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Por que hienas-malhadas dão à luz pelo clitóris?

Figura 1. Pseudo-pênis ("clitóris peniano") ereto de uma hiena-malhada fêmea.

             Com origem há ~25 milhões de anos, durante o Oligoceno Tardio, as hienas (família Hyaenidae) representavam um clado altamente diverso dentro da ordem dos carnívoros (Ref.1). Durante o final do Mioceno, existiam dezenas de espécies ocorrendo ao longo da Europa, Ásia, África e América do Norte, incluindo a maior e mais famosa delas (Pachycrocuta brevirostris) que deve ter causado terror nas primeiras populações de humanos arcaicos que migraram para fora da África (Ref.2). Porém, essa alta diversidade foi dramaticamente reduzida para apenas quatro gêneros, cada um com uma única espécie: hiena-castanha (Parahyaena brunnea), hiena-riscada (Hyaena hyaena), hiena-malhada (Crocuta crocuta), e o protelo (Proteles cristata). O protelo é único entre as atuais hienas por ser insetívoro, em contraste com o hábito carniceiro das outras espécies ("quebra-ossos"). A hiena-malhada distingue-se entre as hienas quebra-ossos por exibir dieta carniceira facultativa, enquanto as outras duas espécies são carniceiros obrigatórios.


Figura 2. (A) Distribuição geográfica das atuais espécies de hienas: hiena-riscada (verde), hiena-malhada (laranja), hiena-castanha (vermelho) e protelo (azul). (B) Divergência evolutiva entre as espécies de hiena e outros mamíferos com base em análise filogenética; o protelo foi o primeiro a divergir, há ~13 milhões de anos. E repare que, ao contrário do comumente pensado, as hienas são mais próximas em termos filogenéticos dos felinos (ex.: guepardo) do que dos canídeos (ex.: dingo), apesar da aparência externa desses animais. Ref.1

Figura 3. Fotos representativas das espécies de hienas ainda existentes. As hienas-riscadas e as hienas-castanhas estão sob quase ameaça de extinção (IUCN).

            A hiena-malhada é um carnívoro de médio porte (40-80 kg) com um sistema social liderado por uma fêmea dominante. Fêmeas dessa espécie além de serem dominantes e exibirem maior porte corporal na média em relação aos machos, possuem uma característica bastante incomum entre os mamíferos: a genitália externa feminina é muito similar àquela dos machos. Em especial, o clitóris das fêmeas é bastante parecido com o pênis dos machos, como observado na Fig.3. O clitóris hipertrofiado é similar em forma e tamanho, e tanto as fêmeas quanto os machos exibem ereções - frequentemente no contexto não-sexual envolvendo "cerimônias de encontro". Aliás, as hienas-malhadas fêmeas são os mamíferos mais masculinizados atualmente conhecidos em termos de genitália externa. 


Figura 2. Hiena-malhada fêmea saciada (de "barriga cheia"). As características manchas escurecidas na pelagem dessa espécie vão desaparecendo com o avanço da idade. O pescoço e a parte dianteira do corpo mais bem desenvolvidos facilitam o arraste de carcaças para áreas mais afastadas do local de morte. Os dentes especializados em 'quebrar ossos' são representados pelos terceiros molares superior e inferior, com a força de mordida aumentando até os 5 anos de idade.


Figura 3. Visão lateral de uma (A) fêmea e de um (B) macho de hiena-malhada. O clitóris das fêmeas é um pseudo-pênis, com funções reprodutoras e excretórias. O clitóris alongado nas fêmeas possui em torno de 17 cm quando ereto e exibe uma neuroanatomia similar àquela do pênis. A glande é larga e sem ponta nas fêmeas, e gradualmente se estreita até a ponta nos machos. O pseudo-pênis das fêmeas é levemente mais curto, grosso e elástico do que o pênis dos machos. Ref.4

