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Por que o polêmico cientista errou ao associar o HIV-1 com o novo coronavírus?


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         Nesta semana, o Francês Luc Montagnier, vencedor do Nobel de Medicina de 2008 pela co-descoberta do vírus HIV no início da década de 1990, causou bastante polêmica ao afirmar que o coronavírus SARS-CoV-2, causador da COVID-19, foi criado em um laboratório de Wuhan, na China, epicentro inicial da atual pandemia - mais especificamente no Instituto de Virologia de Wuhan. O pesquisador, que diz ter analisado a sequência do vírus com seu colega matemático Jean-Claude Perrez, afirma que pesquisadores Indianos já haviam tentado publicar um estudo completo mostrando que o SARS-CoV-2 possui sequências do HIV, o vírus causador da aids.

          Questionado se tal mutação não poderia ser natural, Montaigner foi categórico. "Não. Esse tipo de mutação precisa de ferramentas, não acontece na natureza". Em entrevistas, Luc também afirma não acreditar que os Chineses tenham criado o vírus para ser uma arma biológica. "Acredito que estavam em busca de uma vacina contra o HIV e usaram um coronavírus como vetor", explicou.

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          Porém, sem ter publicado suas análises em nenhum periódico - e aparentemente ter ignorado a literatura acadêmica mais recente sobre a questão -, Luc sofreu várias críticas de cientistas, os quais apontam falhas analíticas graves na sua conclusão. Sequências que Luc afirma serem exclusivas do HIV-1 seriam muito comuns em diversos outros vírus.

          "Isso não faz sentido. Esses são elementos [sequências genéticas] que nós encontramos em outros vírus da mesma família, outros coronavírus na natureza," disse o virologista Étienne Simon-Lorière do Institudo Pasteur em Paris, em entrevista para a Agence France Presse (Ref.2). "Esses são pedaços do genoma que de fato se parecem com várias sequências no material genético de bactérias, vírus e plantas. Se nós pegarmos uma palavra de um livro e essa se parece com outra palavra em outro livro, nós podemos dizer que um copiou do outro? Isso é absurdo!"

          E essa não é a primeira polêmica em que Luc se envolve, porque em 2009 ele publicou um estudo 'maluco' propondo que o DNA de vírus e bactérias patogênicos diluídos em água estaria emitindo ondas de rádio específicas associadas a nanoestruturas na solução capazes de recriar o patógeno... Basicamente homeopatia 2.0.


   EDITARAM OU NÃO O SARS-CoV-2?

          De fato, um estudo Indiano - citado por Luc - chegou a ser publicado no dia 31 de janeiro como um preprint (não-revisado por pares) no periódico bioRxiv (Ref.3) e também é verdade que o Instituto de Virologia de Wuhan desenvolve amplas pesquisas associadas ao vírus HIV e aos coronavírus de morcegos. Porém, Luc não cita que o estudo Indiano foi retirado pelos próprios autores para revisão após pesada crítica internacional de cientistas do mundo inteiro que apontaram falhas técnicas na interpretação dos resultados.

          No estudo, os pesquisadores Indianos sugeriram que 4 inserções únicas de resíduos de aminoácidos na glicoproteína spike (S) do SARS-CoV-2 não poderiam ter tido origem natural por supostamente não existirem em outros coronavírus e por causa da sua alta similaridade com resíduos de aminoácidos em uma estrutura crucial do vírus HVI-1. Isso implicaria que parte do genoma do HIV-1 teria sido editado e inserido no novo coronavírus para otimizar sua patogenicidade contra humanos.

          Os autores ainda não republicaram o estudo revisado, o qual foi retirado no dia 2 de fevereiro. E as críticas ao estudo não se limitaram apenas à opinião de especialistas, como estão sugerindo vários veículos de mídia que estão divulgando a entrevista de Luc de forma bastante sensacionalista.

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           Durante a infecção das células hospedeiras, a proteína S do SARS-CoV-2 constitui o componente externo associado ao seu envelope e é o responsável pelo reconhecimento da enzima angiotensina convertase 2(ACE2), um receptor transmembrana nas células de mamíferos que é utilizado por esse vírus para entrar nas nossas células. Portanto, a proteína S é mais do que importante para determinar a especificidade (hospedeiro) e efetividade de um coronavírus.

           As inserções de aminoácidos citados pelo estudo Indiano e por Luc englobam as sequências “GTNGTKR” (IS1), “YYHKNNKS” (IS2), “GDSSSG” (IS3), e “QTNSPRRA” (IS4). E é aqui que entramos com a causa da retirada do estudo falho realizado pelos autores Indianos: eles realizaram uma busca comparativa rasa e tendenciosa.

