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Existem canabinoides nas folhas da Cannabis?

Figura 1. (A) Folhas de Cannabis. (B) Fotomicrografia do tricoma glandular em uma folha de Cannabis, colorida por efeito de luz. Ampliação das lentes objetivas: 20x.
 

          As plantas do gênero Cannabis (família Cannabaceae) representam complexas ervas medicinais contendo várias classes de metabólitos secundários, incluindo pelo menos 104 canabinoides, 120 terpenoides (incluindo 61 monoterpenos, 52 sesquiterpenoides e 5 triterpenoides), 26 flavonoides e 11 esteroides entre 545 compostos identificados (Ref.2). Contrário à crença popular, canabinoides não são exclusivos das flores da Cannabis. Esses compostos são relativamente abundantes não apenas na inflorescência, como também nas folhas. Por exemplo, o conteúdo total do principal canabinoide psicoativo, tetrahidrocanabinol (THC), é dramaticamente maior nas inflorescências (10-12%), mas presente de forma significativa nas folhas (1-2%).

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           Os canabinoides são produzidos por glândulas especializadas presentes em estruturas chamadas de tricomas. Esses tricomas ocorrem mais densamente na inflorescência. Nas folhas, são encontrados na superfície e em densidade muito menor do que nas flores (Ref.3). Como a concentração de THC é muito maior na inflorescência feminina, o topo das flores fêmeas é preferencialmente coletado para extração e consumo recreativo ou medicinal, enquanto as outras partes da planta são tipicamente descartadas.

Figura 2. Em (a), planta da Cannabis (CBD Mango Haze) mantida em estágio vegetativo por seis meses e com produção de flores iniciada há dois meses, em uma estufa. (b) Inflorescências secas do espécime. (c) Folhas secas do espécime. (d) Caules frescos do espécime e com a casca raspada na foto menor à direita. (e) Raízes frescas do espécime. Conteúdo de canabinoides na inflorescência (massa seca): ~15-20%. Conteúdo de canabinoides nas folhas (massa seca): ~1-2%. Ref.2

           Tricomas são estruturas multicelulares micrométricas que podem ser divididas em duas categorias na Cannabis: glandulares e não-glandulares. Canabinoides são sintetizados e armazenados nas cavidades secretoras dos tricomas glandulares, nas "cabeças" do tricoma (Fig.4). Produção, acúmulo e secreção de canabinoides, a níveis significativos, ocorrem nos tricomas glandulares associados às flores e às folhas da Cannabis. As flores possuem a maior quantidade de tricomas, em especial do tipo que produz maiores níveis de canabinoides (Fig.5). Antera e folhas possuem mais tricomas glandulares do tipo que produz menos canabinoides. Raízes possuem escassa ou nenhuma quantidade de tricomas e, portanto, canabinoides não são acumulados nessas estruturas.


Figura 3. Tricomas não-glandulares em um cultivar de Cannabis sativa (Frisian Dew). (A) Tricomas não-glandulares cobrindo o lado abaxial de uma folha. (B) Tricomas não-glandulares citolíticos sobre os contornos de uma folha. Ref.4

Figura 4. Tricomas glandulares em um cultivar de Cannabis sativa ('Frisian dew'). (A) Tricomas glandulares capitato-sésseis sobre o lado abaxial de uma folha. (B) Tricomas glandulares talo-capitatos sobre o lado abaxial de uma folha. Tricomas glandulares - especificamente a glândula ("cabeça") arredondada e expandida na ponta - produzem, armazenam e secretam canabinoides e outros metabólitos secundários (ex.: terpenos). Ref.4

Figura 5. Fotomicrografia de um tricoma glandular associado à bráctea da inflorescência de uma Cannabis. Os tricomas glandulares na Cannabis são mais abundantes [maior densidade] nas brácteas das inflorescências fêmeas. Ampliação das lentes objetivas: 20x.

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Importante: O conteúdo de THC e a densidade de diferentes tipos de tricomas glandulares podem variar dramaticamente entre diferentes cultivares e clones da Cannabis. Cultivares de C. sativa são geralmente categorizadas como Cannabis medicinal ("marijuana") se o conteúdo de THC nas flores secas é acima de 0,2-0,3%. Ref.5

> Canabinoides têm sido detectados em quase todas as partes da Cannabis, incluindo flores, caule, folhas, pólen e sementes.

> Quatro canabinoides estão presentes em alta quantidade na Cannabis: ácido canabidiólico (CBDA), THC, canabidiol (CBD), ácido tetrahidrocanabinólico (THCA). O THC é psicoativo em doses efetivas entre 10 e 20 mg, enquanto os outros três canabinoides não não psicoativos ou possuem apenas baixa psicoatividade. Canabinol (CBN) é um produto de degradação do THC.

