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Afinal, o novo coronavírus foi criado em um laboratório da China?


- Atualizado no dia 22 de março de 2023 -

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          Em maio de 2020, o jornal Norte-Americano The Washington Post (Ref.1) publicou reportes governamentais de 2018 relativos ao alerta de oficiais da Embaixada dos EUA à Washington sobre os riscos de segurança encontrados em um avançado laboratório de grande porte em Wuhan, China, epicentro inicial da atual pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2). Em janeiro de 2018, a embaixada Norte-Americana em Beijing repetidamente enviou especialistas diplomáticos para o Instituto de Virologia de Wuhan (WIV), o qual em 2015 tinha se tornado o primeiro laboratório na China a alcançar o mais alto nível de biossegurança internacional (BSL-4). A última dessas visitas ocorreu em 27 março de 2018. Aparentemente, os especialistas ficaram bastante preocupados com o que observaram, enviando relatórios de alerta de volta à Washington. Segundo os relatórios, o laboratório trabalhava com coronavírus de morcegos capturados de cavernas - com o potencial de transmissão para humanos e representando um risco para pandemias do tipo SARS - e que várias falhas de segurança e administrativas foram encontradas nas instalações, além de capacitação inapropriada de muitos funcionários.

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          Os especialistas da embaixada requisitaram ajuda do governo Norte-Americano, argumentando que as pesquisas desenvolvidas no laboratório, apesar de serem importantes, também eram muito perigosas. Um dos estudos realizados no local, publicado em 2017 no periódico PLOS Pathogens (Ref.2), tinha revelado uma grande quantidade de coronavírus evolutivamente próximo-relacionados ao SARS-CoV que tinham sido detectados em morcegos do gênero Rhinolophus coletados em diferentes áreas da China entre 2011 e 2015, com os autores alertando para o alto risco de epidemias futuras de doenças similares ao SARS, especialmente porque os vírus analisados mostraram interagir com o receptor celular humano ACE2. Aliás, os cientistas Chineses em WIV têm trabalhado em conjunto com o Laboratório Nacional Galveston, da Universidade do Texas, e com outras organizações Norte-Americanas, e também já tinham requisitado maior suporte dos EUA. Mesmo assim, a administração Trump ignorou o chamado e os alertas.

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> Site da instituição (WIV): http://english.whiov.cas.cn/
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           Além do WIV, preocupações também recaíram sobre o laboratório do Centro Chinês para Controle e Prevenção de Doenças em Wuhan. Dois cientistas Chineses chegaram inclusive a publicar no começo do ano passado um artigo no ReserarchGate - agora deletado por falta de evidências e limitações metodológicas - sugerindo que o novo coronavírus poderia ter sido originado de um acidente no CCDC, devido a falhas de segurança e operações de alto risco (Ref.3).

          Somando-se a isso, o governo Chinês têm dificultado investigações internacionais sobre a origem do SARS-CoV-2. Por fim, evidências de estudos nos últimos meses também sugerem que os primeiros casos de infecção não emergiram no mercado de animais vivos de Huanam, local suspeito de representar a primeira transmissão zoonótica do vírus em Wuhan.

           Mas essas evidências dão suporte para uma origem artificial do SARS-CoV-2 (engenharia genética)? Corroboram um acidente laboratorial? Qual a natureza do novo coronavírus e como ele foi primeiro transmitido para os humanos? Quando e onde foi detectado o primeiro caso de COVDI-19? (Conclusão no final deste artigo)


   NATUREZA E EVOLUÇÃO

          O vírus responsável pela atual pandemia foi identificado pelos cientistas -  via sequenciamento do seu RNA viral - como um novo coronavírus e primeiro chamado de '2019-nCoV' pela OMS.  Posteriormente, no dia 11 de fevereiro de 2020, o vírus recebeu o nome definitivo de SARS-CoV-2 pelo Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus, devido à sua semelhança genética com o coronavírus responsável pela síndrome respiratória severa aguda (SARS), chamado SARS-CoV (Ref.4). Processos evolutivos de deriva genética e de seleção natural culminaram eventualmente na emergência de várias variantes de preocupação e de interesse do SARS-CoV-2, as quais mais recentemente ganharam nomes baseados nas letras Gregas (!). 

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(!) Leitura recomendada: OMS muda o sistema de nomenclatura das variantes de preocupação do novo coronavírus

         A família Coronavirinae consiste de quatro gêneros baseados em suas propriedades genéticas, incluindo o gênero Alphacoronavirus, BetacoronaviusGammacoronavirus, e o Deltacoronarirus. O genoma de RNA do coronavírus (variando de 26000 a 32000 bp de comprimento) é o maior entre os vírus de RNA. Os coronavírus podem infectar mamíferos, aves e répteis, incluindo humanos, porcos, gado, cavalos, camelos, gatos, cães, roedores, pássaros, coelhos, furões, martas, cobras, e várias espécies selvagens, com capacidade de rápida mutação e recombinação. Esses vírus são conhecidos de causarem infecções respiratórias ou intestinais em humanos e em outros animais. Muitas infecções por coronavírus (ex.: HCoV-229E e HCoV-OC43)  são subclínicas, causando, por exemplo, os tão comuns resfriados (I).  

(!) Leitura recomendada: Qual a relação entre gripe, resfriado e frio?

