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Mulher de 80 anos com um Bebê de Pedra (Litopédio) - O que é Litopedia?

- Atualizado no dia 10 de março de 2023 -

          Em um relato de caso publicado em 2001 no periódico Clinical Anatomy (Ref.1), uma mulher Sul-Africana de 80 anos de idade apresentou-se no departamento ambulatorial com severa dor abdominal. Exame de ultrassom revelou uma grande massa ecogênica no quadrante direito superior. Um exame de raio-X demonstrou o esqueleto de um feto extrauterino totalmente desenvolvido. 

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          Com base no histórico da paciente, os médicos inferiram que o feto estava dentro da mulher há pelo menos 40 anos. A paciente morreu 2 dias depois como resultado de falha renal. Por razões sócio-culturais, a família requisitou que o feto fosse removido da paciente falecida antes do enterro. Radiografia revelou um feto coberto em um manto de calcificação. O feto estava hiperflexionado com outros sinais de morte "intrauterina". Com base na análise da dentição fetal, o feto foi estimado de ter 34 semanas no momento da morte, com as epífises obscurecidas por extensiva calcificação. Em adição à calcificação subcutânea havia extensiva calcificação visceral e intracraniana. Em outras palavras, o feto, praticamente, havia se transformado em uma 'pedra' (litopédio).



          O litopédio extraído da paciente falecida possuía dimensões em torno de 20 x 20 cm. 


   LITOPEDIA ("Bebê de Pedra")

          O termo Litopedia é derivado do Antigo Grego (Lito-, líthos: pedra e -pedia, paidion: relativo a criança muito nova), e pode ser traduzido, literalmente, para "bebê de pedra", referindo-se a um feto que passou por um processo de calcificação ou de ossificação. Essa rara condição foi primeiro descrita no século X por Albucasis (936-1013 d.C.), um médico-cirurgião do al-Andalus (áreas dominadas pelas forças Islâmicas na Península Ibérica do século VIII ao século XV). Registros arqueológicos apontam que o litopédio mais antigo conhecido data de 3100 anos atrás, do Arcaico Médio, no Texas, EUA (Ref.3). Existe recente evidência sugerindo que essa patologia é mencionada na literatura médica e em histórias da Grécia Antiga, incluindo registros escritos de Hipócrates, Aristóteles e Sorano de Éfeso (Ref.4).

          Na era moderna da medicina, a ocorrência de litopedia é extremamente rara, estimando-se que ocorra em apenas 0,0054% de todas as gestações. Desde o mais antigo caso conhecido e descrito, em 1582 na França, cerca de 330 casos dessa condição têm sido reportados. No entanto, em lugares com limitados recursos de saúde pública, médicos podem se deparar com essa rara e confusa apresentação clínica. Casos de litopedia têm sido reportados em mulheres com uma idade variando de 30 até 100 anos, e o intervalo estimado de retenção do litopédio varia de 4 a 60 anos.

           A litopedia, basicamente, representa uma condição na qual um feto morto é retido na cavidade abdominal e calcificado em variados graus. As razões para a progressão de uma litopedia incluem uma gravidez extrauterina que escapa da detecção médica, morte fetal após 3 meses de gravidez, um feto que permaneceu estéril, e condições que favorecem a deposição de cálcio. De forma geral, a litopedia pode ser entendida como um tipo raro de gravidez ectópica, e ocorre quando o feto de uma gravidez abdominal não reconhecida morre e se calcifica, e com o processo de calcificação podendo se estender para a membrana fetal e a placenta.



          A gravidez ectópica é a principal causa de morte materna no primeiro trimestre, e ocorre em 1 a 2% das gestações. Mais de 90% ocorrem nas tubas uterinas. Gravidez abdominal refere-se à gravidez ectópica implantada na cavidade peritoneal, externamente ao útero e às tubas uterinas. A incidência estimada é de 1 por 10 mil nascimentos e 1,4% das gravidezes ectópicas.

          Quando um feto morto por gravidez ectópica é muito grande e está em avançado estágio de desenvolvimento para ser reabsorvido pelo corpo da mãe, o sistema imune o trata como um corpo estranho. Isso induz a deposição e infiltração de substâncias ricas em cálcio (sais inorgânicos e orgânicos de cálcio) sobre o feto, este o qual terá seu corpo, eventualmente, transformado em uma estrutura rígida e calcificada caso tempo suficiente seja permitido. Nesse sentido, para a formação dessa estrutura, é necessário que quatro condições sejam atendidas: 

- sobrevivência do feto por mais de 3 meses, porque se a morte ocorre quando os ossos estão ainda cartilaginosos, absorção do corpo fetal será rápida e completa;

- esterilidade do feto, ou, caso contrário, o feto é destruído no processo de supuração após um abscesso ser formado, geralmente devido a infecções com a bactéria Escherichia coli;

- falha na detecção médica do feto morto e retido na cavidade abdominal;

- presença de condições favoráveis para a deposição de cálcio (Ca).

          De um ponto de vista bioquímico, o litopédio possui uma carapaça consistente em sua maior parte de constituintes inorgânicos, e, nos tecidos internos existe uma significativa depleção de potássio (K) e de cloro (Cl), significativo enriquecimento de magnésio (Mg), fósforo (P) e sódio (Na), e enorme enriquecimento de Ca (compatível com a calcificação dos tecidos). No cérebro e no fígado, ainda é possível identificar a persistência de algumas isoenzimas.

