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Morcegos possuem predadores naturais?

Figura 1. Um Gavião-papa-gafanhoto (Buteo swainsoni) caçando um morcego da espécie Tadarida brasiliensis

           Morcegos são mamíferos voadores da ordem Chiroptera e representam ~20% de todas as espécies de  mamíferos conhecidas, além de exibirem um grau de diversidade ecológica maior do que qualquer outra ordem mamífera. Morcegos podem ser hematófagos (se alimentando de sangue), frutívoros (1), insetívoros e até mesmo atuarem como importantes polinizadores em espécies que se alimentam de néctar. Em especial, podemos citar que muitos morcegos coevoluíram com espécies de mariposas em uma corrida armamentista clássica entre predador e presa (2). Porém, enquanto é comum pensarmos em morcegos como temidos predadores de insetos noturnos, raramente vemos esses animais sendo retratados como presas. De fato, existem poucos predadores que se especializaram em morcegos, e vários dos mais perigosos predadores encarados por morcegos não são ativos à noite. Isso inclusive levanta a interessante questão: morcegos compreendem um grupo único de vertebrados que não sofrem significativa pressão de predação?

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Leitura recomendada:


           Independentemente do grau de predação sofrido por diferentes grupos de morcegos, vários animais carnívoros ou onívoros têm sido flagrados caçando e consumindo morcegos, incluindo aves, répteis (Fig.2-3), anfíbios, peixes, centopeias (3) aranhas (Fig.4-5) e vários mamíferos, como guaxinins e gatos (Ref.1-2). Aves são os potenciais predadores mais temidos pelos morcegos, em especial aves de rapina (4), e existe uma espécie especializada na caça desses mamíferos voadores: gavião-morcegueiro (Macheiramphus alcinus), cuja dieta é composta principalmente de morcegos (Fig.6A). O falcão da espécie Falco rufigularis - popularmente conhecido aqui no Brasil como Cauré - parece também possuir parcial especialização em morcegos, mas são mais prováveis de se alimentar de aves e insetos (Fig.6B). Um número de corujas (Strigiformes) também parecem consumir regularmente ou ocasionalmente morcegos, como as espécies Tyto alba (coruja-das-torres) e Strix aluco (Ref.3-4). A espécie S. aluco (coruja-do-mato) é reportada de causar significativo impacto nas taxas de mortalidade em colônias de morcegos (Ref.5). Existe também evidência observacional de que morcegos nos trópicos parecem evitar exposição à luz lunar, talvez uma resposta evolutiva contra predadores noturnos (Ref.6).


Figura 2. Morcego da espécie Myotis myotis sendo engolido por uma cobra da espécie Zamenis longissimus, na Caverna de Orlova Chuka, Bulgária. Entre os répteis, apenas cobras são conhecidas de frequentemente se alimentarem de morcegos e, mesmo dentro desse grupo, quiropterofagia é aparentemente rara, com a maior parte dos registros ocorrendo nas regiões tropicais. Ref.8


Figura 3. Cobra Amazônica da espécie Corallus hortulanus predando um morcego, na entrada de uma caverna no município de Parauapebas, Pará. Em (A), a cobra (seta) se prepara para o ataque sobre um fluxo de morcegos saindo da caverna; em (B), captura e constrição de um morcego; e, em (C), início da ingestão do morcego capturado pela cobra. No Brasil, predação de morcegos parece ocorrer principalmente por cobras e aves, principalmente nos locais de abrigo desses mamíferos ou arredores. Ref.9


Figura 4. Uma tarântula do gênero Lasiodora se alimentando de um morcego (Pteronotus personatus) no chão da Caverna Urubu, em Sergipe, Brasil. Importante apontar que ~90% dos raros casos de predação de morcegos por aranhas reportados na literatura acadêmica envolvem espécies que produzem teia: tipicamente e ocasionalmente morcegos são capturados por teias durante o voo. Grandes aranhas tropicais dos gêneros Nephila e Eriophora têm sido particularmente envolvidas nessas capturas, com suas enormes teias de até 1,5 metro de diâmetro. Ref.10-11


Figura 5. Morcego do gênero Pipistrellus capturado por uma teia e sendo predado pela aranha da espécie Nephila pilipes. Na foto, o morcego aparece sem a cabeça, devorada pela aranha. O evento ocorreu na região de Kerala, Índia. Ref.12


Figura 6. À esquerda, um Cauré (Falco rufigularis), uma ave de rapina muito comum no Brasil. À direita, um gavião-morcegueiro (Macheiramphus alcinus), encontrado em regiões da África Subsaariana e no Sul Asiático até a Nova Guiné. Ambas as espécies comumente caçam morcegos. Ref.13-14


Figura 7. O falcão da espécie Falco amurensis parece também impor significativa pressão predatória sobre morcegos da espécie Vespertilio sinensis. Em (A), mãe e filhote de morcegos V. sinensis; em (B), um falcão F. amurensis devorando um morcego V. sinensis após captura. Ref.15

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Leitura recomendada:


> Para mais fotos de morcegos sendo predados por aranhas ou capturados por teias, acesse aqui.

> A falsa viúva-negra (teatoda nobilis) também já foi observada predando morcegos, entre outros vertebrados. Para mais informações: Registrado pela primeira vez uma falsa viúva-negra predando um musaranho 

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          No geral, a maior parte da predação sobre morcegos parece ser oportunística. Por exemplo, várias espécies de morcegos usam cavernas como abrigos e algumas dessas cavernas são habitadas por alta concentração desses animais; isso pode atrair vários potenciais predadores que se aventuram nesses ambientes, em especial aves. Um estudo de 2016 encontrou evidência para predação de pelo menos 174 espécies de morcegos por 143 espécies de aves de rapina (Accipitriformes: 107; e Falconiformes: 36) e por 94 aves não-raptoras (distribuídas em 28 famílias) diurnas (Ref.16). Os autores do estudo argumentaram que predação por aves diurnas provavelmente contribuiu de forma importante para a evolução de hábitos noturnos nos morcegos. 

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          Nesse último ponto, observações de predação sobre morcegos são mais comuns e exploradas durante o período ainda diurno, quando grandes enxames de morcegos saem de cavernas e outros abrigos pouco antes de anoitecer. Frequentemente os predadores envolvem aves de rapina, em especial falcões e gaviões, e corujas. O mais conhecido exemplo envolve morcegos da espécie Tadarida brasiliensis, no sul do Texas, EUA, que emergem em densos aglomerados antes do pôr-do-sol, a partir de grandes colônias em cavernas. Aves como falcões-peregrinos (Falco peregrinus) e gaviões-de-cauda-vermelha (Buteo jamaicensis) lançam ataques diretamente nas densas torrentes de morcegos, com taxas de sucesso de até 50%. O Corujão-orelhudo (Bubo virginianus) podem também caçar efetivamente morcegos nesse contexto, e, presumivelmente, estender a caça ao longo do período noturno. Em zonas temperadas, a taxa de predação sobre morcegos durante o período diurno parece ser 100-1000 maior do que taxas noturnas (Ref.7).

          Mas como essas aves predadoras conseguem alcançar taxas de sucesso tão altas nas caças de morcegos, em pleno ar e em meio ao intenso "tumulto aéreo"?

           Em um estudo publicado em 2022 no periódico Nature (Ref.17), pesquisadores analisaram gaviões da espécie Buteo swainsoni e outras aves de rapina caçando morcegos da espécie T. brasiliensis - associados a uma colônia de 700 mil a 900 mil indivíduos - à medida que esses últimos diariamente emergiam em densos e grandes fluxos, saindo de uma caverna onde se abrigavam para se alimentar. É comumente pensado que um grande número de animais agrupados (peixes, aves, morcegos, etc.) fornece proteção contra predadores devido em parte ao "efeito de confusão": a ideia que um grande número de potenciais presas (alvos) irá confundir os predadores, tornando mais difícil focar em um único alvo para efetiva captura. Porém, no estudo, os pesquisadores mostraram que essas aves, ao invés de focar em alvos individuais, miram em pontos fixos dentro dos aglomerados de morcegos, evitando assim efeitos de confusão durante a caçada (Fig.8).