            Além do alongado clitóris, as hienas-malhadas fêmeas possuem as dobras urogenitais fusionadas formando um pseudo-escroto, ao invés dos lábios externos abertos de uma típica fêmea de mamífero e, nesse sentido, não exibem canal vaginal. O canal urogenital - onde passa urina e também o feto durante o parto - corre ao longo do clitóris hipertrofiado, abrindo na ponta desse último (Fig.4). A uretra corre ao longo do aspecto ventral do trato reprodutivo, conectada diretamente à abertura vaginal, e uma grande dobra de tecido parece prevenir urina de entrar na vagina. Na ausência de uma abertura vaginal, as hienas-malhadas fêmeas urinam, recebem o pênis do macho durante a copulação e realizam o parto (um ou dois filhotes de 1,5 kg cada) através do sino urogenital no clitóris (Fig.5). Sim, é como se um macho parisse pelo pênis. 


Figura 4. Desenvolvimento normal da genitália em mamíferos fêmeas na ausência de estímulo androgênico é a formação de um clitóris com orifícios uretral e vaginal independentes. Porém, esse processo não ocorre nas hienas-malhadas. Em (a), pênis de um macho ereto. Em (b), pseudo-pênis de uma fêmea ereto. Em (c), pênis flácido e escroto (saco escrotal) de um macho. Em (d), pseudo-pênis e pseudo-escroto de uma fêmea; nenhuma estrutura vulvar é observada à medida que a abertura vaginal é ausente e as dobras labiais fusionadas. Em (e), representação esquemática da anatomia interna do trato reprodutivo de uma fêmea. Abreviações: P, pênis; PC, clitóris peniano; PS, pseudo-escroto; S, escroto. Ref.5

Figura 5. Sequência de fotos mostrando uma fêmea de hiena dando a luz, onde podemos observar o filhote emergindo do clitóris. Junto com a volta de quase 180° feita pelo sino urogenital após conexão com a vagina, a passagem extremamente estreita através do pseudo-pênis torna o parto especialmente difícil nessa espécie. (Fotos: @Samuel Cox).


Figura 5. Detalhe da genitália de uma fêmea de hiena-malhada que deu à luz, mostrando a cicatriz curada (rosa) resultante do parto. O prepúcio de fêmeas sexualmente maduras é hipertrofiado em relação ao prepúcio dos machos e se torna frouxo e largo após o primeiro parto; sua abertura também é alargada. O processo de parto frequentemente resulta em lacerações da abertura do prepúcio, como mostrado na foto. Ref.4

          Enquanto a genitália externa é similar em ambos os sexos, o trato reprodutivo interno segue o padrão sexo-diferenciado observado em outros mamíferos (Fig.4). Ovidutos, útero e parte superior da vagina das hienas-malhadas segue essencialmente a configuração de outros carnívoros fêmeas. E apesar da aparência "escrotal" das dobras labiais fusionadas das hienas-malhadas (pseudo-escroto), não existem testículos nessa estrutura; fêmeas exibem ovários normais associados às tubas uterinas. Ambos os sexos também possuem extensivas glândulas anais, incluindo um par de grandes glândulas, um em cada lado do reto com numerosas glândulas médias. Essas glândulas produzem uma secreção semi-sólida, usada para marcação de território e identificação individual.

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           Aliás, importante, a distinta anatomia genital da hiena-malhada proporciona às fêmeas completo controle sobre a escolha de parceiros sexuais. Copulação dura 8-12 minutos e requer esforços coordenados de fêmeas e machos para alinhar o flácido clitóris projetado para frente e o pênis ereto. O macho precisa agachar por trás da fêmea - adotando uma postura quase vertical - e pular ao redor enquanto move de forma "cega" o pênis ereto para frente e para trás até a penetração ocorrer (Ref.4), como pode ser observado no vídeo abaixo. Nesse sentido, cooperação da fêmea é absolutamente necessária para a cópula efetiva, tornando a copulação por força fisicamente impossível nessa espécie. Inchaço tanto do clitóris quanto do pênis durante a penetração pode resultar no macho e na fêmea ficarem parcialmente grudados durante a cópula. Fêmeas podem ser acasalar com múltiplos machos durante o cio, assim como machos podem se acasalar com múltiplas fêmeas. O período de gestação dura 110 dias, e a fêmea expressa placentofagia (consumo da placenta após o parto) (1).