          Raramente, coronavírus infectando animais não-humanos evoluem e passam a ser capazes de infectar humanos. A severa síndrome respiratória aguda por coronavírus (SARS) causada pelo SARS-CoV-1 e a síndrome respiratória por coronavírus do Oriente Médio (MERS) pelo MERS-CoV são dois exemplos bem conhecidos desse tipo de evolução, com ambos os agentes virais pertencendo ao gênero Betacoronavirus e representando patógenos que podem causar severas doenças respiratórias em humanos. Ambos os vírus tiveram ancestrais oriundos de morcegos e hospedeiros intermediários do MERS-CoV foram dromedários, como camelos, e do SARS-CoV-1, civetas. A epidemia de SARS em 2002-2003 causou 8 mil casos documentados, 10% deles com consequências letais. Como a transmissão ocorria primariamente após a manifestação dos sintomas, medidas drásticas de saúde pública, incluindo restrição de viagem e isolamento de pacientes infectados, efetivamente contiveram a disseminação internacional. No caso da MERS, desde 2012, ocorreram mais de 2,5 mil casos, associados com lesões pulmonares e manifestações clínicas severas (taxa de fatalidade de 36%).





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Leitura recomendada: Imagens inéditas mostram novo coronavírus atacando células do corpo humano
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          Mostrando alta homologia com o SARS-CoV-1 (e 79% de identidade genética), o SARS-CoV-2 possui um material genético caracterizado por uma molécula única positiva de RNA (+RNA) de ~29900 bp, a qual comporta sequências genéticas de aproximadamente 29 diferentes proteínas virais, entre elas as mais relevantes sendo a glicoproteína Spike (S) e a proteína do nucleocapsídeo (N) (Ref.20, 29). A proteína S permite que o vírus entre na célula hospedeira ao se ligar ao receptor glicoproteico ACE2 - processo auxiliado pela clivagem e ativação da proteína S através da protease TMRPSS2 -, fusionando sua bicamada lipídica da membrana proteica com a membrana celular  do hospedeiro para a liberação do +RNA. A inserção entre as subunidades S1 e S2 da proteína S criou um local proteolítico de clivagem furina-sensitivo único do SARS-CoV-2, o qual parece ter contribuído para sua infectividade e/ou propensidade epidêmica em humanos. A proteína do nucleocapsídeo, por sua vezes, regula o processo de replicação viral.


          Devido ao +RNA (direção 5'-3'), a fita genômica do SARS-CoV-2 pode ser diretamente lida pelas estruturas celulares, como se fosse um tipo de RNA mensageiro (mRNA), e induzindo a produção de proteínas virais ao ser traduzido pelos ribossomos (organelas presentes no citoplasma da célula hospedeira). Em presença da enzima replicase RNA polimerase - acompanhada do vírus ou produzida pela célula infectada - o +RNA é usado para a produção de -RNA (molécula transiente), este o qual serve como molde para a produção de clones do +RNA original dentro de endossomos, permitindo a replicação viral no interior celular. A proteína viral ORF7 parece permitir um maior escape das partículas virais de uma célula hospedeira - abrindo caminho para infecção de outras células - e também induzir apoptose celular, contribuindo para os danos causados pela COVID-19.
           

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          O surto da COVID-19 em Wuhan (epicentro inicial) estava inicialmente associado com a exposição a um mercado de frutos marinhos na região de Huanan, sugerindo uma possível zoonose. Isso porque o mercado também vende de forma ilegal animais vivos não-marinhos para consumo humano, como cobras, marmotas, morcegos, pássaros, sapos, ouriços e coelhos. Porém, estudos posteriores começaram a apontar casos da doença não associados ao mercado, e tão cedo quanto novembro de 2019 - ou mesmo antes (Ref.5-6). Os casos ligados ao mercado foram oriundos de contaminações em dezembro, sugerindo que o vírus estava circulando silenciosamente por outros lugares.

          De fato, evidência mais recente sugere que o primeiro caso de COVID-19 ocorreu entre o início de outubro e meados de novembro de 2019 na China, com a mais provável data sendo 17 de novembro, com disseminação global do vírus já ocorrendo em janeiro de 2020 (Ref.38).
         
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IMPORTANTE: O comprimento genômico dos coronavírus (~30000 bp) é excepcionalmente longo para um vírus de RNA (como comparação, os comprimentos dos vírus HIV e do Ebola são de 10000 bp e 19000 bp, respectivamente). Os coronavírus são capazes de manter longos genomas graças a um sistema único de correção (mecanismo de proofreading) visando erros de replicação, o qual limita a taxa de mutação.

CURIOSIDADE: Analisando o genoma de populações humanas no Leste Asiático, pesquisadores em um estudo publicado na Current Biology (Ref.39) reportaram evidência (assinaturas genômicas de adaptação como resposta a uma pressão seletiva viral) de uma impactante epidemia de coronavírus (ou de um vírus muito similar) há cerca de 25 mil anos.
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   MORCEGOS E A ORIGEM PRIMORDIAL

          Os morcegos (ordem Chiroptera) são os únicos mamíferos voadores, vivendo em todos os continentes com exceção da Antártica e representados por quase 1400 espécies. Esses animais realizam um fundamental papel ecológico, ao polinizar as plantas, controlar a população de insetos - incluindo muitos vetores de doenças -, e ao promoverem grande dispersão de sementes que ajudam na regeneração de árvores em florestas tropicais. Morcegos e outros mamíferos também são reservatórios naturais de um amplo espectro de coronavírus. De fato, morcegos e coronavírus vêm co-evoluindo há milhões de anos (Ref.21). Mas será que o novo coronavírus teve uma origem também de morcegos?

         Em um dos primeiros estudos publicados sobre o tema, no periódico The Lancet (Ref.7), pesquisadores analisaram 10 sequências genômicas virais a partir de 9 pacientes infectados e concluíram que o SARS-CoV-2 precisa ser considerado um novo tipo de coronavírus devido ao fato de ser substancialmente distinto do SARS-CoV.

