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Por que o uso de maconha deixa o olho vermelho e causa tanta fome?


- Atualizado no dia 1 de abril de 2024 -

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          A habilidade da maconha de aumentar a fome e o apetite é algo bem conhecido há séculos, efeito o qual é bastante referenciado no meio popular como 'larica' e possui inclusive aplicações terapêuticas. Mas qual é exatamente a ação dos canabinoides da maconha para esse efeito fisiológico? Existe preocupação quanto ao crescente uso da maconha em um contexto de crescente crise epidêmica nas taxas de obesidade? Qual é o paradoxo entre a maconha e a obesidade? E, afinal, qual a razão do olho ficar vermelho durante o consumo de marijuana?

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   MACONHA E A FOME

         A Cannabis sativa (1) têm sido cultivada há mais de 5 mil anos tanto para se obter fibras visando a manufatura de tecidos quanto para fornecer uma variedade de extratos voltados para o uso medicinal e o uso recreativo. A maconha (marijuana) e outros derivados psicoativos da C. sativa representam a droga ilegal mais consumida no mundo Ocidental hoje. No entanto, apesar dos problemas sociais e médicos associados ao abuso dessas substâncias - no caso, fitocanabinoides bioativos -, existe também um grande potencial terapêutico para a maconha a partir da sua interferência no sistema endocanabinoide do nosso corpo.

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(1) O gênero Cannabis inclui três espécies: Cannabis sativa, Cannabis indica e Cannabis ruderalis, cada uma das quais com uma longa história de domesticação. Variações híbridas têm sido criadas para fortalecer algumas características específicas e aumentar o potencial terapêutico. A C. sativa (marijuana) é a mais amplamente utilizada devido ao seu distinto e rico espectro fitoquímico. Atualmente, 545 compostos naturais foram identificados nessa espécie.
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         Desde 300 a.C., na Índia, já era observado que a Cannabis pode substancialmente estimular a fome e aumentar o apetite (hiperfagia), particularmente para alimentos doces e palatáveis. Enquanto intoxicados usuários reportam forte desejo por alimentos muito calóricos (ricos em carboidratos ou gordura), mesmo quando previamente saciados, um fenômeno conhecido como amplificação alimentar hedônica. Em outras palavras, a Cannabis pode aumentar o prazer ou recompensa associado ao consumo de alimentos muito açucarados ou gordurosos. Essa droga é inclusive usada terapeuticamente para estimular o apetite em pacientes com certas enfermidades, como aqueles com câncer sob quimioterapia (!), com HIV/AIDS e com anorexia nervosa. 

          No entanto, apenas nas últimas décadas esse fenômeno começou a ser seriamente investigado, especialmente após a elucidação da estrutura do Δ-tetrahidrocanabinol (THC) e a descoberta dos receptores canabinoides e seus ligantes endógenos (endocanabinoides). Nesse sentido, a existência de um sistema canabinoide eventualmente foi estabelecida, fornecendo uma base fisiológica para os efeitos induzidos pela maconha e seus derivados. Em 1990, o primeiro receptor canabinoide (CB1R) foi clonado, seguido 3 anos mais tarde pela caracterização de um segundo receptor canabinoide (CB2R). A importância desse sistema é também reforçada pela descoberta de um alto grau da sua conservação evolucionária ao longo das espécies, enfatizando o papel fisiológico fundamental dos canabinoides para a função cerebral.

           Voltando aos efeitos de estimulação da fome e do apetite, nos últimos anos já havia sido descoberto que o composto dronabinol (um dos componentes da C. sativa) e, principalmente, o THC ativam o CB1R, levando à liberação de hormônios promotores de fome, com uma provável participação de células nervosas chamadas de 'neurônios pró-opiomelanocortinas' (POMC) nesse processo. Esses neurônios liberam não apenas hormônios de supressão da fome, como também promotores de apetite. Mas quais os mecanismos específicos por trás desses estímulos?


