principais protagonistas o famigerado "Kit Gay" (Ref.35), apelido do projeto 'Escola sem Homofobia', voltado para educadores e não a crianças. Segundo o lado mais conservador, o Kit Gay seria uma forma de doutrinar as crianças, desvirtuando o desenvolvimento sexual delas e promovendo a homossexualidade. Também foram associados ao projeto da Escola sem Homofobia - não aprovado pelo governo em 2011 - o livro "Aparelho Sexual e Cia - Um guia inusitado para crianças descoladas", do Suíço Phillipe Chappuis, algo que se mostrou inverídico.
Hoje, a Damares Regina Alves - advogada, pastora evangélica e educadora brasileira - é a coordenadora do projeto educacional do Programa Proteger e atual Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos no governo de Jair Bolsonaro. Damares Alves vem causando polêmica com suas declarações controversas e é uma forte promotora da ideia de uma Ideologia de Gênero tomando conta da educação Brasileira e desestruturando as famílias.
Hoje, a Damares Regina Alves - advogada, pastora evangélica e educadora brasileira - é a coordenadora do projeto educacional do Programa Proteger e atual Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos no governo de Jair Bolsonaro. Damares Alves vem causando polêmica com suas declarações controversas e é uma forte promotora da ideia de uma Ideologia de Gênero tomando conta da educação Brasileira e desestruturando as famílias.
Analisando a questão sob o ponto de vista biológico, pudemos ver que sexo distingue-se de gênero. Sexo biológico, na espécie humana, faz menção à existência de machos e fêmeas, caracterizados por diferenças nos cromossomos sexuais, prevalência de hormônios e anatomia. Já o gênero são características comportamentais, físicas e de vestuário esperados para cada sexo em um determinado grupo; a identidade de gênero é o senso interno de identificação do indivíduo com um determinado gênero, o qual geralmente corresponde ao seu sexo biológico (indivíduo cisgênero), mas que em alguns casos pode não existir essa correspondência (indivíduos transgêneros ou não-binários). A identidade de gênero não possui relação direta com ideologias ou papeis de gênero - atividades econômicas e sociais de mulheres e homens na sociedade -, e está associada com diferenciações na estrutura neurobiológica dos indivíduos.
Nesse sentido, podemos dizer que fatores neurobiológicos [identidade de gênero] orientam meninos e meninas a seguirem ou não o comportamento expresso por mulheres e homens, ou por outros meninos e meninas, presentes no ambiente de convívio, expressando diferentes preferências e entendimento do que é o mais adequado ou não para o seu corpo e estilo de vida a partir de experiências diversas. Geralmente essa orientação é cisgênera, mas uma pequena parcela da população é transgênera (identificação com um gênero associado ao sexo oposto) ou não-binária (identificação com um gênero distinto daqueles binariamente associado aos sexos). Uma mulher trans, por exemplo, se identifica com o gênero esperado para o sexo feminino (mulher) apesar de pertencer ao sexo masculino. Indivíduos intersexo, onde características sexuais primárias e secundárias não são bem definidas (ex.: dissociação entre cariótipo sexual e genitália), podem se identificar ou não com gêneros associados a sexos bem definidos (masculino ou feminino).
Por outro lado, ideologias de gênero referem-se a uma construção exclusivamente social dependente de fatores culturais e variante ao longo da história humana. Nesse sentido, ideologias de gênero são normas socialmente pré-determinados de atividades, papeis e atributos que uma dada sociedade considera apropriado para meninos e homens ou meninas e mulheres, as quais podem ou não corresponder confortavelmente ao gênero naturalmente expresso pelos indivíduos. Essas ideologias esculpem os gêneros biologicamente e socialmente baseados, influenciando no modo como as pessoas agem, interagem, progridem, e vejam e sintam a si mesmas e aos outros. Ideologias de gênero não buscam construir gêneros ou identidades de gênero e, sim, exploraram os papeis dos gêneros na sociedade.
Primatas e humanos, como já mencionado, tendem a expressar preferências gênero-baseadas por brinquedos e atividades a partir de certa idade na infância, sem que isso tenha sido ensinado. Nos humanos, por exemplo, meninos tendem a gostar mais de brinquedos associados aos meninos, e meninas tendem a gostar mais de brinquedos associados às meninas. Porém, entre os meninos, existe uma mais forte preferência por brinquedos normalmente estereotipados para o sexo masculino, como carrinhos, bolas e espadas. Já as meninas tendem a não mostrar uma maior ou menor preferência entre os brinquedos. Essas são características naturais diferindo comportamentos sexo-baseados. Porém, devido às ideologias de gênero, uma sociedade ou família mais tradicional pode oferecer apenas brinquedos estereotipados às meninas - casinhas, bonecas, etc. -, limitando o espectro natural aceito dentro do sexo feminino - o qual pode variar muito de um indivíduo para indivíduo porque uma menina pode ser mais ou menos "masculinizada" do que outra (incluindo possível transgenderidade) dependendo de fatores biológicos e ambientais diversos.
Ideologias de gênero aumentam ou diminuem a segregação de papeis entre os sexos biológicos (homem e mulher), mas - reforçando - não constroem gêneros, estes os quais são frutos de uma complexa interação de fatores, sociais e biológicos. Aliás, a própria atividade cerebral de homens ou de mulheres é distinta em vários pontos, assim como o sistema endócrino. Antigamente, antes de grandes avanços nos campos da genética, da neurologia e da embriologia, acadêmicos sugeriam que fatores psicossociais, incluindo dinâmicas disfuncionais na família ou experiências traumáticas na infância, eram os determinantes para a transgeneridade, ignorando fatores biológicos. Hoje as evidências acumuladas apontam para um determinismo primariamente biológico, e supostas 'doutrinações de gênero' criando indivíduos transgêneros não passam de mitos. Como vimos, nem mesmo removendo genitais após o nascimento de pessoas intersexuais e criando-as como se fossem do sexo oposto ao indicado no seu genoma (XY ou XX) é possível impedir o desenvolvimento de disforias de gênero quando a identidade de gênero é ignorada.
