Secretários são aves de rapina?
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Figura 1. Na foto, espécie Sagittarius serpentarius, popularmente conhecida como "Secretário". |
Aves de rapina são todas as espécies dentro de ordens que evoluíram de uma linhagem raptorial no clado Telluraves e na qual a maioria das espécies mantiveram o estilo de vida raptorial (adaptado para a captura de presas vertebradas) como derivado do ancestral comum (Ref.1). Com base nessa definição, aves de rapina incluem as espécies das ordens Accipitriformes, Cathartiformes, Strigiformes, Cariamiformes e Falconiformes (Fig.2). Essas ordens compartilham várias similaridades ecológicas e morfológicas, mas apenas essas similaridades não definem a classificação como "ave de rapina" - relações filogenéticas também são importantes. Nesse sentido, desde águias e falcões até corujas e abutres são consideradas aves de rapina. Inclusive as Seriemas - aves da família Cariamidae e únicos representantes da ordem Cariamiformes - são consideradas aves de rapina.
Aves de rapina geralmente ocupam maiores níveis tróficos, possuem maiores porte corporal e alcance territorial, e maior longevidade do que outras aves terrestres. Essas características tornam as aves de rapina mais vulneráveis a ameaças comuns no ambiente, como destruição de habitat, acúmulo de contaminantes (1), caça por humanos e eletrocução. Relevante mencionar que certas características fenotípicas historicamente associadas de forma exclusiva às aves de rapina são compartilhadas por várias outras aves, como visão aguçada, garras poderosas e afiadas ("para agarrar presas"), e parte superior do bico curvada [forma de gancho] e mais longa do que a parte inferior do bico ("para rasgar carne"), e não são suficientes para exclusão ou inclusão classificatória.
(1) Leitura recomendada: Envenenamento por chumbo de projéteis disparados por caçadores está matando as aves de rapina na Europa, alerta estudo
O Secretário (Sagittarius serpentarius) é uma ave de grande porte (~4 kg e ~69 cm de altura) com parentesco distante associado aos abutres e falcões, mas que ao contrário dessas aves de rapina passam a maior parte do tempo se locomovendo no chão com suas longas pernas - apesar de possuir boa habilidade de voo. Nativas da África, o secretário habita o sul do Deserto do Saara, de Senegal até a Somália e sul em relação à África do Sul. Preferem ambientes de planícies e savanas coberto com gramíneas curtas e árvores espalhadas que facilitam o trabalho terrestre de caça. Aliás, essa ave consegue cobrir no chão mais de 32 km diariamente durante a atividade de caça. De hábito diurno, caçam geralmente em pares isolados ou pequenos grupos familiares, e são especialistas em caçar cobras diversas, inclusive peçonhentas (!). Aproveitam também queimadas, buscando vítimas que não conseguiram escapar das chamas.
Apesar de ligarmos tradicionalmente aves de rapina a aves que "dominam os céus", o secretário, pertencente à ordem Accipitriformes, é também uma ave de rapina. Aliás, o secretário, seriemas e o caracará (Caracara plancus) (Fig.4) são as únicas aves de rapina conhecidas com hábitos terrestres de caça. À noite, porém, os secretários voam para o alto de árvores, para dormir e também para construir ninhos (estes os quais são grandes, com mais de 2 metros de extensão).
Quando atacam uma presa durante as caçadas no chão, os secretários abrem ambas as asas - como estratégia de distração (confusão visual e também oferecendo uma área de contra-ataque relativamente segura, cheia de longas penas) - e levantam a crista de penas atrás da cabeça (Fig.3).
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(!) Os secretários, como outras aves, não possuem imunidade contra potentes neurotoxinas de cobras e dependem de estratégias comportamentais e anatômicas para se protegerem das letais picadas. Essas aves atacam agressivamente as cobras, direcionando poderosos, acurados e rápidos "chutes" na cabeça e no pescoço. Além das penas das asas como distração, a perna das aves em geral é constituída majoritariamente de tendões e possui ausência de tecidos altamente vascularizados (ex.: musculatura esquelética), o que pode limitar a disseminação do veneno em caso de mordidas.
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Figura 6. Adaptações no secretário que ajudam a prevenir envenenamento por cobras peçonhentas durante eventos de predação. Ref.5 |
CURIOSIDADE: Machos e fêmeas de secretários formam casais únicos para o resto da vida (monogâmicos), não exibem dismorfismo sexual (são quase idênticos entre si em aparência externa) e ambos os membros de cada casal compartilham a tarefa de chocar os ovos - estes os quais eclodem depois de 45 dias.
> Secretários e alguns outros grupos de aves (ex.: calais, avestruzes e seriemas) possuem uma estrutura ao redor dos olhos similar aos cílios de mamíferos (Fig.7). Porém, ao invés de pelos, esses "cílios" aviários são constituídos de penas modificadas. É provável que esses "cílios" protegem os olhos dos secretários contra o excesso de radiação solar e outros agentes externos.
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Figura 7. "Cílios" em um secretário, formado por penas modificadas. Ref.8 |
Leitura recomendada:
> Nas últimas três décadas houve significativo declínio populacional dessas aves, resultando na sua classificação Vulnerável na lista da IUCN de animais ameaçados em termos de conservação. Perda de habitat devido às atividades humanas é a maior ameaça, exponenciada pela relativa lenta taxa de reprodução da espécie.
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REFERÊNCIAS
- McClure et al. (2019). Commentary: Defining Raptors and Birds of Prey. Journal of Raptor Research, 53(4):419-430. https://doi.org/10.3356/0892-1016-53.4.419
- https://animals.sandiegozoo.org/animals/secretary-bird
- https://www.paigntonzoo.org.uk/animals-az/secretary-bird/
- http://www.portal.zoo.bio.br/media385
- Thiel et al. (2022). Convergent evolution of toxin resistance in animals. Volume 97, Issue 5, Pages 1823-1843. https://doi.org/10.1111/brv.12865
- Whitecross et al. (2019). Dispersal dynamics of juvenile Secretarybirds Sagittarius serpentarius in southern Africa. Ostrich, 90(2), 97–110. https://doi.org/10.2989/00306525.2019.1581295
- Portugal et al. (2016). The fast and forceful kicking strike of the secretary bird. Current Biology, Volume 26, Issue 2, PR58-R59. https://doi.org/10.1016/j.cub.2015.12.004
- https://www.allaboutbirds.org/news/do-birds-have-eyelashes/