   (!) CAXEQUIA

          Caquexia é definida como uma síndrome multifatorial caracterizada por uma contínua perda de massa muscular esquelética (com ou sem perda de massa adiposa) que não pode ser totalmente revertida por suporte nutricional convencional e leva a um progressivo prejuízo funcional. É estimado que a síndrome da caquexia anoréxica impacta entre 50% e 80% dos pacientes com câncer e está implicada em 20% das mortes relacionadas ao câncer. Essa síndrome é causada por citocinas e hormônios tumor-induzidos. O mais efetivo tratamento para a síndrome é o tratamento efetivo do câncer associado.

          Entre outras intervenções sendo testadas para o tratamento da síndrome da caquexia anoréxica, temos agentes farmacológicos que visam melhorar o apetite, reduzir a inflamação, promover metabolismo anabólico, e bloquear a atividade de citocinas. Canabinoides têm sido também testados para esse fim, considerando o potencial desses compostos para estimular o caminho de recompensa  ligado ao paladar e ao olfato, aumentando a motivação para comer e aproveitar o alimento. 

          Porém, até o momento, as evidências são limitadas para a eficácia dos canabinoides, naturais ou sintéticos (ex.: dronabinol e nabilona). Em 2016, a Sociedade Europeia para Nutrição Parenteral e Enteral (ESPEN) concluiu que "existe insuficiente dado clínico consistente  para recomendar canabinoide para melhorar desordens de paladar ou anorexia em pacientes com câncer." Um estudo recente de revisão sistemática, publicado no periódico Nutrition in Clinical Practice (Ref.10), também corroborou a conclusão da ESPEN, afirmando que as evidências até o momento são limitadas e sugerem que canabinoides não são melhores do que placebo na melhora de apetite, do ganho de massa corporal, do consumo alimentar oral, da função quimiossensorial e da qualidade de vida apetite-relacionada entre pacientes com câncer.

          Mais estudos de melhor qualidade são necessários para esclarecer essa questão. 

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   PLASTICIDADE GENÉTICA?

          O hipotálamo é região do sistema nervoso central (SNC) que integra informação metabólica com as necessidades internas para regular o balanço de apetite e de energia. Dentro do hipotálamo, portanto, eventos de programação genética regulam o consumo de alimento e o balanço entre gasto e armazenamento energéticos. Além disso, mudanças dinâmicas nos padrões de expressão de mRNA (RNA mensageiro, molécula que carrega informações geradas pelo código genético para a síntese de proteínas) dentro dos neurônios hipotalâmicos são reconhecidos como poderosos processos que regulam o consumo alimentar e a massa corporal.

         Nesse sentido, evidências recentes vinham indicando que a poli-adenilação alternativa (APA) de mRNAs, um mecanismo de processamento do RNA que gera transcripts (molécula de RNA transcrita de um DNA), é um mecanismo genético chave que regula a abundância e a localização de mRNA, e, como resultado, a função biológica dos neurônios.

          Para testar se interferências nos eventos APA estariam por trás dos efeitos de apetite da Cannabis, pesquisadores em um estudo publicado em 2019 na Nature (Ref.4) analisaram os efeitos da exposição de vapores de maconha em ratos. Primeiro, eles confirmaram, que de fato, os ratos passavam a ter um apetite muito maior após a exposição, realçando mais uma vez o compartilhamento evolucionário do sistema endocanabinoide. Mesmo uma curta e única exposição ao Cannabis incentivou a alimentação nesses roedores na presença ou na ausência de necessidades calóricas.

          Na segunda parte do estudo, os pesquisadores compararam a resposta comportamental (pós-exposição ao Cannabis) com os eventos APA diferencialmente expressos, abundância funcional de RNA, e interações proteína-proteína (PPI) no hipotálamo, buscando encontrar novos mecanismos pós-transcricionais que poderiam contribuir para o comportamento alimentar induzido pela maconha.