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          Essa estranha entidade ocorre com um curso clínico não-previsível. A maioria dos casos de litopedia podem permanecer assintomáticos por um longo período de tempo, ou se apresentar com persistentes ou recorrentes sintomas obstrutivos e de dor abdominal dos sistemas urinário e intestinal. A condição também pode se manifestar com complicações como abscessos pélvicos, desproporção cefalopélvica em gravidezes futuras (diâmetro da cintura pélvica menor do que o diâmetro cefálico do feto no momento do parto), extrusão de partes fetais através da parede abdominal, reto ou formação de fístula na vagina, infertilidade tubal, e malignância litopedia-induzida.

               Radiografia abdominal é útil para sugerir ou confirmar um diagnóstico de litopedia. Tomografia computacional (CT) e imagem por ressonância magnética (MRI) são capazes de alcançar um diagnóstico conclusivo, permitindo também uma caracterização mais detalhada da massa, ajudando no diagnóstico de aderência da massa, definindo o envolvimento de estruturas adjacentes, e estimando a idade gestacional do feto ao se medir o comprimento femoral. O tratamento deve ser individualizado, levando-se em conta vários fatores associados (idade da paciente, comorbidades, sintomas, etc.), e geralmente feito pela via cirúrgica (tipicamente via cirurgia laparotômica).

          Para evitar o desenvolvimento de um litopédio ou identificá-lo de forma precoce, todas as mulheres em idade reprodutiva com dor abdominal, sangramento vaginal ou anormalidades menstruais devem ser testadas para gravidez. Uma vez que a gravidez é estabelecida, a localização da gravidez (intrauterina ou extrauterina) é tipicamente feita por exame de ultrassom. A escassez de recursos e atenção médica explica o porquê da maioria dos casos pós-século XX de litopedia serem reportados em países mais pobres, geralmente subdesenvolvidos.

           Aliás, um dos casos descobertos mais recentes e chocantes de litopedia ocorreu no Senegal, e foi descrito no periódico Journal of Forensic Sciences (Ref.10). No caso, uma mulher de 72 anos de idade e sem histórico de gravidez morreu ~72 horas após levar um chute no abdômen durante uma briga. Na autópsia, os médicos encontraram um feto calcificado, peritonite generalizada aguda e perfuração ileal na cavidade abdominal. A idade gestacional do feto no momento de morte foi estimada em 37 semanas (com base no comprimento do fêmur) e o litopédio tinha uma massa de 750 g e um tamanho de 15 x 12 x 9 cm - a duração de retenção do litopédio não pôde ser determinada. Após o traumático chute, o próprio litopédio acabou causando letal perfuração intestinal e eventual morte da mulher.

           Outro caso ainda mais recente e bastante triste  foi reportado e descrito no periódico BMC Women's Health (Ref.11). A paciente, uma Congolesa de 50 anos, carregava um litopédio há 9 anos (imagem abaixo), o qual estava causando obstrução intestinal e consequente severa subnutrição, levando à sua morte. Embora a paciente sofresse com sérios sintomas há vários anos, ela tinha medo de buscar ajuda médica por ter sido vítima de estigmatização de "médicos" na Tanzânia após perda do feto na gravidez, os quais a acusaram de bruxaria e "assassina de bebê". A mulher ainda era refugiada, fugindo da guerra e violência em Burunndi, no Congo. Todo esse trauma impediu que ela inclusive aceitasse ajuda médica para remover o feto morto em seu ventre. A mulher também culpava seus sintomas como fruto de um "feitiço" lançado por alguém na Tanzânia.


Imagens de CT sagital (a) e axial (b) mostrando o 'bebê de pedra' dentro da paciente Congolesa, com sinais de obstrução intestinal. A idade fetal na morte foi estimada em 28 semanas.

           Na sua última visita a um hospital nos EUA, a Congolesa recusou cirurgia, repetindo "Eu não tenho força no coração para fazê-la". Ela assegurou aos médicos "Eu deixarei vocês saberem quando eu estiver pronta; eu não tenho medo da morte". Cerca de 14 meses depois, ela morreu de severa subnutrição em sua casa.

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        No Brasil, existem pelo menos três casos reportados na literatura acadêmica. O último foi um caso descrito em 2019 no Rio de Janeiro, de uma idosa de 71 anos com sintomas clínicos de obstrução intestinal, e da qual foi extraído um litopédio com cerca de 20 cm de diâmetro (Ref.8).


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1002/1098-2353(200101)14:1%3C52::AID-CA1009%3E3.0.CO;2-H
  2. Santoro et al. (2014). Developmental and Clinical Overview of Lithopaidion. Gynecologic and Obstetric Investigation, 78(4), 213–223.
  3. https://www.ajog.org/article/0002-9378(93)90148-C/pdf
  4. https://jmedicalcasereports.biomedcentral.com/articles/10.1186/s13256-019-2264-8
  5. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7546282/
  6. https://journalgurus.com/admin-panel/index.php/tjog/article/view/23
  7. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3979976/
  8. https://www.scielo.br/j/rbgo/a/KvJkZhYMB8CHLYTmcHr9yPG/abstract/
  9. Lopez Perez, M. M. (2022). Two Cases of lithopedion in Ancient Greece. Open Accès Journal Biomédical Science. Vol 4(2). Pág.: 1755-1757. https://digitum.um.es/digitum/handle/10201/10.38125/OAJBS.000433
  10. Gaye et al. (2022). Lithopedion as a factor in post-traumatic intestinal perforation. Journal of Forensic Sciences, Volume 67, Issue 5, Pages 2097-2100. https://doi.org/10.1111/1556-4029.15070
  11. Sous et al. (2023). A 50-year-old refugee woman with a lithopedion and a lifetime of trauma: a case report. BMC Women's Health 23, 89. https://doi.org/10.1186/s12905-023-02244-z