          Comparando a sequência genômica do SARS-CoV-2 com uma biblioteca de vírus, os autores do estudo encontraram que os vírus mais próximo-relacionados eram dois coronavírus similares ao SARS e de origem de morcegos - bat-SL-CoVZC45 e bat-SL-CoVZXC21 - os quais mostraram compartilhar 88% da sequência genética com o novo coronavírus. Para comparar, o SARS-COV-2 compartilha ~79% da sequência genética com o SARS-CoV-1 e  ~50% da sequência genética com o MERS-CoV. Além disso, os resultados foram os primeiros a indicar que o SARS-CoV-2 não havia surgido a partir de uma mutação aleatória, ou seja, já vinha evoluindo há um bom tempo.       

          Dois estudos posteriores também reforçaram que os morcegos provavelmente eram o reservatório original do SARS-CoV-2. O primeiro, publicado na Nature (Ref.8), trouxe sólidas evidências - análise de sete proteínas não-estruturais conservadas - de que o novo coronavírus pertence a uma espécie de vírus relacionados ao SARS (SARSr-CoV). O estudo analisou sequências genômicas virais obtidas de 5 pacientes, encontrando um compartilhamento de 79,5% de sequências do DNA com o SARS-CoV e um genoma 96% idêntico a outros coronavírus de morcegos. 

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           Eventualmente, os cientistas identificaram que o coronavírus RaTG13 em morcegos da espécie Rhinolophus affinis - popularmente chamados de morcego-ferradura - era ainda mais próximo relacionado em relação ao SARS-CoV-2, com duas linhagens irmãs infectando pangolins Malaios. O RaTG13 e o SARS-CoV-2 parecem ter divergido há cerca de 51-52 anos, com base na análise de regiões genômicas não-recombinantes e taxas de mutação. 


          O RaTG13 é precisamente 96,2% idêntico ao SARS-CoV-2, e 91,02% idêntico aos coronavírus isolados de pangolins Malaios (Pangolin-CoVs) comercializados na China (Ref.30, 34). O Pangolin-CoV é 90,55% idêntico ao SARS-CoV-2, e compartilha com esse último cinco cruciais aminoácidos no domínio de ligação do receptor (RBD) na proteína S, mas distintos em relação ao RaTG13. De fato, a interação da proteína S do Pangolin-CoV com o ACE2 humano é tão forte quanto aquela observada com o SARS-CoV-2, como mostrado na imagem abaixo. Isso, somado a evidências de divergências sinônimas ligadas ao RBD e de características estruturais da proteína S, tem fortemente sugerido que um ou mais eventos de recombinação genética envolvendo introgressão de uma ou mais cepas virais (CoVs) de reservatórios selvagens no RaTG13 podem representar a origem evolutiva do SARS-CoV-2 (Ref.31). Além de eventos recombinatórios, seleção natural também mostra ter atuado de forma crucial para conservar importantes estruturas da proteína S, garantindo uma eficiente interação com o receptor da célula hospedeira (Ref.32).


          Mais recentemente, de outra espécie de morcego - o morcego-ferradura Malaio (Rhinolophus malayanus), habitando regiões de Yunnan, China - foi isolado o coronavírus RmYN02 como o mais próximo relacionado ao SARS-CoV-2 até o momento conhecido, com um tempo de divergência calculado por relógio molecular de 37 anos entre ambos (Ref.36), e uma identidade genética de 97,2%. Porém, no restante do genoma, o RmYNo2 se mostrou fortemente divergente, especialmente no nível da subunidade S1 da proteína S e da proteína ORF8. Com mutações únicas no SARS-CoV-2 em relação ao SARS-CoV-1, a proteína ORF8 está associada com a patologia da COVID-19 e capacidade de interferência com o sistema imune humano. Isso pode reforçar um cenário de recombinação genética de vírus como o RmYNo2 com outros CoVs, especialmente considerando que a polimerase viral dos coronavírus possui notável capacidade de pular entre diferentes cadeias de RNA durante a replicação (template switching).



          Por fim, de uma caverna na Tailândia, pesquisadores isolaram de morcegos da espécie Rhinolophus acuminatus o coronavírus RacCS203, muito similar ao RmYNo2, reportado em um estudo publicado em fevereiro de 2021 na Nature Communications  (Ref.37). Assim como o RmYNo2, o RBD da proteína S desse vírus é bem distinto daquele do SARS-CoV-2, sendo incapaz de se ligar ao receptor ACE2 - sugerindo que esse receptor não é o único ou o principal meio de entrada de CoVs nas células de morcegos. Além disso, ainda segundo os achados do estudo, foram identificados coronavírus próximo relacionados ao SARS-CoV-2 em morcegos habitando várias regiões do Sul Asiático, desde Japão e China até a Tailândia, cobrindo uma extensão de 4800 km. Isso sugere que o SARS-CoV-2 pode ter tido uma origem inicial - e talvez começado a melhor se adaptar em humanos - não necessariamente no território da China. 

           Mais de 60% das doenças infecciosas emergentes ao redor do mundo possuem natureza zoonótica, e devastação ambiental tem sido apontado como um dos principais fatores de fomento para a emergência de zoonoses. No caso do SARS-CoV-2, e sua clara origem a partir de morcegos, é sugerido também que mudanças climáticas nas últimas décadas afetando positivamente (desequilíbrio) populações desses mamíferos voadores no Sul Asiático podem ter contribuído não só para a emergência e disseminação desse vírus como também do SARS-CoV-1 (Ref.33). Caça e comercialização descontrolada de civetas-de-palma (Paguma larvata) e de pangolins-de-Sunda (Manis javanica) no Sul da China, Myanmar e Laos podem ter favorecido esse cenário.



   POR QUE OS VÍRUS DE MORCEGOS SÃO TÃO PERIGOSOS?