          Os pesquisadores encontraram que a exposição ao Cannabis reduz os eventos APA nos transcripts de mRNA implicados na função excitatória das sinapses e na sinalização dopaminérgica. Em particular, os pesquisadores detectaram uma redução nos eventos APA no Nrxn1, um transcript envolvido com a plasticidade sináptica. Essa ação reflete em uma diminuição na codificação proteica de cruciais transcripts de RNA ligados à neurotransmissão dopaminérgica. Esses achados fortemente sugerem que a inalação pulmonar da planta da maconha altera a base genética (função transcriptoma) em regiões cerebrais regulatórias do apetite.


   NEURÔNIOS DE FOME

          Um estudo mais recente publicado no periódico Scientific Reports (Ref.24) revelou mecanismos neurais específicos que parecem promover apetite engatilhados pela exposição de vapor de Cannabis, pelo menos em ratos.

          Após exposição dos ratos aos vapores de Cannabis sativa, os pesquisadores usaram avançada técnica de imagem para rastrear a atividade de células cerebrais desses animais. Eles observaram que a Cannabis ativava um subconjunto de neurônios no hipotálamo (região mediobasal) quando os ratos antecipavam e consumiam alimentos palatáveis e que não eram ativados em ratos sem exposição à droga. Os pesquisadores também determinaram que o receptor CB1R controlava a atividade de neurônios expressando a proteína relacionada agouti (AgRP). Inibição dos neurônios AgRP mostrou atenuar os efeitos promotores de apetite produzidos pela Cannabis.

          O estudo concluiu que neurônios no hipotálamo mediobasal contribuem para as propriedades estimulantes de apetite da Cannabis inalada.


   VERMES COM LARICA?

          O alto grau de conservação da sinalização endocanabinoide a nível molecular ao longo do Reino Animal sugere que vários dos efeitos dos canabinoides da maconha/Cannabis no organismo humano espelham efeitos em outros animais, mesmo naqueles relativamente mais simples, e especialmente relacionados à homeostase energética. De fato, como previamente citado, animais como ratos também manifestam "larica" após exposição a canabinoides da Cannabis. Estado de fome aumenta os níveis de endocanabinoides no núcleo accumbens e hipotálamo - regiões do cérebro que expressam receptores CB1 e contribuem para a regulação do apetite - tanto em animais humanos e animais não-humanos.

           Para responder efetivamente a um déficit de energia, um animal precisa buscar alimento (comportamento de apetite) e, uma vez que alimento é encontrado, maximizar o consumo calórico (comportamento de consumo). O sistema endocanabinoide é capaz de orquestrar ambos os aspectos dessa resposta. Relativo ao comportamento de apetite, agonistas do CB1 reduzem a latência de alimentação e induzem os animais a gastarem mais esforços para obter um alimento ou líquido de recompensa, enquanto que antagonistas do CB1 possuem efeitos opostos. Existe suporte experimental para a hipótese de que os canabinoides amplificam os aspectos de recompensa ou prazer de alimentos densamente calóricos, através de mediadores envolvendo provavelmente o paladar e o olfato.

          Apesar dos receptores CB1 e CB2 serem únicos de animais cordados (vertebrados e clados próximo relacionados), existem numerosos candidatos para receptores de canabinoides na maioria dos animais (vertebrados e invertebrados) - e isso inclui quase global presença de enzimas envolvidas na síntese e degradação de endocanabinoides entre os metazoários.

           Por exemplo, mesmo separados por uma divergência evolutiva há mais de 500 milhões de anos em relação à linhagem levando aos mamíferos, um estudo publicado em 2023 no periódico Current Biology (Ref.15) mostrou que vermes da espécie Caenorhabditis elegans também exibem o fenômeno de "larica" (particularmente efeitos hedônicos) quando expostos a canabinoides - similar quando humanos consomem Cannabis. Aliás, o C. elegans - um modelo evolutivo e de desenvolvimento muito usado em estudos experimentais - possui um elaborado sistema de sinalização endocanabinoide, incluindo receptores NPR-19 similares ao receptor CB1 observado em mamíferos. 