Estudos explorando povos que ainda persistem com um estilo de vida coletor-caçador ao redor do mundo mostram, por exemplo, que mesmo em grupos com fraca imposição ideológica de atividades específicas para meninos e meninas, os indivíduos ao longo da infância ou entrando na adolescência buscam geralmente imitar as atividades e comportamentos dos adultos homens (meninos) ou mulheres (meninas), sendo guiados pelos gêneros naturalmente construídos no grupo (Ref.32).
Nesse sentido, podemos dizer que fatores neurobiológicos [identidade de gênero] orientam meninos e meninas a seguirem ou não o comportamento expresso por mulheres e homens, ou por outros meninos e meninas, presentes no ambiente de convívio, expressando diferentes preferências e entendimento do que é o mais adequado ou não para o seu corpo e estilo de vida a partir de experiências diversas. Geralmente essa orientação é cisgênera, mas uma pequena parcela da população é transgênera (identificação com um gênero associado ao sexo oposto) ou não-binária (identificação com um gênero distinto daqueles binariamente associado aos sexos). Uma mulher trans, por exemplo, se identifica com o gênero esperado para o sexo feminino (mulher) apesar de pertencer ao sexo masculino. Indivíduos intersexo, onde características sexuais primárias e secundárias não são bem definidas (ex.: dissociação entre cariótipo sexual e genitália), podem se identificar ou não com gêneros associados a sexos bem definidos (masculino ou feminino).
Por outro lado, ideologias de gênero referem-se a uma construção exclusivamente social dependente de fatores culturais e variante ao longo da história humana. Nesse sentido, ideologias de gênero são normas socialmente pré-determinados de atividades, papeis e atributos que uma dada sociedade considera apropriado para meninos e homens ou meninas e mulheres, as quais podem ou não corresponder confortavelmente ao gênero naturalmente expresso pelos indivíduos. Essas ideologias esculpem os gêneros biologicamente e socialmente baseados, influenciando no modo como as pessoas agem, interagem, progridem, e vejam e sintam a si mesmas e aos outros. Ideologias de gênero não buscam construir gêneros ou identidades de gênero e, sim, exploraram os papeis dos gêneros na sociedade.
Primatas e humanos, como já mencionado, tendem a expressar preferências gênero-baseadas por brinquedos e atividades a partir de certa idade na infância, sem que isso tenha sido ensinado. Nos humanos, por exemplo, meninos tendem a gostar mais de brinquedos associados aos meninos, e meninas tendem a gostar mais de brinquedos associados às meninas. Porém, entre os meninos, existe uma mais forte preferência por brinquedos normalmente estereotipados para o sexo masculino, como carrinhos, bolas e espadas. Já as meninas tendem a não mostrar uma maior ou menor preferência entre os brinquedos. Essas são características naturais diferindo comportamentos sexo-baseados. Porém, devido às ideologias de gênero, uma sociedade ou família mais tradicional pode oferecer apenas brinquedos estereotipados às meninas - casinhas, bonecas, etc. -, limitando o espectro natural aceito dentro do sexo feminino - o qual pode variar muito de um indivíduo para indivíduo porque uma menina pode ser mais ou menos "masculinizada" do que outra (incluindo possível transgenderidade) dependendo de fatores biológicos e ambientais diversos.
Ideologias de gênero aumentam ou diminuem a segregação de papeis entre os sexos biológicos (homem e mulher), mas - reforçando - não constroem gêneros, estes os quais são frutos de uma complexa interação de fatores, sociais e biológicos. Aliás, a própria atividade cerebral de homens ou de mulheres é distinta em vários pontos, assim como o sistema endócrino. Antigamente, antes de grandes avanços nos campos da genética, da neurologia e da embriologia, acadêmicos sugeriam que fatores psicossociais, incluindo dinâmicas disfuncionais na família ou experiências traumáticas na infância, eram os determinantes para a transgeneridade, ignorando fatores biológicos. Hoje as evidências acumuladas apontam para um determinismo primariamente biológico, e supostas 'doutrinações de gênero' criando indivíduos transgêneros não passam de mitos. Como vimos, nem mesmo removendo genitais após o nascimento de pessoas intersexuais e criando-as como se fossem do sexo oposto ao indicado no seu genoma (XY ou XX) é possível impedir o desenvolvimento de disforias de gênero quando a identidade de gênero é ignorada.
Estudos explorando povos que ainda persistem com um estilo de vida coletor-caçador ao redor do mundo mostram, por exemplo, que mesmo em grupos com fraca imposição ideológica de atividades específicas para meninos e meninas, os indivíduos ao longo da infância ou entrando na adolescência buscam geralmente imitar as atividades e comportamentos dos adultos homens (meninos) ou mulheres (meninas), sendo guiados pelos gêneros naturalmente construídos no grupo (Ref.32).
De qualquer forma, ideologias de gênero mais tradicionais (segregadoras) podem trazer graves prejuízos porque tendem a impor normas que limitam o potencial das crianças e adolescentes. Forçar aleatoriamente que certas coisas são apenas para meninas e outras coisas são apenas para meninos pode fazer com que as pessoas sejam subvalorizadas e reprimidas com bases apenas ideológicas. Mais mulheres, por exemplo, podem ser alienadas com a segregação injustificada de gêneros e acabarem em funções não adequadas ao seu perfil e habilidades, ou escolhendo cursos de graduação em áreas de não-afinidade. Isso desperdiça potenciais bons profissionais e acaba ferindo não apenas o indivíduo subvalorizado mas a economia como um todo e o progresso da sociedade (3).
