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Qual é a diferença entre as leishmanioses cutânea (tegumentar) e visceral?

Figura 1. Foto da mão do paciente.

           Um homem de 19 anos de idade apresentou-se à clínica dermatológica com um histórico de 3 meses de uma crescente úlcera na sua mão direita (Fig.1) e múltiplos nódulos macios sobre o antebraço e cotovelo direitos. Cinco meses antes, o paciente havia viajado para o Equador, e trabalhado em uma fazendo de produtos orgânicos. Após avaliação física, a úlcera foi medida em 3 cm de diâmetro e era macia mas com as bordas firmes.

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            Uma biópsia-punch (1) no limite da úlcera mostrou um infiltrado denso de linfócitos e histiócitos contendo organismos intracelulares consistentes com amastigotos (células arredondadas de protozoários sem flagelo) do gênero Lishmania. Uma análise via reação polimerase em cadeia foi realizada, identificando a espécie do protozoário patogênico: Leishmania panamensis, confirmando que o paciente possuía leishmaniose cutânea (2).

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(1) A biópsia é um procedimento cirúrgico no qual se colhe uma amostra de tecidos ou células para posterior estudo em laboratório, tal como evolução de determinada doença crônica. Na técnica de 'punch', um cilindro de superfície cortante é girado rotatoriamente, se aprofundando na pele e permitindo a remoção de um cone que pode alcançar até a gordura subcutânea. A ferida resultante é pequena e costuma ser suturada. Vários diâmetros do cilindro são usados para diferentes propósitos.

(2) A Leishmaniose tegumentar (ou cutânea) é uma doença infecciosa, não contagiosa, que provoca úlceras na pele e mucosas. Nas mucosas costuma atingir mais o nariz, a boca e a garganta. As lesões cutâneas são rasas, circulares e com bordas elevadas e bem definidas (!). Causada por várias espécies de protozoários do gênero Leishmaania: as três principais - Leishmania (Leishmania) amazonensis, Leishmania (Viannia) guyanensis, Leishmania (Viannia) braziliensis - e outras de menor importância, como a citada L. panamensis. A leishmaniose tegumentar tem ampla distribuição mundial e no Continente Americano há registro de casos desde o extremo sul dos Estados Unidos até o norte da Argentina, com exceção do Chile e Uruguai, e atinge em especial trabalhadores que invadem florestas tropicais ou que moram próximo delas. Os insetos pertencentes ao gênero Lutzomyia (ordem Diptera), conhecidos popularmente - dependendo da localização geográfica - como mosquito-palha (!), tatuquira e birigui, são os principais vetores da leishmaniose tegumentar (Fig.2). O período de incubação do parasita é de duas semanas a vários meses.

Figura 2. O gênero Lutzomyia é o responsável pela transmissão das leishmanioses (visceral e tegumentar) nas Américas, existindo 350 espécies catalogadas, distribuídas desde o sul do Canadá até o norte da Argentina. Destas, pelo menos 200 ocorrem na bacia Amazônica. As duas espécies de leishmanias de maior importância médica e em saúde pública no Brasil são Leishmania (Viannia) braziliensis e Leishmania (Leishmania) amazonensis

(!) Na maioria dos casos, a leishmaniose mucosa ocorre após as lesões cutâneas, e o diagnóstico do envolvimento mucoso é estabelecido somente meses a anos após a cura clínica do sítio de infecção cutânea inicial. Quando acometem a mucosa oral, a doença se torna destrutiva ou ulcerovegetativa e granulomatosa, acompanhada pela presença de granulações grosseiras e sulcos profundos. Normalmente associadas à sintomatologia dolorosa, dificuldade de deglutição, sialorreia, odor fétido e sangramento. Na cavidade bucal, os locais mais afetados por essas lesões são os lábios, palato duro, palato mole e úvula.

> As leishmanioses (cutânea e visceral) têm sido reconhecidas no homem desde a antiguidade. A leishmaniose visceral, como o próprio nome indica, afeta as vísceras (ou órgãos internos), sobretudo fígado, baço, gânglios linfáticos e medula óssea, podendo levar à morte. Assim como a leishmaniose cutânea, é causada por protozoários do gênero Leishmania e transmitida pelos mosquitos do gênero Lutzomyia. Na Índia, a forma visceral era conhecida como uma doença de alta letalidade e denominada de Kala-azar (doença negra) pela frequente pigmentação escurecida da pele nos acometidos. Não há vacina contra as leishmanioses humanas. As medidas mais utilizadas para a prevenção da doença se baseiam no controle de vetores e dos reservatórios, proteção individual (ex.: repelentes e mosquiteiros), diagnóstico precoce e tratamento dos doentes, manejo ambiental e educação em saúde.

> Para todas as formas de leishmaniose, o tratamento de primeira linha no Brasil se faz por meio do medicamento antimoniato de meglumina (Glucantime). Outras drogas, utilizadas como segunda escolha, são a anfotericina B e a pentamidina. Todas essas drogas têm toxicidade considerável.

(!) Importante apontar que esses insetos não são mosquitos, estes últimos representantes da família Culicidae. Os "mosquitos-palhas" são flebotomíneos, insetos da subfamília Phlebotominae e família, e tipicamente de porte bem menor do que reais mosquitos.
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            Voltando ao relato de caso inicial, tratamento com miltefosina oral (a uma dose de 50 mg três vezes por dia ao longo de 28 dias) foi iniciado. Leishmaniose cutânea causada pelo L. panamensis pode disseminar para a mucosa oronasofaríngea. Uma avaliação via fibra-óptica da nasofaringe foi realizada 6 dias depois do paciente começar o tratamento, e não mostrou nenhuma evidência de doença nas mucusas da região. Dez dias depois de completar a terapia, a úlcera tinha sido curada deixando uma cicatriz atrófica, e o número e o tamanho dos nódulos subcutâneos foram drasticamente reduzidos.


O caso foi reportado e descrito em 2 de janeiro de 2020 no periódico The New England Journal of Medicine.


Referências adicionais: