Por que o clitóris das fêmeas de macaco-aranha é tão grande?
Figura 1. Macaco-aranha da espécie Ateles geoffroyi. |
A família Atelidae é composta de duas subfamílias: Alouattinae e Atelinae, e nessa última temos os primatas do gênero Ateles, popularmente chamados de macacos-aranhas. Os macacos-aranhas habitam as florestas tropicais nas Américas Central e Sul, representando um dos grupos de primatas mais ameaçados de extinção dentro da região. Existem atualmente 15 espécies reconhecíveis, incluindo subespécies, no gênero Ateles, com a distribuição englobando desde o México até o norte da Bolívia. Os macacos-aranhas são quase exclusivamente arborícolas, e apenas raramente se movimentam no solo. São altamente adaptados ao ambiente no alto das árvores e são um dos maiores macacos do Novo Mundo, com uma massa corporal média de 7-8,5 kg. Possuem dieta especializada em frutas, com preferência por frutas muito maduras e fermentadas.
Mas talvez a característica mais notável desses primatas é a baixíssimo dimorfismo sexual: fêmeas e machos de macacos-aranhas são muito parecidos entre si, e isso inclui em certa extensão a genitália externa. As fêmeas possuem um "pseudo-pênis", e de forma muito similar ao observado em lêmures da espécie Lemur catta e hienas-malhadas (1).
O clitóris dos macaco-aranha fêmea não apenas é hipertrofiado como também é atravessado pela uretra e com saída na glande clitoriana. Sim, as fêmeas de macaco-aranha urinam pelo clitóris. Isso torna a estrutura clitoriana desses primatas extremamente parecida com um pênis, particularmente na parte externa e visível do órgão. E o clitóris é inclusive maior do que o pênis flácido dos machos, alcançando 4,7 cm nas fêmeas de Ateles belzebuth.
Em primatas, a vulva e a genitália masculina externa exibem grande diversidade na forma e suas características mais peculiares, como resultado primordialmente de diferentes pressões seletivas sexuais (Ref.5). Ou seja, as diferentes formas, cores e tamanhos observados na genitália dos primatas tipicamente favorecem acasalamento efetivo e reprodução.
Porém, enquanto o clitóris dos macacos-aranhas atuam no comportamento de acasalamento - liberando feromônios de sinalização sexual - e exibe variação significativa no comprimento e no formato entre as fêmeas de um mesmo grupo social, cientistas ainda não sabem ao certo o porquê da exagerada hipertrofia clitoriana.
Machos de macacos-aranhas frequentemente tocam, apertam e manipulam o clitóris das fêmeas e levam os dedos ao nariz para aparentemente avaliar receptividade sexual. Os machos também experimentam com o paladar a urina de fêmeas. É sugerido que, devido ao fato desses primatas buscarem alimento (forrageio) de maneira individualizada, fêmeas usam pequenas quantidades de urina e/ou secreções vaginais retidas no suco perineal (retroglandis) do clitóris para deixar traços de feromônios nas árvores com o objetivo de anunciar o status reprodutivo. E fêmeas parecem se deslocar mais extensivamente quando estão receptivas, depositando urina em vários lugares. Um longo clitóris pode favorecer um maior acúmulo e distribuição de urina. Durante períodos reprodutivos, comportamentos de auto-manipulação clitoriana é maior nas fêmeas de A. geoffroyi (Ref.6).
No mesmo caminho é também sugerido que o alto grau de dinâmicas de fusão-fissão na organização social dos macacos-aranhas, impedindo a associação de machos e fêmeas em grupos estáveis, favoreceu a seleção de clitóris maiores que ajudam os machos a efetivamente rastrear o status reprodutivo das fêmeas através de pistas olfativas liberadas no ambiente (Ref.7). O termo "fusão-fissão" faz referência ao método de forrageio usado por esses primatas, onde um grupo é quebrado em pequenos times - subgrupos constituídos por 2 a 17 indivíduos - para a busca de alimento (Ref.8). Esses subgrupos ficam reunidos por apenas 1-2 horas/dia. Além disso, macacos-aranhas machos ficam a maior parte do tempo separados das fêmeas - que preferem buscar alimento sozinhas ou com seus filhotes (Ref.9). Essa segregação sexual parece refletir diferentes estratégias comportamentais visando atender os requerimentos energéticos específicos de cada sexo - com machos e fêmeas ficando mais unidos apenas quando existe escassa disponibilidade de alimentos .
Por outro lado, existe uma hipótese proposta em 2008 sugerindo que o extremo tamanho clitoriano dos macacos-aranhas foi favorecido pelo monomorfismo corporal, onde machos e fêmeas são muito similares entre, incluindo no porte (Ref.10). A única parte anatômica que claramente distingue machos de fêmeas externamente é o clitóris bem visível e maior do que o pênis flácido. O clitóris hipertrofiado ajudaria na identificação de fêmeas adultas mesmo a grande distância.
Evidência observacional não parece suportar associação entre atratividade sexual das fêmeas e tamanho do clitóris (Ref.5).
O clitóris hipertrofiado da fêmea parece também manter o pênis na posição correta durante tentativas de intromissão, dificultadas pelo grande tamanho da glande peniana dos machos (Ref.11).