- (3) Leitura complementar: Diferença salarial e o teto invisível: Obstáculos na luta pela igualdade entre homens e mulheres
Um estudo publicado em 2018 no periódico Child Development (Ref.31), ao analisar um grupo bastante diverso de 230 crianças com idades de 7 a 12 anos, mostrou que elas falam em duas vozes: uma que a sociedade espera que elas digam (ideológica) e uma que representa suas próprias experiências e forma de ver o mundo. Todas as faixas de idade sabiam diferenciar bem o que era coisa de menino e o que era coisa de menina, porém também demonstravam resistência a uma ou mais imposições que pareciam ilógicas, especialmente as meninas. Entre os 10 e 12 anos, muitas meninas questionavam injustiças ou limitações impostas a elas apenas por serem meninas. Ao ser questionada sobre dificuldades que enfrenta, uma menina, por exemplo, disse: "Eu acho injusto que garotos não me deixem brincar com eles nos seus 'jogos de meninos.'" Já outra menina questionou porque só os meninos podiam gostar de super-heróis. Outras, principalmente as mais velhas, questionavam regras sociais mais complexas, como injustiças contra as mulheres ao redor do mundo ou a resistência normativa na hora de escolher uma ocupação profissional ("lugar de mulher é dentro de casa"). Meninas mais novas e mais velhas frequentemente relatavam que meninos eram mais valorizados e vistos como mais habilidosos em vários esportes e atividades, e questionavam incisivamente a validade disso. Meninos também mostraram não entender alguns estereótipos colocados nas meninas, como nos esportes, e citavam, por exemplo, diversas atletas profissionais. Mas como os meninos estão inseridos em uma sociedade patriarcal, em uma mais alta hierarquia, eles acabam criando uma menor resistências às ideologias de gênero impostas, como foi, de fato, reforçado pelo estudo.
Esse último trabalho reforça a importância dos educadores e familiares agirem nessa fase de idade - infância e pré-adolescência - para que estereótipos e normas preconceituosas não alienem e/ou subjugue os gêneros com o passar do tempo, aproveitando da resistência natural das crianças e adolescentes às regras impostas que sejam injustas e preconceituosas. Um indivíduo não deixa de ser mulher porque gosta de usar cabelo curto, ou porque não gosta de usar saia e maquiagem, ou porque gosta de jogar futebol. Um indivíduo não deixa de ser mulher porque escolheu uma carreira militar ou policial. Chorar frequentemente de emoção ou não gostar de esportes não faz um indivíduo deixar de ser homem. Gostar de dançar, incluindo balé, não faz um indivíduo deixar de ser homem. Existem variações naturais de afinidade independentemente da identidade de gênero. Deixar isso claro para as crianças é mais do que importante. Precisamos eliminar desde cedo o rótulo negativo imposto à figura do ser feminino, e mostrar que um indivíduo não pode ser alvo de subjugação ou exclusão injustificada para ser aceito como uma mulher ou uma menina.
Nas últimas décadas, as ideologias mais igualitárias estão crescendo substancialmente em influência, acompanhando a evolução social no Antropoceno. Se antes, na pré-história, quando nossa espécie estava se aventurando pelas savanas e ambientes muito perigosos e com recursos mais escassos, a função das fêmeas era primariamente engravidar e amamentar para garantir a persistência humana na Terra, hoje as diversas tecnologias e avanços sociais tornam as imposições de tarefas e de expectativas entre os gêneros injustificáveis, principalmente com a existência do planejamento familiar e grande sucesso e maior atuação das mulheres no mercado de trabalho. Não é errado a valorização de uma cultura diferenciando os indivíduos com base no sexo a nível de vestuário e outras características associadas a gêneros, mas é importante não impor padrões aos indivíduos contra a vontade desses últimos e muito menos fomentar desigualdades sócio-econômicas e de oportunidades com tratamentos diferenciados.
As ideologias de gênero muito conservadoras também podem trazer preconceito e violência. Por exemplo, um juiz pode decidir por um caso baseado em falsos preceitos sobre o papel do homem e da mulher na família, favorecendo uma mãe na guarda dos filhos apenas porque ela é mulher, onde o pai pode ser um responsável muito melhor. Outra cruel realidade é a intensa violência física, sexual e psicológica contra a mulher, esta a qual tende a ser subjugada frente ao homem sob normalização social. O número de feminicídios - homicídio contra mulheres pelo fato de serem mulheres - é alarmante. No mundo todo, em 2017, a ONU reportou 87 mil mulheres mortas vítimas do feminicídio, sendo 58% dos casos envolvendo pessoas próximas da vítima (companheiro, ex-maridos, familiares) (Ref.22). Na América Latina, a cada 6 horas um feminicídio ocorre, e 40% dos casos em 2017 se concentraram no Brasil. Por fim, muitos casos de depressão e de suicídios estão ligados aos transgêneros e a quadros de rejeição social baseados em uma injusta não adequação às expectativas sociais. Em um estudo Norte-Americano de 2011, 41% dos indivíduos transgêneros em um grupo de análise reportaram ter tentado suicídio, em comparação com 1,6% da população em geral (Ref.36).
Porém, também é errôneo seguir um pensamento igualitário extremista esperando que todas as habilidades, preferências e visão de mundo de meninos e meninas - ou outros gêneros no espectro - possam ser iguais. Podemos citar um exemplo a frase emblemática da Simone de Beauvoir "Não se nasce mulher: torna-se mulher." (1949), a qual é frequentemente distorcida para uma interpretação extremista das obras da filósofa, apesar desta última minimizar ao máximo a importância das diferenças biológicas. Esse é, obviamente, um pensamento ultrapassado para se definir 'gênero' do ponto de vista sócio-biológico, e só faz sentido quando aplicado para os 'papéis de gênero'. Ora, esses gêneros normalmente estão associados a corpos anatomicamente diferentes, orientados também por fatores biológicos distintos, não apenas sociais. A testosterona, por exemplo, naturalmente eleva a agressividade no indivíduo e seu desejo sexual, e encontra-se em maior nível circulante e atuante [receptores androgênicos] no sexo masculino. Algumas profissões, por exemplo, podem fomentar uma maior afinidade de indivíduos do sexo feminino do que com o masculino, sem que isso esteja necessariamente associado com desigualdades sócio-econômicas, educacionais ou preconceito, e sim às características do próprio corpo e/ou cérebro dependentes no geral do sexo biológico.
Por isso o estudo das ideologias de gênero em diferentes sociedades, culturas e tempos históricos é importante para o entendimento e progresso da humanidade. O fomento às ideologias de gêneros mais igualitárias, fugindo dos extremos ideológicos, é o caminho lógico para a busca por justiça social, desenvolvimento econômico e combate ao preconceito.
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IDEOLOGIA POLÍTICA DE GÊNERO
Contudo, como também vimos, existe uma verdadeira Cruzada Ideológica iniciada na década de 1990 que distorce o conceito de ideologias de gênero, misturando erroneamente não só questões de gênero, mas também de orientações sexuais, direitos associados aos casais homossexuais e construção de famílias. Basicamente, essa bandeira distorcida de anti-Ideologia de Gênero luta pelos valores tradicionais da família, atacando quaisquer promoções ideológicas mais igualitárias de gênero, por acreditarem que isso está visando transformar meninos em meninas, heterossexuais em homossexuais, entre outros absurdos. Para os grupos Cristãos e organizações conservadoras que lutam contra a suposta 'Ideologia Destrutiva de Gêneros' sendo promovida no mundo, transgêneros e homossexuais são frutos ideológicos, envolvendo escolhas impostas por educadores subversivos. Aliás, essa bandeira distorcida ignora que imposições mais tradicionalistas de papeis de gênero são uma forma de ideologia de gênero.
Primeiro, orientações sexuais são biologicamente determinadas, não existindo evidências de que sejam oriundas do construtivismo social (4). Segundo, como já discutido, os transgêneros não 'optam' ou são ensinados a serem transgêneros, isso é algo fortemente definido por fatores biológicos, não existindo evidências de que seja algo possível de emergir via simples manipulação social. Terceiro, meninas ou meninos não deixam de serem meninos ou meninas via simples intervenção educacional. O consenso científico hoje é que o gênero é algo pré-estabelecido por complexos fatores biológicos (genética, hormônios, epigenética) e esculpidos por fatores psicossociais. Além disso, dentro dos gêneros 'menino' e 'menina' existem várias variações com diferentes preferências e formas de ver o mundo. Quarto, casais homossexuais não destroem o conceito de família ao adotarem filhos, e estudos diversos mostram que não existem prejuízos para a criança criada por casais de mesmo sexo (5). A única "destruição" é deixar crianças mofando em abrigos sem família alguma.
Mas o ponto mais importante é que a Ideologia de Gênero dos quais os Cruzados fazem referência é o fomento às ideologias mais igualitárias, e estas não estão interessadas se um indivíduo é menino ou menina, cisgênero ou transgênero, apenas visam dar iguais oportunidades e liberdades aos meninos e às meninas, aos homens e às mulheres, aos indivíduos transgêneros, cisgêneros ou não-binários. Ideologias de gênero, sejam tradicionais ou igualitárias, focam nos papeis dos gêneros na sociedade. E as ideologias igualitárias querem acabar com a subvalorização de um gênero em detrimento de outro, o que na sociedade atual é o combate ao modelo patriarcal e ao incoerente 'lugar de mulher é na casa, gerando e cuidando de filhos'. Não existe tentativa de 'confundir as crianças'. Isso é uma falácia. Quem está confundindo a cabeça das crianças ao segregarem elas em papeis específicos na sociedade, atropelando as identidades de gêneros e preferências diversas, é a própria noção distorcida do movimento "anti"-Ideologia de Gênero.
Em 2022, durante uma entrevista para a Globo News (Jornal das Dez) (Ref.23), a Ministra Damares Alves - integrante fanática da Cruzada Ideológica - dá como exemplo de Ideologia de Gênero ocorrendo nas escolas supostos casos de educadores dizendo para que as pessoas parem de chamar as meninas de 'princesa'. Isso faz algum sentido? O que uma ideologia mais igualitária busca é acabar com o estereótipo de princesa mais tradicional, ou seja, uma mulher fraca, super dependente do príncipe encantado e excessivamente preocupada em se manter bela. Não existe problema algum em chamar uma menina de princesa, mas essa princesa, ao associarmos sua figura ao gênero típico do sexo feminino (mulher), precisa servir de bom exemplo, de uma mulher forte, livre, corajosa e independente. Aliás, muitos filmes de animação nos últimos anos trazem essas princesas não-estereotipadas, como a princesa Elsa do grande sucesso mundial Frozen (2013), a princesa Merida do filme Brave (2012) e a princesa Moana (2016). Nenhuma dessas princesas deixaram de ser meninas ou mulheres por lutarem contra as injustiças, pelos seus sonhos ou por liberdade. Mas, é isso o que os Cruzados Ideológicos fazem: distorcem.
Infelizmente, a bandeira distorcida da anti-Ideologia de Gênero, além de ser uma forma extremista de ideologia de gênero, acaba gerando desinformações perigosas para o público, cegando este para graves problemas sociais. É a Ciência sendo mais uma vez deixada de lado ou sendo distorcida, é o público mais uma vez sendo alienado, com o único propósito de fortalecer o interesse de grupos específicos.
O mais irônico é que os promotores da bandeira anti-Ideologia de Gênero se baseiam frequentemente nos fatores biológicos de construção de gênero para argumentar que meninos e meninas possuem papeis naturais pré-estabelecidos na sociedade e que, curiosamente, esses papeis correspondem às visões mais tradicionais de ideologias de gênero - e algo que já vimos falacioso -, mas, por outro lado, ignoram os fatores biológicos quando acusam a tal Ideologia de Gênero - "doutrinadores subversivos" - de criar transgêneros e homossexuais.