Imagem de um verme C. elegans geneticamente modificado para que certos neurônios e músculos fiquem fluorescentes. Pontos verdes são neurônios que respondem a canabinoides. Pontos magenta são outros neurônios. Esse verme nematódeo mede cerca de 1 mm de comprimento quando adulto. Ref.15

          O C. elegans se alimenta de bactérias em matéria orgânica de plantas em decomposição, e encontra sua presa através de pistas químicas gustativas e olfativas. As bactérias são ingeridas através da faringe do verme, uma bomba muscular ritmicamente ativa que constitui a garganta do animal. Diferentes espécies de bactérias possuem diferentes qualidades nutricionais como alimento. Os filhotes recém-nascidos de C. elegans não exibem preferência por bactérias específicas, mas, em questão de horas, começam a exibir preferência por espécies nutricionalmente superiores em detrimento de espécies nutricionalmente inferiores. 

          No estudo referido, os pesquisadores mostraram que quando vermes C. elegans são expostos a canabinoides - no caso, imersão dos vermes em uma solução contendo o endocanabinoide anandamida -, esses animais aumentam substancialmente o apetite e o consumo relativo a bactérias de maior valor nutritivo, um efeito que mostrou ser mediado pelo receptor NPR-19 e via alteração na sensibilidade de neurônios envolvidos no sistema olfativo. Os vermes "chapados" também mostraram exibir significativo menor interesse por bactérias menos nutritivas. E mais: quando os pesquisadores repetiram o experimento em vermes geneticamente modificados para expressar o receptor humano CB1, os efeitos hedônicos mostraram-se os mesmos.


   E A CRISE DE OBESIDADE?

          Na Inglaterra, a obesidade já afeta quase um terço (29%) da população, e é esperado que essa taxa aumente para 35% até 2030. Nos EUA, a situação não melhora, com mais de 33% da população adulta já obesa, e com um estudo publicado no final de 2019 no periódico New England Journal of Medicine (Ref.5) estimando que até 2030, aproximadamente metade (48,9%) dos Norte-Americanos serão obesos e acima de 24% da população do país terá obesidade severa. E, segundo um estudo também recente publicado no periódico Annals of Internal Medicine (Ref.6), a prevalência de obesidade geral na China triplicou nas últimas décadas e aquele de obesidade abdominal aumentou em mais de 50%. De fato, uma epidemia global de obesidade já é reconhecida pelas agências de saúde. A obesidade é um forte fator de risco para a diabetas tipo 2, doenças cardiovasculares, doenças renais e hepáticas, cânceres diversos (2), entre outros.

Leitura recomendada: 

          Considerando o efeito exacerbado de fome e de apetite induzido pela maconha nesse contexto, poderia o crescente aumento global no uso dessa droga piorar ainda mais a situação? Bem, a resposta não é tão simples quanto parece.

         Apesar da estimulação do apetite a curto prazo (efeito agudo), a longo prazo (crônico) vários estudos nos últimos anos (clínicos e de revisão) sugerem que o uso regular de maconha está associado com uma redução no Índice de Massa Corporal (IMC) e nas taxas de obesidade. Isso pode ser explicado pelo fato de que o uso regular ou pesado a longo prazo parece levar a uma menor regulação na atividade do CBR1, o que por sua vez pode levar a uma modificação no comportamento de alimentação do indivíduo e no balanço energético, causando uma progressiva perda de massa adiposa e resistência ao ganho de peso.

          De fato, uma classe sintética de medicamentos chamada de rimonabante agonista inverso CBR1 (SR141716A) - o qual bloqueia esse receptor endocanabinoide - promove o emagrecimento e uma redução no consumo alimentar. Além disso, o bloqueio do CB1R também mostra melhorar a homeostase de glicose e diminuir a esteatose hepática em indivíduos obesos/sobrepeso com síndrome metabólica. Todos esses efeitos levaram à aprovação em 2006 do rimonabante pela Agência Europeia de Medicina (EMA) como um medicamento anti-obesidade sob o nome de Acomplia® (Sanofi-Aventis). No entanto, acabou sendo banido em 2009 devido a preocupantes efeitos colaterais em significativa parte dos pacientes, como ansiedade, depressão e idealização suicida.