> No vídeo abaixo, exemplos de parto e de cópula de hienas-malhadas: 

           

(1) Leitura recomendada:


   POR QUE HIENAS POSSUEM PSEUDO-PÊNIS?

             Hienas-malhadas são os únicos mamíferos conhecidos onde a cópula e o parto ocorrem através do clitóris. O estreito caminho urogenital do pseudo-pênis nas hienas-malhadas frequentemente causa distocia (parto mais lento e difícil), principalmente nas fêmeas que nunca deram a luz, causando uma redução de quase 25% na adaptabilidade biológica dessa espécie (Ref.5). Portanto, por que fêmeas conservam essa estrutura reprodutiva aparentemente deletéria?

            Era frequentemente argumentado que exposição pré-natal de fetos fêmeas a altos níveis de andrógenos maternos, ao aumentar as chances de sobrevivência e de sucesso reprodutivo devido ao status de dominância no grupo, causaria masculinização da genitália externa como efeito colateral. O prejuízo dessa masculinização genital seria compensado com o benefícios associados à alta agressividade e status social das fêmeas.

           Porém, eventualmente foi mostrado que o desenvolvimento do "clitóris peniano" nas hienas-malhadas fêmeas não é devido a uma maior exposição de andrógenos no desenvolvimento fetal (Ref.6). A formação do pseudo-pênis é em sua maior parte independente de andrógenos ovarianos, ocorrendo inclusive antes dos testículos ou ovários fetais serem capazes de sintetizar andrógenos. Em experimentos laboratoriais, deprivação de andrógeno não impede a diferenciação do pseudo-pênis (Ref.4). 

           Alternativamente, considerando que o pseudo-pênis possa ter um papel adaptativo em si, o falo feminino pode ser: 

- um importante elemento de sinalização (estado ereto) durante complexas cerimônias de encontro entre indivíduos dominantes e subordinados;

- um meio da fêmea controlar as múltiplas cópulas;

- ou uma camuflagem (mimetismo da genitália masculina) que permitiria às fêmeas reduzir agressão de outras fêmeas dominantes. 

            Já foi também sugerido que a competição de espermatozoides entre múltiplos machos que copulam com uma mesma fêmea pode representar uma importante força seletiva nas hienas-malhadas favorecendo o pseudo-pênis. De fato, hienas-malhadas fêmeas são poligâmicas e um terço dos filhotes gêmeos possuem pais distintos (2). O trato reprodutivo das fêmeas, incluindo o pseudo-pênis, é extraordinariamente longo e complexo comparado com àquele de outros mamíferos de porte similar. Isso permitiria apenas que espermatozoides de alta qualidade alcançassem o óvulo próximo dos ovários, portanto intensificando a competição entre os espermatozoides (3).

Leitura recomendada:


          Porém, dois fatos contradizem a hipótese da competição entre espermatozoides: 

- hienas-malhadas machos possuem testículos pequenos relativo ao tamanho corporal, como observado em espécies monogâmicas; 

- o ciclo de cio das hienas-malhadas fêmeas não é sincronizado, um traço infrequente em espécies com seleção ativa de espermatozoides.

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            Portanto, a origem evolucionária do pseudo-pênis e fatores seletivos conservando esse órgão nas hienas-malhadas fêmeas ainda continua sendo uma das mais intrigantes questões na biologia e sem resolução até o momento. O mistério é intensificado devido à extrema raridade desse traço, conhecido em apenas uma única espécie.