FACULDADE AMERICANA DE PEDIATRAS
É muito comum em discussões sobre a 'Ideologia de Gênero' o pessoal citar a American College of Pediatricians (Faculdade Americana de Pediatras, ACPeds), um grupo conservador de médicos Norte-Americanos que se desvinculou em 2002 do internacionalmente reconhecido e de nome similar American Academy of Pediactrics (Academia Americana de Pediatria, AAP). O motivo do desvínculo? Esse grupo conservador não concordava com a AAP que casais de indivíduos do mesmo sexo tinham o direito de adotar crianças. Segundo a ACPeds, casais de indivíduos do mesmo sexo (lésbicas, homossexuais, ou bissexuais) trazem sérios danos para o desenvolvimento de uma criança (Ref.40). Porém, as evidências científicas acumuladas nas últimas décadas deixam claro que não existem prejuízos do tipo associados (5). Porém, segundo a ACPeds, todos esses estudos científicos estariam contaminados com o viés político - o argumento genérico usado constantemente pelo grupo. Aliás, vale destacarmos dois valores centrais da ACPeds (dois primeiros), e um dos objetivos, trazidos em sua página (Ref.42):
- "Reconhecer a unidade fundamental da família mãe-pai, dentro do contexto do casamento, como a base ideal para o desenvolvimento e zelo de crianças e comprometer-se para promover essa unidade."
- "Reconhecer os benefícios emocionais e físicos da abstinência sexual até o casamento e comprometer-se a promover esse comportamento como ideal para os adolescentes."
- "Promover a interpretação honesta da pesquisa científica pediátrica, sem prejuízo das atuais persuasões políticas."
No primeiro valor destacado, não existe um esforço na promoção de uma família bem estruturada e responsável, mas, sim, que o importante é ter um pai (macho) e uma mãe (fêmea), como já esperado das atitudes homofóbicas da ACPeds. Atitudes essas, aliás, que ignoram crianças na esperança de serem adotadas e abandonadas por casais heterossexuais 'perfeitos'. Já o segundo valor claramente mostra que essa associação possui uma forte base religiosa, porque não existe evidência científica plausível de que esperar pelo casamento para a prática de relações sexuais é algo 'ideal'. Já o objetivo destacado, considerando o que já foi dito até aqui, revelam que as 'persuasões políticas' são aquelas contrárias às visões políticas e ideológicas da ACPeds. De fato, em 2010, integrantes dessa associação distorceram completamente um estudo para chegarem na conclusão de que os pais deveriam suprimir a orientação sexual dos seus filhos o máximo possível porque até os 25 anos de idade essa 'confusão' desaparecia. Isso gerou uma resposta do autor do estudo, Francis S. Collins, em 15 de abril de 2010, publicada na National Institute of Health (Ref.41), condenando a ACPeds pela distorção.
Bem, independentemente disso, vamos ao assunto deste artigo. A ACPeds é - surpresa! - uma promotora da noção distorcida de 'Ideologia de Gênero', mas com foco crítico na noção de que a identidade de gênero seja determinada por fatores biológicos e quanto aos tratamentos que visam os transgêneros que apresentam disforia de gênero (acentuada não conformação com o sexo biológico). Para a associação, não existem evidências científicas mínimas de que a identidade de gênero seja uma entidade separada do sexo biológico e determinada em significativa importância por fatores biológicos (genética, epigenética e hormonal). Nesse sentido, a instituição afirma que a identidade de gênero é apenas um conceito socialmente e politicamente construído, e que transgêneros não possuem uma assinatura neurobiológica de identificação de gênero e, sim, um problema psicológico, provavelmente devido a traumas na infância associados ou não à exposição de uma mídia ou sociedade mais liberal que fomenta essa 'confusão' nas crianças.
Primeiro, orientações sexuais são biologicamente determinadas, não existindo evidências de que sejam oriundas do construtivismo social (4). Segundo, como já discutido, os transgêneros não 'optam' ou são ensinados a serem transgêneros, isso é algo fortemente definido por fatores biológicos, não existindo evidências de que seja algo possível de emergir via simples manipulação social. Terceiro, meninas ou meninos não deixam de serem meninos ou meninas via simples intervenção educacional. O consenso científico hoje é que o gênero é algo pré-estabelecido por complexos fatores biológicos (genética, hormônios, epigenética) e esculpidos por fatores psicossociais. Além disso, dentro dos gêneros 'menino' e 'menina' existem várias variações com diferentes preferências e formas de ver o mundo. Quarto, casais homossexuais não destroem o conceito de família ao adotarem filhos, e estudos diversos mostram que não existem prejuízos para a criança criada por casais de mesmo sexo (5). A única "destruição" é deixar crianças mofando em abrigos sem família alguma.
- (4) Sugestão de leitura: A Homossexualidade é biológica ou social?
- (5) Sugestão de leitura: Homossexualidade: Criminalização, casamento e filhos
Mas o ponto mais importante é que a Ideologia de Gênero dos quais os Cruzados fazem referência é o fomento às ideologias mais igualitárias, e estas não estão interessadas se um indivíduo é menino ou menina, cisgênero ou transgênero, apenas visam dar iguais oportunidades e liberdades aos meninos e às meninas, aos homens e às mulheres, aos indivíduos transgêneros, cisgêneros ou não-binários. Ideologias de gênero, sejam tradicionais ou igualitárias, focam nos papeis dos gêneros na sociedade. E as ideologias igualitárias querem acabar com a subvalorização de um gênero em detrimento de outro, o que na sociedade atual é o combate ao modelo patriarcal e ao incoerente 'lugar de mulher é na casa, gerando e cuidando de filhos'. Não existe tentativa de 'confundir as crianças'. Isso é uma falácia. Quem está confundindo a cabeça das crianças ao segregarem elas em papeis específicos na sociedade, atropelando as identidades de gêneros e preferências diversas, é a própria noção distorcida do movimento "anti"-Ideologia de Gênero.