          Não é apenas uma coincidência que alguns dos piores surtos de doenças virais nos anos recentes - como SARS, MERS, Ebola, Marburg e provavelmente o novo coronavírus (SARS-CoV-2) - tenham origem de morcegos. O organismo desses mamíferos é único não só por causa do fato de voarem mas também devido a um distinto sistema imune. Ao contrário de outros mamíferos que enfrentam infecções transientes com vírus altamente patogênicos e virulentos - ou morrendo em curto período ou conseguindo limpar o corpo das populações virais deletérias - os morcegos conseguem suportar a longo prazo o corpo altamente infectado, carregando altas cargas virais e muito patogênicas pelo resto da vida sem expressarem sintomas.

          O principal mecanismo que parece explicar essa notável habilidade envolve um importante caminho imunológico viral conhecido como STING-interferon. Nos morcegos, esse caminho se encontra otimizado, permitindo deter o ataque da infecção viral às células mas ao mesmo tempo não ativando de forma vigorosa o sistema imune, o que previne um caos no corpo e o aparecimento de sintomas comuns de uma infecção viral (!). Além disso, proteínas interferon tipo I - responsáveis por tornar as células resistentes a vírus - são continuamente produzidas em um número de espécies, mesmo na ausência de infecções e sem causar processos inflamatórios generalizados - provavelmente um mecanismo de defesa que evoluiu para sustentar o altamente energético voo (Ref.10).

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(!Leitura recomendada: Descoberto como os morcegos lidam com tantos vírus letais no corpo

          Nesse sentido, boa parte das células saudáveis de muitos morcegos ficam protegidas contra infecções virais diversas mesmo antes do processo de infecção ser iniciado, possibilitando que esses animais carreguem grandes cargas virais sem maiores prejuízos e independentemente da patogenicidade e virulência dos vírus. Em outras palavras, o sistema imune dos morcegos controla o crescimento da população viral, mas, ao mesmo tempo, evita uma forte resposta inflamatória (Ref.25). Essa estratégia de defesa - que potencialmente também explica a anormalmente longa longevidade de várias espécies de morcego (30-40 anos), mesmo sedo animais de pequeno porte - pode ter evoluído de forma única nesses mamíferos devido à capacidade única de voo, esta a qual permite uma ampla interação com vários ambientes sem muito esforço, expondo os indivíduos a patógenos diversos. Como vivem bem juntos em ambientes de cavernas e em grandes populações, isso facilita o compartilhamento de vários vírus. Para resistirem aos vários vírus patogênicos, o organismo desses animais foi forçado a evoluir um sistema imune mais eficiente, provavelmente em um contexto de corrida armamentista (Rainha Vermelha).

           Esse sistema imune otimizado, por sua vez, permite que os morcegos se tornem ricas fontes virais, fomentando também a evolução de vírus com altas capacidade de replicação e taxas de transmissão intra-hospedeiro. Essas características tornam outros potenciais hospedeiros mamíferos sem o sistema imune único dos morcegos - como os humanos - altamente vulneráveis a perigosos patógenos 'cultivados' nesses animais. No caso da nossa espécie, o risco de contaminação aumenta ainda mais com a crescente destruição de florestas e expansão da ocupação humana dentro de habitas naturais, o que aumenta o contato das pessoas com a vida selvagem e, consequentemente, o risco de transmissão zoonótica.


   HOSPEDEIRO INTERMEDIÁRIO?

         Ok. Resta pouca dúvida de que os morcegos são os hospedeiros primordiais - reservatórios originais - de um ancestral do novo coronavírus, mas como já mencionado, pode existir hospedeiro intermediário. Um dos primeiros estudos investigando a origem do vírus, e publicado no periódico Journal of Medical Virology (Ref.12), trouxe limitada evidência sugerindo que cobras poderiam representar o reservatório do vírus SARS-CoV-2 que diretamente infectou os humanos. Porém, essa hipótese foi rapidamente abandonada, e novas evidências mais robustas apontavam que - caso exista - o hospedeiro intermediário seria um mamífero. 

          Como já mencionado, os pangolins (gênero Manis) - amplamente considerado o mamífero mais traficado do mundo - carrega coronavírus muito similares ao SARS-CoV-2 e são considerados o principal candidato a hospedeiro intermediário. Esses animais são muito visados em todo território Chinês, e amplamente comercializados de forma ilegal, especialmente considerando que o governo do país pode punir com prisão de 10 anos ou mais quem vende pangolins, cujas 8 espécies associadas estão em grave risco de extinção (!).

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(!) As escamas do pangolim são usadas em medicinas tradicionais Chinesas sem valor científico, e, junto com a carne, em pratos luxosos variados. Para quem quiser saber mais sobre esses animais e a situação em que se encontram, acesse: Qual é o mamífero mais traficado do mundo?
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           Estudos têm encontrado uma similaridade genética entre coronavírus de pangolins e o encontrado nos humanos variando de 85,5% até 92,4% (Ref.14-15, 23, 28). Esses valores, porém, são muito baixos para confirmar o pangolim como hospedeiro intermediário. Para citar um exemplo, o vírus do SARS compartilhava 99,52-99,80% do seu genoma com o coronavírus encontrado em civetas (família Viverridae), o possível hospedeiro intermediário do surto de 2002. Uma possibilidade, seriam os eventos de recombinação entre os Pangolin-CoVs e coronavírus de morcegos antes do pulo para humanos. Similaridades estruturais e de afinidade da proteína S dos Pangolin-CoVs em relação à proteína S do SARS-CoV-2 sugerem evolução convergente.