Figura 6. [Fito] Canabinoides em plantas são substâncias que exibem uma estrutura química carbocíclica com 21 átomos de carbono e que são geralmente formadas por três anéis: cicloexeno, tetraidropirano e benzeno. Canabinoides contêm hidrocarbonos aromáticos oxigenados e não exibem nitrogênio. Essas substâncias se ligam ao receptores canabinoides de mamíferos. Ref.18-19

Leitura complementar:


> Muitas pessoas preparam chás com folhas de Cannabis coletadas de cultivares com baixos níveis de THC e ricos em CBD. Essas infusões são tipicamente feitas colocando as folhas em água fervente por 5-15 minutos. Ref.6

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            Existe evidência que variedades da espécie C. sativa têm sintetizado canabinoides por milhões de anos. Mas existe algum valor adaptativo na síntese desses compostos? Evolução independente da biossíntese de canabinoides em múltiplas linhagens de plantas sugere importante funcionalidade biológica desses metabólitos (!). Plausibilidade teórica e limitada evidência experimental apontam que os canabinoides reduzem a preferência de herbívoros por essas plantas, devido a efeitos tóxicos e psicoativos (Ref.7-8).

           Em vertebrados herbívoros, o THC e outros canabinoides se ligam aos receptores CB1 e CB2 do sistema endocanabinoide. Essas interações e subsequentes impactos no sistema nervoso podem deter o avanço alimentar desses animais, resultando em reduzido dano ou preferência. Já em um número de invertebrados herbívoros, compostos como o CBD parecem ter efeitos deletérios nas funções reprodutivas e de desenvolvimento, incluindo efeitos larvicidas contra algumas espécies de insetos (Ref.9). Em afídeos da espécie Phorodon cannabis, uma das mais danosas pestes em plantações de Cannabis, alta concentração de canabinoides parece ser deletéria contra esses insetos, mas incerto se por ação direta ou indireta desses compostos (Ref.10).

           Essa função de defesa química - complementar a outros metabólitos secundários e substâncias da C. sativa (ex: compostos fenólicos, inibidores de protease, terpenos) - é concordante com a alta concentração de canabinoides nas inflorescências da Cannabis, órgão crítico para a reprodução e onde as sementes da planta são produzidas.

           Por outro lado, vários herbívoros consomem normalmente C. sativa, incluindo lagartas da espécie Helicoverpa zea que possuem dieta herbívora generalista e se alimentam diretamente das inflorescências ricas em canabinoides. Mas existe evidência mais recente de que altos níveis de THC possuem impactos adversos no crescimento da H. zea (Ref.11).

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> Tricomas não-glandulares na Cannabis funcionam como barreiras físicas entre herbívoros e a epiderme da planta. Também parecem atuar protegendo estruturas da planta contra o vento e a radiação solar. Ref.4

> Outras funções biológicas propostas para os canabinoides na Cannabis incluem proteção física contra estressantes ambientais e herbívoros. Quando as "cabeças" dos tricomas sofrem ruptura (ex.: durante mastigação), o conteúdo forma uma cobertura viscosa e pegajosa que pode prevenir dessecação da planta e grudar as mandíbulas e as pernas de herbívoros. A quantidade de canabinoides também é positivamente correlacionada com aumento da temperatura e redução da umidade ou nutrientes no solo. Por fim, canabinoides podem também proteger as plantas contra os efeitos destrutivos da radiação UV-B (280-315 nm), ao absorver essa faixa radiativa. Ref.12

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   (!) CANABINOIDES ALÉM DA CANNABIS

          Embora exista a forte associação entre [fito]canabinoides e plantas do gênero Cannabis, essa associação não é exclusiva. Outros grupos distintos de plantas angiospérmicas também evoluíram caminhos de biossíntese para canabinoides, incluindo evolução paralela na espécie Helichrysum umbraculigerum, nativa da África do Sul e pertencente à família Asteraceae (Fig.6). Podemos citar também os gêneros Rhododendron (Ericaceae) e Radula (Radulaceae), que evoluíram de forma independente a capacidade de sintetizar canabinoides. Os gêneros Rhododendron (Fig.7) e Cannabis possuem divergência evolutiva estimada há 124 milhões de anos (Ref.13). Algumas espécies de fungo também produzem canabinoides, como o gênero Albatrellus (Albatrellaceae) (Ref.12).


Figura 6. A espécie Helichrysum umbraculigerum (A) produz vários canabinoides similares àqueles da Cannabis através de enzimas distintas, incluindo o (B) ácido canabigerólico (CBGA) que constitui até 4,3% da massa seca das folhas. Em contraste com a Cannabis, os canabinoides na H. umbraculigerum são acumulados em maior quantidade nos tricomas das folhas ao invés das flores. Ref.13


Figura 7. A espécie Rhododendron dauricum (A) é nativa do Nordeste Asiático e produz canabinoides como o ácido dauricromênico (DCA), ácido grifólico e a confluentina. O DCA (B) é acumulado no apoplasto das escamas glandulares dessa espécie, aparentemente servindo como defesa química contra microrganismos. Ref.12

          Relevante apontar que a alegada presença de canabidiol (CBD) em outras plantas além da C. sativa (ex.: linho, Linum usitatissimun) é incerta e não suportada por suficiente evidência científica (Ref.15).