Figura 8. Imagem composta mostrando o movimento de um gavião e do morcego que ele captura no meio do aglomerado de morcegos, como visto de uma câmera de vídeo fixada. As trajetórias do gavião (pontos azuis) e do morcego eventualmente capturado (pontos pretos) são registradas em intervalos de 0,02 segundos e são mostradas conectada pela instantânea linha de visão do gavião até o morcego (linhas brancas). A mancha vermelha mostra o ponto exato de captura. Observe que o gavião voa direto no sentido de um ponto fixo, sem inicialmente mirar ou perseguir sua futura presa. Um morcego que está em rota de colisão com um observador em movimento [gavião] irá parecer estacionário contra o movimento residual do enxame de morcegos, facilitando sua captura no encontro aleatório. Ref.17

            

            Por outro lado, o estudo também encontrou que morcegos dentro do "turbilhão" [coluna de indivíduos coesos] estão mais protegidos do que aqueles em voo isolado [significativamente afastados do agrupamento]. Isso corrobora um estudo prévio publicado no periódico Behavioral Ecology (Ref.18) mostrando que ~10% dos ataques de gaviões contra aglomerados de morcegos T. brasiliensis - e ~5% das capturas efetivas - ocorriam contra indivíduos isolados do agrupamento, mesmo esses respondendo por apenas ~0,2% do total de morcegos em voo. 

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Curiosidade: Morcegos sofrem intenso parasitismo de estranhas moscas que não possuem asas. Fica a sugestão de leitura: Existem moscas sem asas?

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REFERÊNCIAS

  1. Ludmilla et al. (2020). First Record of Natural Predation on Bats by Domestic Cat in Brazil. Oecologia Australis, Vol. 24, No. 1. https://doi.org/10.4257/oeco.2020.2401.24
  2. Shaw et al. (2020). Investigating cat predation as the cause of bat wing tears using forensic DNA analysis. Ecology and Evolution, Volume 10, Issue 15, p. 8368-8378. https://doi.org/10.1002/ece3.6544
  3. Kelm et al. (2023). Continuous low-intensity predation by owls (Strix aluco) on bats (Nyctalus lasiopterus) in Spain and the potential effect on bat colony stability. Royal Society Open Science, Volume 10Issue 8. https://doi.org/10.1098/rsos.230309
  4. Khalafalla & Iudica (2012). Barn Owl (Tyto alba) Predation on Big Brown Bats (Eptesicus fuscus) in Pennsylvania. The Canadian Field-Naturalist, Vol. 126, No. 1. https://doi.org/10.22621/cfn.v126i1.1294
  5. https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/11250000802589535
  6. https://www.intechopen.com/chapters/60360
  7. Lima & O’Keefe (2013). "Do predators influence the behaviour of bats?" Biological Reviews, 88(3), 626–644. https://doi.org/10.1111/brv.12021
  8. Barti et al. (2019). Snake predation on bats in Europe: new cases and a regional assessment. Mammalia, vol. 83, no. 6, 2019, pp. 581-585. https://doi.org/10.1515/mammalia-2018-0079
  9. Barbier et al. (2023). Predation of a mustached bat, Pteronotus sp. (Mormoopidae), by an Amazon tree boa, Corallus hortulanus (Boidae), in the Brazilian Amazon. Acta Amazonica, 53(4). https://doi.org/10.1590/1809-4392202300150
  10. Nyffeler M, Knörnschild M (2013) Bat Predation by Spiders. PLoS ONE 8(3): e58120. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0058120
  11. Dias et al. (2015). Predation of the bat Pteronotus personatus (Mormoopidae),  by a tarantula Lasiodora sp. (Theraphosidae, Araneae), in cave in northeastern Brazil. Biotemas, 28 (4): 173-175. http://dx.doi.org/10.5007/2175-7925.2015v28n4p173
  12. https://www.currentscience.ac.in/Volumes/109/07/1245.pdf
  13. https://link.springer.com/article/10.1007/s11756-022-01134-3
  14. https://avibase.bsc-eoc.org/species.jsp
  15. Mikula et al. (2016). Bats as prey of diurnal birds: a global perspective. Mammal Review, Volume 46, Issue 3, p. 160-174. https://doi.org/10.1111/mam.12060
  16. Brighton et al. (2022). Raptors avoid the confusion effect by targeting fixed points in dense aerial prey aggregations. Nature Communication 13, 4778. https://doi.org/10.1038/s41467-022-32354-5
  17. Brighton et al. (2021). Aerial attack strategies of hawks hunting bats, and the adaptive benefits of swarming, Behavioral Ecology, Volume 32, Issue 3, May/June 2021, Pages 464–476, https://doi.org/10.1093/beheco/araa145