           Mesmo com ausência de local de clivagem furina, é reportado até 100% de identidade na sequência de aminoácidos da proteína S do Pangolin-CoV, apesar de menores níveis de identidade (98,6%, 97,8% e 90,7%) com as proteínas E, M e N, respectivamente. Nesse cenário, por exemplo, um ancestral do SARS-CoV-2 em morcegos (Bat-CoV) pode ter infectado um pangolim junto com um Pangolin-CoV, permitindo um evento de recombinação onde o RBD da proteína S do Pangolin-CoV foi inserido na proteína S do Bat-Cov - este último o qual chega a possuir alta divergência em partes cruciais da proteína S mas alta similaridade no geral.

          Apesar do grande destaque aos pangolins, outros intermediários são possíveis, e por duas razões. Primeiro, os coronavírus são conhecidos de possuírem múltiplos hospedeiros. Por exemplo, o SARS-CoV, o qual teve a civeta-de-palma (Paguma larvata) como o mais provável intermediário inicial, é também reportado de usar o cão-guaxinim (Nyctereutes procyonoides) e o ferrão-texugo (Melogale moschata) como hospedeiros intermediários (!). Em segundo lugar, 91% de identidade genômica entre o coronavírus do M. javanica e o SARS-CoV-2 é alta o suficiente para a confirmação de relação evolucionária próxima entre os dois vírus, mas não alto o suficiente para considerá-los como pertencentes à mesma linhagem viral de ancestralidade direta. Teríamos muitas décadas de divergência evolutiva. Para exemplificar, e já mencionado, a sequência viral dos coronavírus ancestrais nos hospedeiros intermediários do SARS-CoV e do MERS-CoV são 99,8% e 99,9% idênticas às versões virais em humanos.

Dois cães-guaxinins em um mercado Chinês. Foto: Greg Baker/Nature

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(!) ATUALIZAÇÃO: Em um estudo ainda publicado como preprint (Ref.44) e comentado na Nature (Ref.45), pesquisadores reportaram que amostras  com sequências de DNA mitocondrial associadas a vários mamíferos presentes no começo de 2020 no mercado Chinês de Wuhan - fortemente ligado à origem do SARS-CoV-2 - estavam infectados com o vírus, reforçando o cenário de origem zoonótica da COVID-19. Entre esses animais, estavam cães-guaxinins, ratos-do-bambu e civetas-da-palma. Em particular, estudos já mostraram que o cão-guaxinim é suscetível ao SARS-CoV-2 e pode espalhar a infecção para outros membros da mesma espécie sem sinais claros de infecção.
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          Aliás, já em um estudo publicado em abril de 2020 na PNAS (Ref.19), pesquisadores analisaram um banco de dados com 410 vertebrados - incluindo 252 mamíferos - para investigar a conservação inter-espécies do ACE2 e a probabilidade dele funcionar como um receptor para o SARS-CoV-2. Analisando 25 aminoácidos nessa proteína importantes para a interação com o vírus, os pesquisadores revelaram que um amplo espectro de espécies com esses aminoácidos altamente conservados entre os mamíferos, de roedores a cetáceos. Entre os primatas, praticamente todos tinham uma sequência peptídica idêntica à nossa. Entre aqueles com alta probabilidade de ligação viral, os pesquisadores encontraram sete roedores, doze cetáceos, três cervídeos, três primatas lemuriformes, dois representantes da ordem Pilosa (a qual engloba os tamanduás) e um primata do Velho Mundo (Angola colobus). Ou seja, o que não falta são candidatos a intermediários - e de animais potencialmente suscetíveis à infecção pelo SARS-CoV-2.




           Curiosamente, os pangolins - grandes suspeitos de terem sido os reservatórios intermediários do novo coronavírus - mostraram ter uma proteína ACE2 com aparente baixa afinidade pelo SARS-CoV-2. Muitos dos animais suscetíveis ao SARS-CoV-2 - pelo menos nas simulações computacionais e análises genômicas do novo estudo - estão em risco de conservação ambiental, o que aumenta a preocupação. Um estudo subsequente, publicado na Scientific Reports (Ref.26), também trouxe forte evidência teórica mostrando que um amplo número de mamíferos estão suscetíveis ao SARS-CoV-2, entre os quais 26 em próximo contato com humanos. De fato, infecções em primatas, gatos, cães e martas já foram comprovadas de ocorrerem de forma ampla dentro e fora de ambiente laboratorial (Gatos e outros animais não-humanos podem ser infectados pelo novo coronavírus?).

          Porém, evidência mais recente publicada no periódico Scientific Reports (Ref.41), analisando a interação de fato entre a proteína S do SARS-CoV-2 e a glicoproteína ACE2 de pangolins, revelou uma alta afinidade entre ambas. O estudo determinou a energia livre de ligação associada à interação proteína S-ACE2 em 12 espécies, encontrando a seguinte ordem de afinidade (a qual não necessariamente mostrou estar associada com suscetibilidade à infecção ou virulência): humano (Homo sapiens) > pangolim (Manis javanica) > cão (Canis luparis) > macaco (Macaca fascicularis) > hamster (Mesocricetus auratus) > furão (Mustela putorius furo) > gato (Felis catus) > tigre (Panthera tigris) > morcego (Rhinolophus sinicus) > civeta (Paguma larvata) > cavalo (Equus caballus) > vaca (Bos taurus) > Cobra-rei (Ophiophagus hannah) > Rato (Mus musculus)

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(!) LUC MONTAGNIER E POLÊMICA: O Francês Luc Montagnier, vencedor do Nobel de Medicina de 2008, afirma que o coronavírus SARS-CoV-2 foi criado no laboratório WIV, de Wuhan. Porém, o polêmico pesquisador, sem ter publicado suas análises em nenhum periódico - e aparentemente não ter analisado a literatura acadêmica sobre o tema -, Luc sofreu várias críticas de cientistas, os quais apontam falhas analíticas graves e óbvias na sua conclusão. Para mais informações, acesse: Por que o polêmico cientista errou feio ao associar o HIV-1 com o novo coronavírus?
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   MORCEGOS: FONTE ÚNICA?