Em 2022, durante uma entrevista para a Globo News (Jornal das Dez) (Ref.23), a Ministra Damares Alves - integrante fanática da Cruzada Ideológica - dá como exemplo de Ideologia de Gênero ocorrendo nas escolas supostos casos de educadores dizendo para que as pessoas parem de chamar as meninas de 'princesa'. Isso faz algum sentido? O que uma ideologia mais igualitária busca é acabar com o estereótipo de princesa mais tradicional, ou seja, uma mulher fraca, super dependente do príncipe encantado e excessivamente preocupada em se manter bela. Não existe problema algum em chamar uma menina de princesa, mas essa princesa, ao associarmos sua figura ao gênero típico do sexo feminino (mulher), precisa servir de bom exemplo, de uma mulher forte, livre, corajosa e independente. Aliás, muitos filmes de animação nos últimos anos trazem essas princesas não-estereotipadas, como a princesa Elsa do grande sucesso mundial Frozen (2013), a princesa Merida do filme Brave (2012) e a princesa Moana (2016). Nenhuma dessas princesas deixaram de ser meninas ou mulheres por lutarem contra as injustiças, pelos seus sonhos ou por liberdade. Mas, é isso o que os Cruzados Ideológicos fazem: distorcem.
Infelizmente, a bandeira distorcida da anti-Ideologia de Gênero, além de ser uma forma extremista de ideologia de gênero, acaba gerando desinformações perigosas para o público, cegando este para graves problemas sociais. É a Ciência sendo mais uma vez deixada de lado ou sendo distorcida, é o público mais uma vez sendo alienado, com o único propósito de fortalecer o interesse de grupos específicos.
O mais irônico é que os promotores da bandeira anti-Ideologia de Gênero se baseiam frequentemente nos fatores biológicos de construção de gênero para argumentar que meninos e meninas possuem papeis naturais pré-estabelecidos na sociedade e que, curiosamente, esses papeis correspondem às visões mais tradicionais de ideologias de gênero - e algo que já vimos falacioso -, mas, por outro lado, ignoram os fatores biológicos quando acusam a tal Ideologia de Gênero - "doutrinadores subversivos" - de criar transgêneros e homossexuais.
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FACULDADE AMERICANA DE PEDIATRAS
É muito comum em discussões sobre a 'Ideologia de Gênero' o pessoal citar a American College of Pediatricians (Faculdade Americana de Pediatras, ACPeds), um grupo conservador de médicos Norte-Americanos que se desvinculou em 2002 do internacionalmente reconhecido e de nome similar American Academy of Pediactrics (Academia Americana de Pediatria, AAP). O motivo do desvínculo? Esse grupo conservador não concordava com a AAP que casais de indivíduos do mesmo sexo tinham o direito de adotar crianças. Segundo a ACPeds, casais de indivíduos do mesmo sexo (lésbicas, homossexuais, ou bissexuais) trazem sérios danos para o desenvolvimento de uma criança (Ref.40). Porém, as evidências científicas acumuladas nas últimas décadas deixam claro que não existem prejuízos do tipo associados (5). Porém, segundo a ACPeds, todos esses estudos científicos estariam contaminados com o viés político - o argumento genérico usado constantemente pelo grupo. Aliás, vale destacarmos dois valores centrais da ACPeds (dois primeiros), e um dos objetivos, trazidos em sua página (Ref.42):
- "Reconhecer a unidade fundamental da família mãe-pai, dentro do contexto do casamento, como a base ideal para o desenvolvimento e zelo de crianças e comprometer-se para promover essa unidade."
- "Reconhecer os benefícios emocionais e físicos da abstinência sexual até o casamento e comprometer-se a promover esse comportamento como ideal para os adolescentes."
- "Promover a interpretação honesta da pesquisa científica pediátrica, sem prejuízo das atuais persuasões políticas."
No primeiro valor destacado, não existe um esforço na promoção de uma família bem estruturada e responsável, mas, sim, que o importante é ter um pai (macho) e uma mãe (fêmea), como já esperado das atitudes homofóbicas da ACPeds. Atitudes essas, aliás, que ignoram crianças na esperança de serem adotadas e abandonadas por casais heterossexuais 'perfeitos'. Já o segundo valor claramente mostra que essa associação possui uma forte base religiosa, porque não existe evidência científica plausível de que esperar pelo casamento para a prática de relações sexuais é algo 'ideal'. Já o objetivo destacado, considerando o que já foi dito até aqui, revelam que as 'persuasões políticas' são aquelas contrárias às visões políticas e ideológicas da ACPeds. De fato, em 2010, integrantes dessa associação distorceram completamente um estudo para chegarem na conclusão de que os pais deveriam suprimir a orientação sexual dos seus filhos o máximo possível porque até os 25 anos de idade essa 'confusão' desaparecia. Isso gerou uma resposta do autor do estudo, Francis S. Collins, em 15 de abril de 2010, publicada na National Institute of Health (Ref.41), condenando a ACPeds pela distorção.
Bem, independentemente disso, vamos ao assunto deste artigo. A ACPeds é - surpresa! - uma promotora da noção distorcida de 'Ideologia de Gênero', mas com foco crítico na noção de que a identidade de gênero seja determinada por fatores biológicos e quanto aos tratamentos que visam os transgêneros que apresentam disforia de gênero (acentuada não conformação com o sexo biológico). Para a associação, não existem evidências científicas mínimas de que a identidade de gênero seja uma entidade separada do sexo biológico e determinada em significativa importância por fatores biológicos (genética, epigenética e hormonal). Nesse sentido, a instituição afirma que a identidade de gênero é apenas um conceito socialmente e politicamente construído, e que transgêneros não possuem uma assinatura neurobiológica de identificação de gênero e, sim, um problema psicológico, provavelmente devido a traumas na infância associados ou não à exposição de uma mídia ou sociedade mais liberal que fomenta essa 'confusão' nas crianças.
