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Pedras da vesícula de boi possuem suporte científico para uso medicinal?

Figura 1. À esquerda, pedras de boi naturais; à direita, o símbolo do Yin e Yang.

          A "pedra de boi" (niu-huang, 牛黃), ou também chamada de pedra de fel, é um cálculo biliar que se forma quando o fígado bovino está desequilibrado e não funciona como deveria. Colhida tipicamente durante o abate nos frigoríficos, cada grama pode ser comercializada a R$ 300 no mercado brasileiro (Ref.1). Ou seja, o quilo custa, em média, R$ 300 mil. A demanda é alta na comunidade Chinesa, no Japão e no mercado de Hong Kong, e preços internacionais de venda podem variar em torno de US$65 a grama, com pequenas pelotas de 3 gramas do produto natural podendo custar próximo de USS$200 (Ref.2).

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           Quando o boi ou vaca domesticada (Bos taurus domesticus) é abatido, a vesícula biliar do animal é removida e a bile é filtrada, com potenciais pedras vesiculares retidas, limpadas e secadas. Antes da secagem, as "pedras" são moles e variam bastante de tamanho e formato: podem ser esféricas ou irregulares, com diâmetro de 1-4 cm, e são frágeis (não podem ser apertadas, ou podem desmanchar) e pouco densas. A cor externa dessas pedras variam de amarelo-amarronzada até vermelho-amarronzada. Como é um processo patológico no bovino, essas pedras são raras, sendo estimado que estão presentes em apenas 1 boi para cada 2000 abatidos (Ref.3). Para atender a alta demanda do produto no mercado Asiático, existem três métodos complementares e alternativos de produção - porém menos valorizados no mercado: 

- Pedra [ou cálculo] de boi artifactus: Composta de pó seco de bile bovina, ácido cólico, ácido deoxicólico, taurina, bilirrubina, colesterol, elementos traços, entre outros.

- Pedra [ou cálculo] de boi sativus: É similar ao artifactus, mas a formação das pedras ocorre in vitro a partir de bile fresca bovina junto com ácido cólico, ácido deoxicólico e agentes complexantes [que interagem com a bile]. 

- Cultura de pedra [ou cálculo] de boi: Resulta da implantação cirúrgica de um objeto estranho na vesícula biliar do bovino para a geração induzida de cálculos biliares.

Figura 2. (A-C) Pedras de boi naturais. (D) Pedra de boi artificial (artifactus). Devido à alta procura e valorização, falsificações de pedras com matérias-primas diversas são também comuns. Ref.3

          As pedras de boi naturais [patológicas] contém várias substâncias, e "princípios ativos" realçados incluem ácidos biliares, bilirrubina, taurina, colestenos e aminoácidos. Os bioativos considerados mais importantes são os ácidos biliares e a bilirrubina. 

          Vendidas e usadas de forma isolada ou combinadas com outros ingredientes, as pedras de boi são amplamente usadas na medicina tradicional Chinesa, onde são alegados inúmeros benefícios de uso, desde efeitos analgésicos até melhora ou cura de doenças cardiovasculares, cânceres e problemas neurológicos. Asma, problemas digestivos, estresse oxidativo, doenças renais e hepáticas, alergias, epilepsia... tudo parece ser potencialmente resolvido ou melhorado com o uso de pedras de boi. Daí o alto preço de mercado desse produto.

          Mas existe suporte científico para essas alegações?

          A medicina tradicional Chinesa é um sistema terapêutico usado para diagnosticar, tratar e prevenir doenças, e com um histórico milenar de uso. É um sistema baseado na crença de um "yin e yang", ou seja, estados de energias opostas, como felicidade e tristeza. Quando o yin e yang está equilibrado, a pessoa se sente relaxada e energizada. Fora de um balanço (desequilíbrio), no entanto, o yin e yang afeta negativamente a saúde. Os praticantes também acreditam que existe um força vital ou energia - conhecida como Qi - em todos os corpos. Para o ying e yang estar balanceado, o Qi deve fluir livremente no corpo; quando existe pouco ou muito Qi nos caminhos corporais de energia (meridianos), ou quando o fluxo de Qi é bloqueado, temos o desenvolvimento de doenças.

          Nesse sentido, a medicina tradicional Chinesa - através de várias técnicas (ex.: acupuntura) e produtos naturais (ex.: ervas) - busca promover o fluxo natural de Qi e reestabelecer o equilíbrio do yin e yang. 

           No contexto da medicina Ocidental e moderna, grande parte da medicina tradicional Chinesa é considerada pseudociência, e vários dos benefícios terapêuticos observados em certas condições (ex.: dores crônicas) podem ser explicados pela ação do placebo (1). Para piorar, muitos dos ingredientes usados nesse tipo de medicina alternativa têm contribuído para sérios prejuízos ecológicos, e podemos citar os chifres de rinocerontes (2), marfim de elefantes (3) e escamas de pangolins (4).

Para mais informações:


           Com uso tradicional podendo ser traçado até >2 mil anos atrás na China, trabalhos fornecendo suporte científico de eficácia para as pedras de boi são limitados a publicações em periódicos de baixa qualidade e enviesados, geralmente restritos a experimentos in vitro e in vivo, e conduzidos por pesquisadores ligados à medicina tradicional Chinesa. Estudos clínicos de alta qualidade são muito escassos ou inexistentes. Aliás, não parecem existir relevantes trabalhos científicos Ocidentais explorando o alegado poder medicinal das pedras de boi, muito menos publicados em periódicos médicos de alto impacto. Somando-se a isso, os principais componentes das pedras de boi são também produzidos no nosso corpo ou consumidos na dieta, como ácidos biliares, aminoácidos e bilirrubina.

          Parece ser similar ao caso dos chifres de rinocerontes, formados basicamente por queratina, a mesma proteína das nossas unhas, e, mesmo assim, altamente valorizados no mercado ilegal por causa de supostos "poderes medicinais" baseados em antigas crenças.


REFERÊNCIAS

  1. https://globorural.globo.com/pecuaria/noticia/2024/01/pedra-preciosa-encontrada-na-vesicula-dos-bois-custa-r-3-milhoes-o-quilo-conheca.ghtml
  2. https://fas.usda.gov/data/hong-kong-lucrative-market-ox-gallstones
  3. Yu et al. (2020). Calculus bovis: A review on traditional usages, origin, chemistry, pharmacological activities and toxicology. Journal of Ethnopharmacology, 112649. https://doi.org/10.1016/j.jep.2020.112649
  4. https://www.nccih.nih.gov/health/traditional-chinese-medicine-what-you-need-to-know
  5. https://www.mountsinai.org/health-library/treatment/traditional-chinese-medicine
  6. https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0378874121007364
  7. https://jbiomedsci.biomedcentral.com/articles/10.1186/1423-0127-17-S1-S44
  8. Wang et al. (2022). Network pharmacology-based approach to evaluate the effect and predict the mechanism of Calculus bovis against oral ulcers. Pharmacological Research - Modern Chinese Medicine, Volume 3, 100098. https://doi.org/10.1016/j.prmcm.2022.100098
  9. Wang et al. (2023). Research status of Bovis Calculus and relevant Chinese patent medicines based on bibliometric analysis. Materia Medica, 48(8):2092-2102. https://doi.org/10.19540/j.cnki.cjcmm.20230111.101