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           Para melhor entender esse paradoxo, precisamos explorar uma hipótese que tenta explicar, em parte, as taxas cada vez maiores de obesidade ao redor do mundo. A epidemia de obesidade teve um claro início a partir da década de 1960, acompanhando um período onde a fisiologia humana virtualmente não mudou, mas nosso suprimento de alimentos sim, e de forma drástica. Uma das mais significativas dessas mudanças foi a variação na razão de dois nutrientes essenciais: o ácidos graxos ômega-6 e o ômega-3. Antes da emergência dos alimentos industrializados e processados representando o principal componente da nossa dieta, a razão alimentar de ômega-6 para ômega-3 era de aproximadamente 4:1. Na dieta moderna de alimentos processados, essa razão chegava a ser de 20:1. E essa mudança no consumo lipídico leva a uma super-estimulação do sistema endocanabinoide.

          O sistema endocanabinoide consiste de moléculas sinalizadoras e receptores. Os principais veículos de sinalização são o AEA e o 2-AG, e os principais receptores são o CB1R e o CB2R. O AEA e o 2-AG são sintetizados do ácido araquidônico, um ácido graxo ômega-6. Essas sinalizações são elevadas na obesidade devido a uma elevada razão de ômega-6 para ômega-3 na dieta, resultando em uma super-estimulação dos receptores. De especial preocupação na obesidade epidêmica é a super-estimulação do CB1R. A função desse receptor primário é de estimular o ganho de massa adiposa. Quando estimulado, ele aumenta o apetite, a palatabilidade da comida, a absorção de comida, e a assimilação das reservas energéticas. Ao mesmo tempo, essa estimulação promove a conservação de energia ao reduzir a taxa metabólica. Somando a uma maior oferta de alimentos e de um estilo de vida sedentário, a super-estimulação desse sistema facilita o estabelecimento da obesidade e doenças crônicas como a diabetes tipo 2.

           O CB1R, como já mencionado, também é notavelmente estimulado pelo THC, o principal componente psicoativo da maconha. A curto prazo, esse canabinoide aumenta o apetite, a hiperfagia e a hipotermia associados com os estágios agudos do uso de Cannabis. No entanto, a longo prazo, é proposto que a exposição ao THC acaba causando uma robusta redução regulatória do CB1R, reduzindo a sensibilidade do sistema endocanabinoide à super-estimulação induzida pelos sinalizadores AEA e 2-AG, e, assim, trazendo o sistema de volta à homeostase.

          Nesse sentido, o maior consumo indiscriminado ou medicinal de maconha dificilmente iria trazer efeitos de exacerbação nas taxas de obesidade. Esse paradoxo inclusive sugere potenciais novos tratamentos de combate ao ganho excessivo de massa adiposa em pacientes adultos aproveitando a própria maconha ou vias terapêuticas baseadas em mecanismos de bloqueio ou redução na atividade do CB1R, como tentado com relativo sucesso com o rimonabante.

          Por outro lado, esse efeito colateral da maconha não deve ser usado como desculpa para seu uso indiscriminado (recreativo), especialmente na forma de fumo e entre adolescentes. Sob acompanhamento médico e moderação, o uso da maconha medicinal em pacientes já obesos ou com sobrepeso pode trazer um balanço positivo entre benefícios e riscos caso o objetivo seja uma alternativa a outros tratamentos medicamentosos que visem o emagrecimento e controle do peso.

          Além disso, evidência mais recente tem apontado uma associação entre severidade de compulsão alimentar em certos indivíduos e uso de Cannabis (Ref.24).