           Apesar dos pangolins serem frequentemente citados como importantes candidatos para a primeira transmissão zoonótica do SARS-CoV-2 - particularmente via eventos de recombinação de coronavírus nesses animais com coronavírus de morcegos -, é também plausível que o SARS-CoV-2 possa ter emergido diretamente a partir de morcegos.

          Um estudo publicado em março de 2021 na PLOS ONE (Ref.34) propôs que ambos, SARS-CoV-1 e SARS-CoV-2, emergiram como vírus generalistas em morcegos, ou seja, como um coronavírus capaz de interagir com o receptor ACE2 tanto de morcegos quanto de outros mamíferos, incluindo humanos. Através de um amplo estudo genômico, pesquisadores apontaram que o RmYN02 - como já mencionado, atualmente considerado o coronavírus mais próximo relacionado ao SARS-CoV-2 (divergência evolutiva em torno de 1976) - pode representar um ancestral que se adaptou para interagir com o ACE2 entre morcegos de forma mais generalizada, dando origem a novos coronavírus capazes de infectar humanos sem necessidade de intermediários. Coronavírus (Sarbecoviruses) de morcegos próximo-relacionados ao SARS-CoV-1 são capazes de ligarem sua proteína S ao ACE2 humano (hACE2) in vitro

          No estudo, os pesquisadores também encontraram pouca assinatura de seleção positiva no SARS-CoV-2 circulando entre humanos de dezembro de 2019 até outubro de 2020, sugerindo que desde o início do surto epidêmico na China o vírus já era bem adaptado à nossa espécie (Homo sapiens). Com exceção da mutação D614G (!), variantes de preocupação com substancial maior transmissibilidade (ex.: Beta e Alfa) só começaram a emergir mais tarde em 2020, associadas com uma ligação proteína S-hACE2 mais efetiva e em meio a uma maior pressão seletiva. Além disso, muito importante, o vírus já estava infectando vários outros mamíferos - em ambiente doméstico, urbano e rural, e em experimentos laboratoriais -, com as martas representando o caso mais notável (!). Esse último ponto novamente aponta para uma propriedade mais generalista que evoluiu em morcegos, e não uma consequência de adaptação para transmissão humano-humano.

(!) Para mais informações

           É importante mencionar que os coronavírus (CoVs) infectam mais de 500 espécies de quirópteros (uma ordem de mamíferos que englobam mais de 1200 espécies de morcegos), os quais representam um importante reservatório para a evolução dos CoVs, permitindo a recombinação de genomas virais em animais co-infectados por diferentes cepas. De fato, os dados até o momento disponíveis sugerem que o SARS-CoV-2 é derivado de múltiplos eventos de recombinação envolvendo CoVs de morcegos.

          Por outro lado, o estudo previamente citado e publicado na Scientific Reports (Ref.41) encontrou que apesar da alta afinidade da proteína S do Pangolin-CoV e do SARS-CoV-2 com o hACE2, a proteína S do SARS-CoV-2 possui uma afinidade bem menor com o ACE2 de morcegos (no caso, a espécie Rhinolophus sinicus) e com esses animais não sendo permissivos à infecção pelo vírus. Isso enfraquece a hipótese desses animais como reservatório direto do SARS-CoV-2. Poderia ter existido uma versão menos infecciosa do SARS-CoV-2 que passou direto de morcegos para humanos, se adaptando a esse último com o tempo no Sul Asiático até culminar com os primeiros casos de COVID-19 na China?


   ESTRUTURA GENÔMICA: NATURAL OU ARQUITETADA?

          Em um estudo publicado no começo deste mês no periódico Cell (Ref.17), pesquisadores determinaram que a estrutura da partícula viral do SARS-CoV-2 é constituída de 9 RNAs subgenômicos bem estabelecidos e dezenas de RNAs subgenômicos desconhecidos, associados a eventos de fusão e de deleção. Esses eventos moleculares podem ser responsáveis por rápidos processos evolutivos observados nos coronavírus, segundo os autores do estudo. Além disso, eles identificaram múltiplas modificações químicas (epitranscriptoma) desconhecidas no RNA viral, as quais podem auxiliar o vírus a evitar ataques imunes do hospedeiro. Seriam essas modificações sinais de que o genoma do SARS-CoV-2 foi fruto de engenharia genética?

          Não. Essas 'modificações' são marcadores epigenéticos (Epigenética, Plasticidade Fenotípica e Evolução Biológica), derivados de reações que ocorrem no material genético mas que não mudam as sequências genéticas (ordem de nucleotídeos), e muito comuns na natureza, emergindo como respostas ao ambiente - adaptativas ou não. Essas variações epigenéticas mudam como a informação genética é expressa. Mas saindo da estrutura extra-genômica, existem evidências de manipulação genética no SARS-CoV-2?

          Um estudo anterior, publicado em março no periódico Nature Medicine (Ref.18), já tinha trazido robustas evidências favorecendo uma origem natural do vírus. Analisando dados de sequenciamentos genômicos do SARS-CoV-2 acumulados até março, os pesquisadores nesse estudo não encontraram quaisquer evidências de que o vírus foi criado em laboratório ou feito via engenharia/manipulação genética. O genoma do novo coronavírus mostrou-se marcado por um processo evolutivo baseado em seleção natural.