           Ao contrário da alegação de que essas quatro "inserções" de aminoácidos eram únicas do SARS-CoV-2 e do HIV-1, um robusto estudo publicado no final de março no periódico Journal of Proteome Research (Ref.4) mostrou que essas sequências eram compartilhadas por vários vírus, incluindo coronavírus de morcegos. Para isso, os pesquisadores realizaram um sequenciamento BLAST dessas quatro sequências contra um banco de dados sequencial não-redundante englobando o genoma de diversos vírus, revelando, por exemplo, que o coronavírus BatCov RaTG13 - o parente evolutivo mais próximo do SARS-CoV-2 no morcego da espécie Rhinolophus affinis - possui três das quatro sequências. Aliás, a proteína do HIV-1 está entre os primeiros resultados de busca do BLAST apenas para um dos fragmentos supostamente 'inseridos'. Além disso, parcialmente devido ao tamanho muito curto dessas "inserções" (variando de 6 a 8 aminoácidos), a maior parte das similaridades dessas sequências de aminoácidos entre diferentes vírus - valores estatísticos da busca - indicaram apenas coincidência, como palavras iguais entre livros.

          Comparando as "inserções" com outros coronavírus humanos conhecidos (SARS-CoV, MERS-CoV, HCoV-229E, HCoV-OC43, HCoV-NL63, e HCoV-HKU1), os pesquisadores mostraram que a sequência ISI tinha apenas um resíduo diferente dos outros coronavírus, e três de sete resíduos idênticos aos do MERS-CoV. Para as "inserções" IS2 e IS3, ambas eram idênticas àquelas dos outros coronavírus. Para a IS4, apesar desta não possuir correspondência com os outros coronavírus humanos, mostrou possuir similaridade evolucionária com os coronavírus de morcegos. Em particular, os primeiros seis resíduos no fragmento IS4 do SARS-CoV-2 são idênticos ao BatCoV RaTG13, onde que os quatro últimos resíduos - ausentes nos coronavírus de morcegos e no SARS-CoV - possuem pelo menos 50% de identidade com o MERS-CoV e o HCoV-HKU1.

           Ora, o que tudo isso indica? Que o SARS-CoV-2, como já apontando por inúmeros estudos publicados até o momento sobre o assunto (1) possui íntima associação evolucionária com os outros coronavírus e certamente emergiu naturalmente de morcegos, provavelmente sendo transmitido para humanos através de um hospedeiro intermediário. Somando-se a isso, o genoma do SARS-CoV-2 é marcado por processos de seleção natural (1). As "inserções" não são inserções, apenas compartilhamentos evolucionários com ancestrais comuns.

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(1) Para mais informações sobre o assunto, acesse: Afinal, o novo coronavírus foi criado em um laboratório da China?

          Um estudo similar publicado em meados de fevereiro no periódico Emerging Microbes Infection (Ref.5), usando um método similar de busca em um banco de dados genômicos mais amplo, identificou as quatro supostas "inserções" em várias ordens de seres vivos. Aliás, os primeiros 100 resultados de busca que compartilhavam sequências idênticas ou altamente homólogas incluíam genes que iam de bactérias até insetos e mamíferos. Quando a busca foi afunilada apenas para englobar vírus, os resultados foram similares ao estudo acima citado: as "inserções" foram identificadas em sequências amplamente existentes em todos os tipos de vírus, de bacteriófagos e Influenza (gripe) até vírus gigantes, incluindo coronavírus e o HIV-1. Porém, nesse último caso, as sequências mostraram-se longe de serem exclusivas das variantes do HIV-1, sendo bem mais comuns - como esperado - nos coronavírus.

           No estudo, os pesquisadores também mostraram que as regiões do envelope glicoproteico do HIV-1 são altamente variáveis com várias grandes inserções e deleções geradas pela alta taxa de mutação desse vírus, indicando que elas não são essenciais para funções biológicas dessa estrutura. De fato, as sequências IS1 e IS2 mostraram ser comuns apenas em algumas poucas cepas do HIV-1, demonstrando que as quatro supostas inserções são muito raras ou não presentes entre dezenas de milhares de sequências naturais do HIV-1. E aqui chegamos inclusive na nossa inesperada conclusão: o HIV-1 NÃO poderia ter sido a fonte das quatro "inserções" no genoma do SARS-CoV-2, mesmo se houvesse existido uma manipulação genética!

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          No final, então, temos dois estudos de alta qualidade, revisado por pares e devidamente publicados em periódicos que corroboram entre si seus resultados e refutam completamente a hipótese conspiratória do polêmico e imprudente cientista Francês.

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ATUALIZAÇÃO (24/06/21): Hoje essa hipótese associando o HIV ao SARS-CoV-2 está conclusivamente descartada, com base em robustas análises genéticas e de bioinformática (Ref.6).
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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. https://asiatimes.com/2020/04/french-prof-sparks-furor-with-lab-leak-theory/
  2. https://www.lapresse.ca/actualites/sciences/202004/17/01-5269764-covid-19-la-theorie-dun-virus-fabrique-vivement-contestee.php
  3. https://www.biorxiv.org/content/10.1101/2020.01.30.927871v1
  4. https://pubs.acs.org/doi/pdf/10.1021/acs.jproteome.0c00129
  5. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7033698/
  6. https://link.springer.com/article/10.1007/s10311-020-01151-1