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OUTROS FATOS:

- Em cativeiro, hienas-malhadas podem vivem 27-29 anos, com um recorde registrado de 41 anos e 1 mês. No meio selvagem, indivíduos vivem até 26 anos. Ref.4

- Hoje a população de hienas-malhadas é estimada em 27-47 mil indivíduos, com tendência de queda populacional. Caça por humanos e perda de habitat também por fatores antropogênicos são a principal causa desse declínio populacional. Aliás, hominídeos vêm matando hienas-malhadas desde o Pleistoceno, e Neandertais podem ter competido por cavernas com esses animais. Hienas-malhadas são inclusive retratadas em artes do Paleolítico. Ref.4

- Hienas-malhadas possuem um genoma com 40 cromossomos (2n), e níveis de andrógenos circulantes são similares entre machos e fêmeas. Ref.4

 - Hienas-malhadas formam complexos grupos sociais com uma rígida hierarquia linear feminina - dominados por fêmeas - onde o status social de um indivíduo estabelece sua prioridade de acesso a recursos e seu sucesso reprodutivo. Aliás, hienas-malhadas são a única espécie de hiena conhecida com comportamento social. Interações sociais são de três principais tipos: cerimônias de encontro, lutas agressivas e encontros sexuais. Cerimônias de encontro ocorrem frequentemente, são geralmente iniciadas pelo indivíduo de menor status social, e envolvem trotas olfativas de bocas e genitais assim como posturas específicas. Esses encontros promovem ligação social e cooperação. Como fêmeas são maiores e mais agressivas do que machos, tentativas de corte por machos são arriscadas e podem terminar em lutas agressivas no caso de fêmeas não-receptivas. Ref.4, 5

- Assim como as hienas-malhadas, toupeiras (ordem Eulipotyphla) fêmeas são agressivas, territoriais e possuem um clitóris similar ao pênis, atravessado pela uretra e por onde passa urina. Porém, toupeiras exibem um canal vaginal independente que fica fechado até o primeiro período de cio, quando então se abre espontaneamente permitindo penetração peniana e parto. Toupeiras e hienas são separadas [divergência evolutiva] por aproximadamente 78 milhões de anos, apontando evolução convergente de traços masculinizados nas fêmeas em termos de genitália e comportamento. Válido também notar que lêmures (superfamília Lemuroidea) fêmeas também exibem clitóris atravessados pela uretra. Ref.4, 6

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REFERÊNCIAS 

  1. Westbury et al. (2021) Ecological Specialization and Evolutionary Reticulation in Extant Hyaenidae, Molecular Biology and Evolution, Volume 38, Issue 9, Pages 3884–3897. https://doi.org/10.1093/molbev/msab055
  2. Iannucci et al. (2021). The extinction of the giant hyena Pachycrocuta brevirostris and a reappraisal of the Epivillafranchian and Galerian Hyaenidae in Europe: Faunal turnover during the Early–Middle Pleistocene Transition. Quaternary Science Reviews, Volume 272, 107240. https://doi.org/10.1016/j.quascirev.2021.107240
  3. Glickman et al. (2006). Mammalian sexual differentiation: lessons from the spotted hyena. Trends in Endocrinology & Metabolism, 17(9), 349–356. https://doi.org/10.1016/j.tem.2006.09.005
  4. Hayssen & Noonan (2022). Crocuta crocuta (Carnivora: Hyaenidae), Mammalian Species, Volume 53, Issue 1000, 17 April 2021, Pages 1–22, https://doi.org/10.1093/mspecies/seab002
  5. Jiménez et al. (2022). The Biology and Evolution of Fierce Females (Moles and Hyenas). Annual Review of Animal Biosciences, Vol. 11:141-162. https://doi.org/10.1146/annurev-animal-050622-043424
  6. Cunha et al. (2014). Development of the external genitalia: Perspectives from the spotted hyena (Crocuta crocuta). Differentiation, Volume 87, Issues 1–2, Pages 4-22. https://doi.org/10.1016/j.diff.2013.12.003