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   OLHO VERMELHO E CANABINOIDES

          O fumo e outras formas de consumo da maconha é seguido por um número de sintomas como euforia, ansiedade, letargia, sonolência, confusão, falhas de memória, senso de tempo alterado, boca seca, redução de habilidades motoras e, notavelmente, um avermelhamento característico dos olhos. Ao contrário da crença popular comum de que esse efeito é devido à fumaça do fumo de maconha, o consumo oral sem fumo também leva ao mesmo efeito. Assim como a "larica", a resposta para os olhos vermelhos induzidos pela maconha são os canabinoides da Cannabis


          Os canabinoides (ex.: THC) se ligam a receptores de canabinoides presentes na estrutura ocular e induzem a dilatação dos vasos sanguíneos. Esse processo, que parece também envolver interação com o gene GAS7 (Ref.16), leva a uma redução da pressão intraocular - tão intensa quanto medicamentos para o mesmo fim (redução de até 25%) e usados no tratamento de glaucoma - assim como vasodilatação conjuntival, esta última levando ao olho vermelho (!). Aliás, essa redução na pressão sanguínea ocorre em todo o corpo, explicando também o típico sintoma de tontura (ou vertigem) durante o consumo de maconha.

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(!) Por outro lado, em experimentos com ratos, o canabidiol (CBD) - outro importante componente da Cannabis - mostrou causar um aumento na pressão intraocular de 18% por no mínimo 4 horas após o consumo (Ref.17). O pronunciado efeito vasodilatador parece ser limitado de forma importante ao THC (redução intraocular em ratos de ~28%). Portanto, pacientes com problemas oculares, como glaucoma, precisam ficar atentos ao usar produtos derivados da Cannabis. Aliás, esse achado e evidências prévias fizeram a Academia Americana de Oftalmologia a recomendar contra o uso de CBD em indivíduos sob risco de glaucoma (Ref.18). Porém, evidências experimentais na literatura acadêmica são ainda conflitantes nesse sentido, sendo incerto os reais efeitos do CBD isolado na pressão intraocular humana e de outros animais (Ref.19-20).

> Importante realçar que o efeito de redução de pressão ocular induzido pelos canabinoides da Cannabis são transitórios, durando de três a quatro horas. Indivíduos usando Cannabis para potencial tratamento de glaucoma precisariam ser expostos à droga até 8 vezes por dia, algo não tolerável pela maioria dos pacientes devido aos efeitos psicotrópicos e outros efeitos sistêmicos indesejáveis. Isso entra em contraste com outros medicamentos e intervenções terapêuticas (laser e cirurgia) mais efetivos e menos deletérios já bem estabelecidos na medicina (Ref.21). Especialistas em oftalmologia não suportam o uso de Cannabis para o tratamento de glaucoma. Isso sem contar que produtos no mercado derivados da Cannabis tipicamente não passam por rigorosas análises de qualidade, e muitos têm sido associados com significativa contaminação, doses de canabinoides diferentes das alegadas na venda e falsas alegações terapêuticas (Ref.22).

> Fumo de Cannabis é prejudicial aos olhos, e evidência recente aponta que essa forma de consumo parece acelerar o desenvolvimento de glaucoma - apesar de não aumentar o risco de glaucoma (Ref.23). Sugestão de leitura: Fumo e uso recreativo da maconha: Lobo sob pele de cordeiro
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          Relevante também mencionar que usuários de maconha frequentemente reportam 'olho seco' como outro efeito colateral indesejável. Um estudo publicado Investigative Ophthalmology & Visual Science (Ref.14) trouxe evidência apontando que receptores CB1 nas glândulas lacrimais parecem ser os responsáveis por esse efeito de secura ocular. Em específico, o THC mostrou reduzir a produção de lágrimas via ativação desses receptores em ratos machos, provavelmente via mudança na sinalização neuronal. Curiosamente, em ratos fêmeas, a ativação do CB1 leva a um aumento na produção de lágrimas, talvez devido à maior expressão de CB1 nos machos.