Clitóris hipertrofiado - mas não tão extremo e masculinizado como no caso dos macacos-aranhas - é também observado em outros quatro gêneros de macacos do Novo Mundo (Ref.5): Brachyteles, Lagothryx, Cebus e Sapajus. A hipertrofia clitoriana nesses primatas também tem sido comumente explicada como um meio para facilitar a disseminação de pistas olfativas sobre o status reprodutivo das fêmeas (Ref.12). Nos gêneros Cebus e Sapajus, o clitóris exibe um osso equivalente ao osso peniano (báculo) dos machos (2), chamado de os clitoris; é incerto se existe qualquer função no osso clitoriano desses primatas.
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Leitura recomendada:
- (1) Por que hienas-malhadas dão à luz pelo clitóris?
- (2) Por que humanos não possuem um osso no pênis?
CURIOSIDADE: O nome popular "macaco-aranha" faz referência ao modo como as longas pernas e cauda preênsil dos primatas Ateles fazem o animal lembrar uma aranha. Já o especificador do gênero (Ateles) é derivado do Latim e significa 'incompleto'. O incompleto faz referência à quase ausência do polegar nesses primatas, com persistência apenas de um dedo vestigial no lugar - outra adaptação para mais fácil movimentação arborícola. Ref.13
> Macacos-aranhas parecem ter tido papel importante também em estreitar laços entre as principais civilizações no período Clássico Inicial na Mesoamérica: Maia e Teotihuacán. Esses primatas eram considerados uma curiosidade exótica no México pré-Hispânico, e parece que eram mantidos em cativeiro, bem alimentados e transportados pelos Maias como presentes diplomáticos para serem sacrificados em rituais (Fig.5). Esses macacos são retratados na arte e no artesanato da cultura Maia. Ref.13
Leitura recomendada:
> Existe uma interessante proposta chamada "Hipótese do Macaco Bêbado" que busca explicar por que humanos gostam de bebidas alcoólicas: essa preferência alimentar teria origem em primatas frugívoros, especializados no consumo de frutas muito fermentadas e nutritivas. Um estudo de 2022 trouxe suporte para essa hipótese mostrando que o macaco-aranha A. geoffroyi tipicamente consome frutas com alto teor alcoólico, entre 1% e 2%, efetivamente metabolizando etanol para a produção de energia extra no corpo. Ref.14
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REFERÊNCIAS
- Campbell et al. (2005). Terrestrial Behavior of Ateles spp. International Journal of Primatology, 26(5), 1039–1051. https://doi.org/10.1007/s10764-005-6457-1
- Zaldaña-Orantes et al. (2021). Genetic diversity of the endangered black-handed spider monkey Ateles geoffroyi (Primates: Atelidae) in a fragmented landscape of El Salvador. Neotropical Primates, 27(1), 1-9. https://doi.org/10.62015/np.2021.v27.60
- Grant, C. E. (2023). A review of taxonomic history and phylogeography for the spider monkeys (genus Ateles), with habitat suitability modelling for Amazonian Ateles. University of Salford, Manchester [Tese]. Link do PDF
- Pastor-Nieto, R. (2000). Female Reproductive Advertisement and Social Factors Affecting the Sexual Behavior of Captive Spider Monkeys. Laboratory Primates Newsletter. Link do PDF
- Pavlicev et al. (2022). Female Genital Variation Far Exceeds That of Male Genitalia: A Review of Comparative Anatomy of Clitoris and the Female Lower Reproductive Tract in Theria. Integrative and Comparative Biology, Volume 62, Issue 3, Pages 581–601. https://doi.org/10.1093/icb/icac026
- Campbell, C. J. (2003). Patterns of behavior across reproductive states of free-ranging female black-handed spider monkeys (Ateles geoffroyi). American Journal fo Biological Anthropology, Volume 124, Issue 2, Pages 166-176. https://doi.org/10.1002/ajpa.10350
- Campbell, C. J. (2017). Hypertrophied Clitoris. The International Encyclopedia of Primatology, 1–1. https://doi.org/10.1002/9781119179313.wbprim0463
- Ramos-Fernandez et al. (2020). Collective Computation in Animal Fission-Fusion Dynamics. Frontiers in Robotics and AI, Volume 7. https://doi.org/10.3389/frobt.2020.00090
- Hartwell et al. (2014). Assessing the Occurrence of Sexual Segregation in Spider Monkeys (Ateles geoffroyi yucatanensis), Its Mechanisms and Function. International Journal of Primatology 35, 425–444. https://doi.org/10.1007/s10764-013-9746-0
- Campbell & Gibson (2008). Spider monkey reproduction and sexual behavior. Spider Monkeys, 266–287. https://doi.org/10.1017/CBO9780511721915.010
- Campbell, C. J. (2006). Copulation in free-ranging black-handed spider monkeys (Ateles geoffroyi). American Journal of Primatology, 68(5), 507–511. https://doi.org/10.1002/ajp.20246
- https://neprimateconservancy.org/geoffroys-spider-monkey/
- Sugiyama et al. (2022). Earliest evidence of primate captivity and translocation supports gift diplomacy between Teotihuacan and the Maya. PNAS, 119 (47) e2212431119. https://doi.org/10.1073/pnas.2212431119
- Campbell et al. (2022). Dietary ethanol ingestion by free-ranging spider monkeys (Ateles geoffroyi). Royal Society Open Science, Volume 9, Issue 3. https://doi.org/10.1098/rsos.211729