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          No estudo de revisão, os pesquisadores identificaram duas notáveis características genômicas no SARS-CoV-2: (i) esse vírus parece ser otimizado para se ligar ao receptor ACE2; e (ii) sua proteína spike possui uma clivagem polibásica funcional (furina) na fronteira S1-S2 através da inserção de 12 nucleotídeos. O domínio ligante-receptor (RBD) na proteína spike é a parte mais variável no genoma do coronavírus, e seis aminoácidos RBD têm mostrado ser críticos para a ligação aos receptores ACE2 e para a determinação do espectro de hospedeiros dos vírus do tipo SARS-CoV. Em específico, cinco desses seis aminoácidos diferem entre o SARS-CoV-2 e o SARS-CoV, fazendo com que o RBD do primeiro tenha uma alta afinidade ao ACE2 de humanos, furão, gato e outras espécies com alta homologia a nível do receptor.

          No entanto, enquanto que as análises genômicas tradicionais sugeriram que o SARS-CoV-2 pode se ligar ao ACE2 humano com alta afinidade, análises computacionais indicaram que essa interação não é ideal e que a sequência RBD é diferente daquelas mostradas no SARS-CoV que são otimizadas para a ligação com o receptor. Portanto, a ligação de alta afinidade da proteína spike do SARS-CoV-2 ao ACE2 humano é muito provavelmente o resultado de seleção natural sobre um ACE2 humano ou próximo que permite outra solução otimizada de ligação emergir. Essa é a primeira forte evidência de que o SARS-CoV não é o produto de manipulação planejada.

            Somando-se a isso, o local de clivagem polibásica na junção de S1 e S2 - com consequência funcional desconhecida no SARS-CoV-2 - é bastante distinto em termos de composição, similar ao observado em betacoronavírus humanos de linhagem A mas não na linhagem B na qual pertence o novo coronavírus. Se manipulação genética tivesse sido usada, a estrutura genética básica dos betacoronavírus na linhagem B ("matéria-prima" padrão e lógica) teria sido conservada, não apresentando tal clivagem polibásica.

         Com base nessas evidências, os pesquisadores propuseram que só existem duas vias plausíveis para a emergência do SARS-CoV-2: (i) seleção natural em um hospedeiro animal antes da transferência zoonótica; e (ii) seleção natural em humanos seguindo a transferência zoonótica. Na primeira, um coronavírus teria sido passado de morcegos para um mamífero hospedeiro - talvez pangolins da espécie Manis javanica, ilegalmente importados para o mercado Chinês - e evoluído nesses animais para uma forma capaz de infectar humanos. Outra possiblidade nesse mesmo caminho seria transmissão direta a partir de morcegos. No segundo cenário, um coronavírus do hospedeiro teria infectado humanos e evoluído na nossa espécie durante transmissões humano-para-humano, otimizando seu material genético via adaptação até infectar células humanas com maior eficiência.

           Nesse sentido, um estudo publicado no periódico Science Advances (Ref.24) reforçou as evidências de forte seleção evolucionária ao redor do receptor viral RBM - componente que atua crucialmente na entrada dos coronavírus na célula hospedeira -, dos coronavírus de morcegos, pangolins e humanos. Essa região alvo de seleção é uma parte da sequência de aminoácidos da proteína Spike que media o contato direto com os receptores das células hospedeiras. Os pesquisadores no estudo também demonstraram que o RBM inteiro do SARS-CoV-2 foi introduzido através de recombinação com coronavírus de pangolins, o que reforça a possível origem do novo coronavírus desses animais (fonte intermediária) a partir de coronavírus de morcegos (origem primária). Aliás, o estudo apontou que todos os três coronavírus humanos (SARS-CoV-1, SARS-CoV-2 e MERS-CoV) analisados foram resultado de recombinação entre coronavírus diversos, e concluiu que reduzir ou eliminar o contato direto entre humanos e animais selvagens é crítico para prevenir novas zoonoses por coronavírus no futuro.


   VAZAMENTO LABORATORIAL: AINDA POSSÍVEL?

          Como proposta mais plausível do que 'engenharia genética', outros pesquisadores já sugeriram que o SARS-CoV-2 pode ser resultado de um vírus quiróptero que se tornou adaptado a outros modelos de animais em laboratório, finalmente escapando. Existe também a sugestão de que uma cepa viral pode ter sido cultivada em células humanas em laboratório em ordem de estudar seu potencial de infecção, com consequente e progressiva "humanização" (adaptação a humanos) por seleção artificial dos vírus que possuíam a mais alta habilidade de se disseminar nessas condições. Nesse mesmo caminho, eventos de recombinação entre diferentes cepas virais (ex.: morcegos e pangolins) podem ter sido induzidos em laboratório, intencionalmente ou não, resultando no SARS-CoV-2.

           Outra possibilidade é que cientistas em um laboratório estavam simplesmente estudando coronavírus de morcegos, pangolins ou outros animais capturados do meio selvagem, com o SARS-CoV-2 presente em algum espécime escapando do ambiente laboratorial por causa de brechas de segurança.

          Todas essas propostas são plausíveis até que um coronavírus muito similar ao SARS-CoV-2 (>99% de identidade genética) seja encontrado em reservatórios naturais (morcegos ou pangolins em meio selvagem). Porém, é importante também levar em conta a História Natural. Inúmeras infecções prévias com coronavírus e outros vírus na história humana tiveram origem zoonótica, incluindo o SARS-CoV-1 e o MERS-CoV-1. Nesse sentido, e em meio a um cenário cada vez maior de devastação ambiental, tráfico da vida selvagem e presença de coronavírus muito similares ao SARS-CoV-2 circulando em morcegos de uma ampla área do Sul Asiático, não podemos colocar na mesma balança as hipóteses de origem natural e de origem artificial. Não podemos nem mesmo apontar com certeza a origem do SARS-CoV-2 (ou ancestral direto) na China.