> Para uma revisão recente e compreensiva sobre a evolução e os caminhos de biossíntese dos canabinoides nos tricomas glandulares da Cannabis, acesse a Ref.16-17


Leitura recomendada:


REFERÊNCIAS

  1. Murovec et al. (2022). Analysis of Morphological Traits, Cannabinoid Profiles, THCAS Gene Sequences, and Photosynthesis in Wide and Narrow Leaflet High-Cannabidiol Breeding Populations of Medical Cannabis. Frontiers in Plant Science, Volume 13. https://doi.org/10.3389/fpls.2022.786161
  2. Jin et al. (2020). Secondary Metabolites Profiled in Cannabis Inflorescences, Leaves, Stem Barks, and Roots for Medicinal Purposes. Scientific Reports 10, 3309. https://doi.org/10.1038/s41598-020-60172-6
  3. Janfelt et al. (2023). Leaves of Cannabis sativa and their trichomes studied by DESI and MALDI mass spectrometry imaging for their contents of cannabinoids and flavonoids. Phytochemical Analysis, Volume 34, Issue 3, Pages 269-279. https://doi.org/10.1002/pca.3202
  4. Pekas et al. (2022). Glandular trichomes affect mobility and predatory behavior of two aphid predators on medicinal cannabis. Biological Control, Volume 170, 104932. https://doi.org/10.1016/j.biocontrol.2022.104932 
  5. Stasitowicz-Krzemien et al. (2023). Determining Antioxidant Activity of Cannabis Leaves Extracts from Different Varieties—Unveiling Nature’s Treasure Trove. Antioxidants, 6;12(7):1390. https://doi.org/10.3390/antiox12071390
  6. Novak et al. (2021). "Residues of herbal hemp leaf teas – How much of the cannabinoids remain?" Food Control, Volume 127, 108146. https://doi.org/10.1016/j.foodcont.2021.108146
  7. George et al. (2022). Cannabinoids function in defense against chewing herbivores in Cannabis sativa L., Horticulture Research, Volume 10, Issue 11, uhad207. https://doi.org/10.1093/hr/uhad207
  8. Koprivnikar et al. (2024). Escaping the hot seat: consuming decomposing Cannabis sativa slows weight gain and heat escape behaviour in the earthworm, Eisenia fetida. Canadian Journal of Zoology. https://doi.org/10.1139/cjz-2024-0031
  9. Abendroth et al. (2023). Cannabidiol reduces fall armyworm (Spodoptera frugiperda) growth by reducing consumption and altering detoxification and nutritional enzyme activity in a dose-dependent manner. Arthropod-Plant Interactions 17, 195–204. https://doi.org/10.1007/s11829-023-09948-x
  10. MacWilliams et al. (2023). Assessing the adaptive role of cannabidiol (CBD) in Cannabis sativa defense against cannabis aphids. Frontiers in Plant Science, Volume 14. https://doi.org/10.3389/fpls.2023.1223894
  11. Allen, Estelita L. (2024). The Effects of Cannabis and THC on the Growth of Helicoverpa zea. [Tese] Western Illinois University, 31297060. Link do PDF
  12. Gülck & Møller (2020). Phytocannabinoids: Origins and Biosynthesis. Trends in Plant Science. https://doi.org/10.1016/j.tplants.2020.05.005 
  13. Schilling et al. (2022). Evolution, genetics and biochemistry of plant cannabinoid synthesis: a challenge for biotechnology in the years ahead. Current Opinion in Biotechnology, Volume 75, 102684. https://doi.org/10.1016/j.copbio.2022.102684
  14. Berman et al. (2023). Parallel evolution of cannabinoid biosynthesis. Nature Plants 9, 817–831. https://doi.org/10.1038/s41477-023-01402-3
  15. Appendino et al. (2022). "Cannabidiol (CBD) From Non-Cannabis Plants: Myth or Reality?" Natural Product Communications. https://doi.org/10.1177/1934578X221098843 
  16. Velzen & Schranz (2021). Origin and Evolution of the Cannabinoid Oxidocyclase Gene Family, Genome Biology and Evolution, Volume 13, Issue 8, evab130. https://doi.org/10.1093/gbe/evab130
  17. Xie et al. (2023). Cannabis sativa: origin and history, glandular trichome development, and cannabinoid biosynthesis. Horticulture Research, Volume 10, Issue 9, uhad150. https://doi.org/10.1093/hr/uhad150
  18. Barrales-Cureño et al. (2020). Chemical Characteristics, Therapeutic Uses, and Legal Aspects of the Cannabinoids of Cannabis sativa: A Review. Brazilian Archives of Biology and Technology, 63. https://doi.org/10.1590/1678-4324-2020190222
  19. Sampson, P. B. (2020). Phytocannabinoid Pharmacology: Medicinal Properties of Cannabis sativa Constituents Aside from the “Big Two.” Journal of Natural Products. https://doi.org/10.1021/acs.jnatprod.0c00965