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   CONCLUSÃO

         O efeito de maior fome e apetite após a exposição à maconha é visto inclusive entre animais não-humanos. Tal efeito parece ocorrer via super-estimulação do receptor CB1R e através de mecanismos genéticos (transcriptoma) de plasticidade sináptica. Paradoxalmente, o uso crônico de maconha (regular e a longo prazo) resulta em um efeito contrário, ao levar a uma robusta redução na atividade do receptor CB1R. De fato, estudos diversos mostram que o risco de obesidade é reduzido substancialmente em usuários regulares da droga. No entanto, em qualquer um dos cenários, deve-se evitar o uso da maconha e extratos de Cannabis sem orientação de um profissional de saúde. O uso em adolescentes, grávidas e crianças é terminantemente não recomendado. Em relação aos olhos vermelhos induzidos pela maconha, o responsável pelo efeito também são os receptores de canabinoides, os quais induzem vasodilatação de vasos sanguíneos na estrutura ocular e, consequentemente, o avermelhamento da esclera (branco do olho)



REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. https://www.nature.com/articles/0802250
  2. https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/0269881119862526
  3. https://www.nature.com/articles/nature14260
  4. https://www.nature.com/articles/s41598-019-53516-4
  5. https://www.nejm.org/doi/10.1056/NEJMsa1909301
  6. http://annals.org/aim/article/doi/10.7326/M18-1480
  7. http://drugabuse.imedpub.com/analyses-of-the-public-health-impact-of-cannabis-must-include-the-health-benefits-of-moderate-use.php
  8. https://www.nature.com/articles/s41366-019-0334-z
  9. https://www.mdpi.com/2072-6651/11/5/275/htm
  10. Johnson et al. (2021). Cannabinoid use for appetite stimulation and weight gain in cancer care: Does recent evidence support an update of the European Society for Clinical Nutrition and Metabolism clinical guidelines? Nutrition in Clinical Practice, 36(4), 793–807. https://doi.org/10.1002/ncp.10639
  11. https://www.mcgill.ca/oss/article/did-you-know/its-not-smoke-joint-makes-your-eyes-red
  12. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK224386/
  13. Yazulla S. (2008). Endocannabinoids in the retina: from marijuana to neuroprotection. Progress in Retinal and Eye Research, 27(5):501-26. https://doi.org/10.1016/j.preteyeres.2008.07.002
  14. Thayer et al. (2020). THC Regulates Tearing via Cannabinoid CB1 Receptors. Investigative Ophthalmology & Visual Science, Vol.61, 48. https://doi.org/10.1167/iovs.61.10.48
  15. Lockery et al. (2023). The conserved endocannabinoid anandamide modulates olfactory sensitivity to induce hedonic feeding in C. elegans. Current Biology. https://doi.org/10.1016/j.cub.2023.03.013
  16. Lehrer & Rheinstein (2022). Cannabis, Intraocular Pressure, and the Growth Arrest-Specific 7 (GAS7) Gene: A Retrospective Analysis. Cureus 14(4): e23919. https://doi.org/10.7759/cureus.23919
  17. Miller et al. (2018). Δ9-Tetrahydrocannabinol and Cannabidiol Differentially Regulate Intraocular Pressure. Investigative Ophthalmology & Visual Science, Vol.59, Issue 15, 5904-5911. https://doi.org/10.1167/iovs.18-24838
  18. https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/17469899.2019.1698947
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  20. https://www.mdpi.com/1999-4923/14/12/2585
  21. Rafuse et al. (2019). Medical use of cannabis for glaucoma. Canadian Journal of ophthalmology, Volume 54, Issue 1, P7-8. https://doi.org/10.1016/j.jcjo.2018.11.001
  22. Evans, D. G. (2020). Medical Fraud, Mislabeling, Contamination: All Common in CBD Products. Missouri Medicine, 117(5): 394-399. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7723146/
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  24. Wilkinson et al. (2024). Cannabis use and binge eating: Examining the relationship between cannabis use and clinical severity among adults with binge eating. Experimental and Clinical Psychopharmacology. https://doi.org/10.1037/pha0000706
  25. Wheeler et al. (2023). Cannabis Sativa targets mediobasal hypothalamic neurons to stimulate appetite. Scientific Reports 13, 22970. https://doi.org/10.1038/s41598-023-50112-5