            Aliás, é válido mencionar que aqui na América do Sul estamos observando a emergência de vírus altamente letais e transmissíveis transmitidos por roedores em áreas rurais (!), talvez mais preocupantes do que o novo coronavírus. Fechar os olhos para o caminho mais lógico em favorecimento de narrativas políticas e ideológicas pode deixar as populações humanas muito vulneráveis a novas e mais perigosas pandemias.

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   CONCLUSÃO... até o momento.

          As evidências acumuladas até o momento indicam fortemente que o SARS-CoV-2 evoluiu de forma natural a partir de morcegos até infectar humanos, em um processo que envolveu múltiplos eventos de recombinação genética. Não existe suporte científico para o cenário onde o novo coronavírus tenha sido engenhado ou geneticamente manipulado, e inclusive temos um mapa completo do seu material genético - já era para termos evidências de uma suposta manipulação genética. E seria muita coincidência a existência de uma evolução convergente que explicasse a alta similaridade dos coronavírus encontrados em morcegos e pangolins e de um vírus geneticamente criado por cientistas e otimizado para máxima virulência. Além disso, existem assinaturas de seleção natural por todo o genoma do SARS-CoV-2. 

          Estudos nos últimos anos e mais recentes já vinham mostrando que vários coronavírus encontrados em morcegos estavam a um passo de infectarem humanos, especialmente aqueles encontrados em morcegos do gênero Rhinolophus. De fato, não existe dúvida de que a origem primordial do SARS-CoV-2 são os morcegos, assim como observado para o SARS-CoV-1 e o MERS-CoV. O SARS-CoV-2 é frequentemente considerado um "mosaico" genômico composto de pedaços de pelo menos dois CoVs preexistentes, seguindo o caminho evolutivo comum dos coronavírus (combinações genômicas).

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          Por outro lado, até que um coronavírus extremamente similar (ancestral direto) ao SARS-CoV-2 seja encontrado em pangolins, morcegos ou outros animais no meio selvagem, experimentos em laboratório com morcegos ou coronavírus isolados desses animais ainda representam uma possível fonte para a emergência do SARS-CoV-2 (ex.: seleção artificial ou evolução direta) após um vazamento acidental. Mas esse não deve ser considerado o cenário mais provável, já que ainda não existe convicente evidência para tal.

          Em março deste ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou um relatório concluindo que é  "extremamente improvável" que o novo coronavírus (SARS-CoV-2) tenha escapado de um laboratório na cidade Chinesa de Wuhan (Ref.27). A conclusão faz parte de uma investigação conjunta OMS-China na região que marcou o epicentro epidêmico inicial da pandemia, incluindo inspeção detalhada do Instituto de Virologia de Wuhan. Corroborando as inúmeras evidências científicas até o momento acumuladas, os especialistas da OMS afirmaram que a provável origem foi de um reservatório natural, através de um animal intermediário infectado por um morcego. Eles também afirmaram que é improvável que o evento ocorreu em Wuhan, por causa da falta de indicação de que os vírus estaria circulando na cidade antes dos primeiros casos de infecção em humanos terem sido registrados em dezembro de 2019. Investigações continuam, e todas as hipóteses ainda estão na mesa, apesar de certos caminhos estarem bem mais claros do que outros.

          Já uma investigação mais recente, conduzida pelo serviço de inteligência dos EUA e ordenada pelo presidente Joe Biden, concluiu ser improvável que o SARS-CoV-2 foi desenvolvido como uma arma biológica ou que foi fruto de engenharia genética. Porém, o relatório da investigação realçou que ainda é inconclusivo se a origem do vírus foi de um vazamento acidental de laboratório ou contato humano direto com um animal infectado (Ref.43).

          Apesar de muito barulho pelo contrário, não existe evidência crível de que o SARS-CoV-2 era conhecido por virologistas antes de ter explicitamente emergido no final 2019, e todas as indicações sugerem que, assim como como o SARS-CoV e o MERS-CoV, esse vírus provavelmente evoluiu em um hospedeiro morcego até que um desconhecido evento de transmissão inter-espécies ocorreu, culminando com infecção em humanos.


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
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  2. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5708621/
  3. https://www.sciencemag.org/news/2020/02/scientists-strongly-condemn-rumors-and-conspiracy-theories-about-origin-coronavirus
  4. https://www.amamanualofstyle.com/page/live-updates
  5. https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)30183-5/fulltext
  6. http://virological.org/t/clock-and-tmrca-based-on-27-genomes/347
  7. https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)30251-8/fulltext
  8. https://www.nature.com/articles/s41586-020-2012-7
  9. https://www.biorxiv.org/content/10.1101/2020.03.30.015008v1
  10. https://elifesciences.org/articles/48401
  11. https://www.nature.com/articles/d41586-020-00154-w
  12. https://www.nature.com/articles/d41586-020-00180-8
  13. https://www.nature.com/articles/d41586-020-00364-2
  14. https://www.nature.com/articles/d41586-020-00548-w
  15. https://pubs.acs.org/doi/abs/10.1021/acs.jproteome.0c00129#
  16. https://academic.oup.com/mbe/article/doi/10.1093/molbev/msaa094/5819559
  17. Kim, D., Lee, J. Y., Yang, J. S., Kim, J. W., Kim, V. N., & Chang, H. (2020). The architecture of SARS-CoV-2 transcriptome. Cell. In press. DOI: 10.1016/j.cell.2020.04.011
  18. https://www.nature.com/articles/s41591-020-0820-9
  19. https://www.pnas.org/content/early/2020/08/20/2010146117
  20. https://www.nature.com/articles/s41579-020-00468-6
  21. https://www.nature.com/articles/s41598-020-63799-7
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  33. https://www.nature.com/articles/d41586-023-00827-2