Aliás, a ACPeds traz argumento similar para a homossexualidade, mesmo com o esmagador suporte científico para o contrário nesse último caso (4).
Porém, a ACPeds não explica como 'exposição social/midiática' resulta em uma significativa população LGBT+ na China, Rússia, Arábia Saudita e em outros países e culturas extremamente conservadores (Ref.44). Obviamente, a instituição ignora quaisquer hipóteses contrárias à sua política, não importando se existem notáveis evidências científicas conflitantes com a narrativa promovida. A APCeds também afirma que todo transgênero sofre de disforia, algo, obviamente, não verídico.
Continuando nessa linha de pensamento, a APCeds martela com base em alguns estudos que 80-95% das crianças na fase pré-puberdade que possuem disforia de gênero 'resolvem' essa condição no final da adolescência caso não sejam expostas a intervenções gênero-afirmativas e médicas. Esses estudos, antigos e limitados, já foram fortemente contestados (Ref.45-46), com sérias falhas metodológicas sendo apontadas, e onde grande parte das crianças analisadas provavelmente não eram transgêneras e, sim, cisgêneros com diferentes graus de masculinização ou feminização (espectro de gêneros). E mesmo esses estudos controversos e de baixa qualidade sugerindo uma grande faixa de possíveis porcentagens de 'desistentes', a APCeds utiliza os valores estimados mais extremos para fazer afirmações, não sugestões (mais uma vez, distorcendo a ciência). O que realmente já foi mostrado é que crianças com disforia de gênero podem continuar transgêneras mas aceitando melhor o corpo com o sexo oposto aos seus gêneros durante a puberdade. Outro fenômeno é o indivíduo antes com disforia de gênero se identificar com um gênero-diverso, como neutro ou queer. Alguns reportes, no entanto, sugerem que algumas crianças transgêneras podem não mais se identificar como transgêneras durante a adolescência, o que é longe de uma regra. E é por isso que a principal intervenção médica em crianças com disforia de gênero só é feita após a puberdade (14-16 anos) e primeiro com o agonista GnRH (supressor de puberdade), e apenas se a disforia persistir e começar a se agravar. Essa metodologia pode dar tempo para o adolescente e os profissionais de saúde melhor compreenderem o problema.
A AAP, ao contrário da APCeds, encoraja que durante a infância, crianças transgêneras recebam o suporte e respeito da família e de educadores, via ações gênero-afirmativas, mas não medicamentosa (não, ninguém orienta tratamentos hormonais ou cirurgias de mudança de sexo para crianças, como muitos tendem a propagar), e o mesmo valendo para orientações sexuais (Ref.51-52). Como os indivíduos transgêneros estão sob um alto risco de depressão e suicídio, devido principalmente ao preconceito, as ações gênero-afirmativas desde a infância tendem a amenizar esses riscos. Apenas em casos de grande disforia (transexualidade) é que os indivíduos podem necessitar de tratamentos hormonais (terapia hormonal gênero-afirmativa) e cirurgias de mudança de sexo na pós-puberdade.
De fato, em algo a APCeds está certa: existe bastante controvérsia em como tratar os indivíduos transgêneros com disforia de gênero após o início da puberdade. Tratamentos hormonais carregam riscos e nem sempre resultam em grande melhora do paciente. Quando aplicar supressores de puberdade? Quando iniciar um tratamento hormonal (testosterona ou estrógenos)? Quando cirurgia é realmente necessária? Além disso, é incerto quando a maior parte dos indivíduos transgêneros se identificam como tal na infância-adolescência, algo que pode ser um importante fator a ser considerado. E, por fim, quais seriam as melhores medidas a serem adotadas para melhor se lidar com as crianças com disforia de gênero? Estudos clínicos estão ainda em andamento para uma maior quantidade de dados empíricos adereçando essa problemática. Porém, a APCeds usa essas incertezas para atacar quaisquer intervenções que não se alinhem à sua visão do que é melhor para as crianças e adolescentes transgêneros.
Porém, a ACPeds não explica como 'exposição social/midiática' resulta em uma significativa população LGBT+ na China, Rússia, Arábia Saudita e em outros países e culturas extremamente conservadores (Ref.44). Obviamente, a instituição ignora quaisquer hipóteses contrárias à sua política, não importando se existem notáveis evidências científicas conflitantes com a narrativa promovida. A APCeds também afirma que todo transgênero sofre de disforia, algo, obviamente, não verídico.
Continuando nessa linha de pensamento, a APCeds martela com base em alguns estudos que 80-95% das crianças na fase pré-puberdade que possuem disforia de gênero 'resolvem' essa condição no final da adolescência caso não sejam expostas a intervenções gênero-afirmativas e médicas. Esses estudos, antigos e limitados, já foram fortemente contestados (Ref.45-46), com sérias falhas metodológicas sendo apontadas, e onde grande parte das crianças analisadas provavelmente não eram transgêneras e, sim, cisgêneros com diferentes graus de masculinização ou feminização (espectro de gêneros). E mesmo esses estudos controversos e de baixa qualidade sugerindo uma grande faixa de possíveis porcentagens de 'desistentes', a APCeds utiliza os valores estimados mais extremos para fazer afirmações, não sugestões (mais uma vez, distorcendo a ciência). O que realmente já foi mostrado é que crianças com disforia de gênero podem continuar transgêneras mas aceitando melhor o corpo com o sexo oposto aos seus gêneros durante a puberdade. Outro fenômeno é o indivíduo antes com disforia de gênero se identificar com um gênero-diverso, como neutro ou queer. Alguns reportes, no entanto, sugerem que algumas crianças transgêneras podem não mais se identificar como transgêneras durante a adolescência, o que é longe de uma regra. E é por isso que a principal intervenção médica em crianças com disforia de gênero só é feita após a puberdade (14-16 anos) e primeiro com o agonista GnRH (supressor de puberdade), e apenas se a disforia persistir e começar a se agravar. Essa metodologia pode dar tempo para o adolescente e os profissionais de saúde melhor compreenderem o problema.
A AAP, ao contrário da APCeds, encoraja que durante a infância, crianças transgêneras recebam o suporte e respeito da família e de educadores, via ações gênero-afirmativas, mas não medicamentosa (não, ninguém orienta tratamentos hormonais ou cirurgias de mudança de sexo para crianças, como muitos tendem a propagar), e o mesmo valendo para orientações sexuais (Ref.51-52). Como os indivíduos transgêneros estão sob um alto risco de depressão e suicídio, devido principalmente ao preconceito, as ações gênero-afirmativas desde a infância tendem a amenizar esses riscos. Apenas em casos de grande disforia (transexualidade) é que os indivíduos podem necessitar de tratamentos hormonais (terapia hormonal gênero-afirmativa) e cirurgias de mudança de sexo na pós-puberdade.
De fato, em algo a APCeds está certa: existe bastante controvérsia em como tratar os indivíduos transgêneros com disforia de gênero após o início da puberdade. Tratamentos hormonais carregam riscos e nem sempre resultam em grande melhora do paciente. Quando aplicar supressores de puberdade? Quando iniciar um tratamento hormonal (testosterona ou estrógenos)? Quando cirurgia é realmente necessária? Além disso, é incerto quando a maior parte dos indivíduos transgêneros se identificam como tal na infância-adolescência, algo que pode ser um importante fator a ser considerado. E, por fim, quais seriam as melhores medidas a serem adotadas para melhor se lidar com as crianças com disforia de gênero? Estudos clínicos estão ainda em andamento para uma maior quantidade de dados empíricos adereçando essa problemática. Porém, a APCeds usa essas incertezas para atacar quaisquer intervenções que não se alinhem à sua visão do que é melhor para as crianças e adolescentes transgêneros.
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> Existe ainda debate sobre tratamentos que visam atrasar ou suprimir a puberdade em jovens transgêneros. Alguns autores têm sugerido que os anos entre a infância e meados da adolescência representam um período importante no qual fatores relacionados às mudanças pubertárias influenciam várias características fisiológicas e neurais, como o desenvolvimento da matéria branca e padrões de conectividade funcional, incluindo em caminhos associados com o sexo e a identidade de gênero. É incerto, portanto, se seria ideal esperar o fim da adolescência para iniciar esse tipo de intervenção hormonal (ex.: uso de análogos do GnRH). Ref.107-108
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Mas nessa história toda, estamos novamente nos desviando da questão central. A transgeneridade afeta uma parcela muito pequena da população e indivíduos com disforia de gênero são ainda menos comuns. O que essa questão tem a ver com a promoção de ideologias mais igualitárias de gênero, as quais visam os papéis de gênero, não a identidade, comportamento ou expressão de gênero?
De novo, os indivíduos da Cruzada Ideológica usam o criticismo da APCeds em relação aos estudos biológicos de gênero e tratamento de crianças com disforia de gênero para sustentarem um suposto movimento tentando transformar meninos em meninas e vice-versa, heterossexuais em homossexuais, e por aí vai. Como já reforçado inúmeras vezes neste artigo, não importa o gênero de uma pessoa, os movimentos de promoção das ideologias igualitárias querem o fim do preconceito e segregação dos gêneros em relação aos seus papéis na sociedade, independentemente se a pessoa é transgênera, gênero-diversa ou cisgênera, homem ou mulher, ou independentemente das causas para essas determinações.
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CONCLUSÃO
Ideologias de gênero referem-se a diferentes visões sobre os papeis e valores de homens e de mulheres na sociedade. Gênero (expressão e identidade) é uma complexa construção biológica e psicossocial que define como o indivíduo vê a si mesmo, expressa-se e interage com o mundo ao seu redor. Identidade de gênero é uma manifestação neurobiológica de autoidentificação com um gênero. Biologia endógena e exposição a andrógenos pré-natais têm sido estabelecidos como fatores primários determinando a identidade de gênero. Não existe evidência suportando uma 'teoria exógena' para como a identidade de gênero se desenvolve. Expressão de gênero depende de fatores sócio-culturais e biológicos. Já a bandeira política acusando a suposta ameaça de um movimento de "Ideologia de Gênero" é uma falácia que aborda erroneamente temas diversos que englobam sexualidade, gênero, ideologias de gênero e família.
A construção dessa falsa Ideologia de Gênero e a defesa de que as visões mais tradicionalistas dos papeis de gênero na sociedade são as corretas e 'naturais', representam um grave retrocesso político instaurado no Brasil que coloca em risco vários avanços sociais no campo da afirmação dos direitos das mulheres, das políticas de planejamento familiar, da saúde pública e da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais/transgêneros (LGBT) obtidos nas últimas décadas.
Não incentivar a discussão de gênero e sexualidade na escola contribui para a persistência das desigualdades e discriminações sociais, fomentando violências e prejuízos de todos os tipos no espaço escolar ou em outros ambientes sociais. O debate sobre gênero e sexualidade na escola pode diminuir a subvalorização da mulher e a misoginia, conduzir à promoção da igualdade de oportunidades e de liberdades para os gêneros, e da diversidade sexual, por meio do aprendizado do convívio com diferenças socioculturais. Assim, evitam-se situações de sofrimento, adoecimento e abandono escolar, elevando o potencial de desenvolvimento saudável das crianças e adolescentes.
Discutir sobre sexualidade NÃO promove homossexualidade ou outras mudanças na orientação sexual. Discutir sobre os papeis dos gêneros na sociedade e sobre o conceito de gênero NÃO promove confusão na cabeça das crianças e adolescentes, ou - mais absurdo ainda - transgeneridade. Ignorar que diferentes variações de identidade de gênero existem e martelar que meninas e meninos só podem fazer determinadas coisas, SIM, promove danos às crianças e adolescentes e às famílias.
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