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Aquecimento global pode causar um apocalipse de fungos patogênicos, alertam cientistas

- Atualizado no dia 3 de abril de 2023 -

          A recente série no canal HBO adaptando uma aclamada franquia de jogos de videogame ("The Last of Us") retrata um cenário distópico onde um fungo evoluiu resistência a altas temperaturas e alta virulência em humanos, transformando pessoas em zumbis e alterando o comportamento dos infectados no sentido de aumentar o potencial de transmissibilidade (ex.: atacam humanos para infectá-los com esporos do fungo) (1). É também sugerido na série que o aquecimento global teve papel crucial na emergência desse fungo patogênico. Apesar da premissa do show parecer totalmente fantasiosa à primeira vista, a questão central do argumento é suportada por robusta base científica. Tirando a parte dos zumbis, é real a preocupação dos cientistas com fungos evoluindo sob um clima terrestre cada vez mais quente.

(1) Leitura recomendada: Apenas fungos parasitas controlam o comportamento de hospedeiros?

          Aliás, já existem evidências científicas de sérios patógenos fúngicos emergentes como resultado das atuais mudanças climáticas, incluindo espécies dos gêneros Cryptococcus e Candida

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   FUNGOS E MUDANÇAS CLIMÁTICAS

           O papel das mudanças climáticas na emergência e re-emergência de doenças infecciosas está cada vez mais sendo reconhecido (1). O excesso de gases estufas na atmosfera (ex.: dióxido de carbono) emitidos pelas atividades humanas têm continuamente aumentado a temperatura média da superfície terrestre e de forma acelerada (2), resultando em preocupantes mudanças climáticas e eventos temporais extremos mais frequentes e intensos. Em particular, essas mudanças no clima, e o aquecimento atmosférico em si, podem criar pressões ambientais fomentando novas doenças causadas por fungos. Enquanto doenças virais e bacterianas recebem a maior parte da atenção como potenciais causas de pragas e pandemias - especialmente quando lembramos da Peste Negra (3), varíola, Gripe Espanhola e, mais recentemente, do COVID-19 -, fungos podem impor ameaça igual ou até maior: não existem vacinas disponíveis contra patógenos fúngicos, o arsenal de medicamentos antifúngicos é extremamente limitado e fungos podem viver de forma saprotrófica (alimentando-se de matéria orgânica morta ou em decomposição). Aliás, fungos são capazes inclusive de causar completa extinção de hospedeiros.


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           Durante 1 bilhão de anos de evolução, fungos não apenas se tornaram mestres de sobrevivência, mas também se aproveitaram de desastres. Há cerca de 65 milhões de anos, quando um grande asteroide atingiu a Terra e varreu ~70% de toda a vida no planeta ao enviar detritos de poeira na alta atmosfera, fungos resistiram, aproveitando-se da enorme quantidade de plantas morrendo e apodrecendo na superfície terrestre devido à dramática redução de incidência da radiação solar. Nessa época, fungos também infectaram e mataram répteis em massa, potencialmente contribuindo para a extinção dos dinossauros não-avianos. Em contraste, fungos não foram capazes de sobreviver às altas temperaturas do corpo de mamíferos e, portanto, potencialmente contribuíram para a sucessão dos mamíferos como os novos organismos dominantes na Terra. O mesmo provavelmente foi válido para os dinossauros terópodes avianos que escaparam do evento de extinção, onde evidências acumuladas fortemente sugerem que esses animais eram endotérmicos, similar às aves modernas.  

           De fato, organismos fúngicos são especialmente sensitivos a extremos climáticos, e a maioria das espécies de fungos não podem tolerar as altas temperaturas no corpo de mamíferos, e mesmo aqueles com potencial patogênico têm sido historicamente limitados em termos de patogenicidade pela assim chamada "barreia térmica da endotermia" (Ref.2). Entre 30% e 60% da população em geral possuem espécies de Candida na cavidade oral (4) e, a cada dia, cada um de nós respira de centenas a milhões de esporos de Aspergillus. Embora esses fungos de importância médica causem milhões de infecções e milhares de mortes anualmente ao redor do mundo, esses casos são limitados, em geral, a indivíduos imunocomprometidos (5) ou em grande parte estão associados a doenças de leve a moderada virulência e muitas vezes afetando apenas a superfície corporal (ex.: micoses na pele). Preocupações maiores com fungos em indivíduos saudáveis se limitam atualmente a espécies tóxicas (ex. ingestão acidental de cogumelos venenosos ou mofo na comida) ou indiretamente em relação a espécies que causam sérios impactos em plantas (no caso, perdas agrícolas).


Fungos são organismos eucariontes (com células muito similares àquelas de humanos) unicelulares ou multicelulares. O número de espécies fúngicas impondo ameaças a humanos, direta ou indiretamente, representa cerca de 10% das ~140 mil espécies hoje conhecidas de fungos. Alguns exemplos de fungos perigosos à humanidade: (A) Branqueamento inicial da planta do tomate causado pelo fungo Alternaria alternata; (B) corpos frutíferos (cogumelos) da espécie Amanita exitialis, um dos mais letais cogumelos venenosos conhecidos; (C) cogumelos da icônica espécie Amanita muscaria, também muito tóxica; (D) hifas e esporos de Alternaria alternata, um mofo comum no ambiente capaz de causar alergias e infecções em humanos assim como doenças severas em dezenas de plantas; (E) colônia do levedo Candida auris, um sério patógeno emergente; (F) colônia do mofo A. fumigatus, também comum no ambiente doméstico e causador de alergias e diversas infecções invasivas em humanos. Xu, J., 2022

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          Porém, várias espécies fúngicas possuem a capacidade de desenvolver termotolerância, e à medida que a temperatura ambiente aumenta devido ao aquecimento global antropogênico, um maior número de espécies patogênicas inofensivas ou pouco virulentas podem se tornar infecciosas ou mais virulentas. Nesse contexto, o mar de esporos fúngicos que continuamente entra no nosso corpo pode começar a se tornar um sério problema, e um cenário apocalíptico similar ao jogo The Last of Us - onde pessoas precisam estar usando continuamente máscaras de proteção contra esporos no ar - torna-se mais plausível. E esse cenário tornaria mortal o ambiente para indivíduos imunocomprometidos e durante pandemias com patógenos virais e bacterianos.

            Um exemplo notável e atual nesse sentido provavelmente pode ser apontado com a espécie Candida auris, primeiro identificada em 2009 em uma paciente em Tóquio, Japão, com infecção no ouvido (Ref.4). Desde então, a C. auris tem se espalhado a elevadas taxas ao redor do mundo, com relatos de casos em todos os continentes e impondo pesado fardo em ambientes hospitalares. Pouco é esclarecido sobre a origem dessa espécie, no entanto, seus parentes filogenéticos têm sido isolados do ambiente e aparentemente foi primeiro dispersada por aves. Cientistas acreditam que esse é o primeiro "novo" patógeno a evoluir em resposta ao aquecimento global, ganhando tolerância a mais altas temperaturas em potenciais hospedeiros (mamíferos e aves). Em humanos, essa espécie pode se espalhar nos órgãos internos através da circulação sistêmica, efetiva infecção está associada com alta mortalidade (23–67%), é facilmente transmitida e, para piorar, é resistente a vários agentes antifúngicos (Ref.5). Aliás, a incidência de candidíase invasiva aumentou 15-20 vezes nas últimas duas décadas, evento associado com a emergência de várias espécies de Candida (Ref.6).



          O CDC Norte-Americano classifica o C. auris como uma "ameaça urgente", o mais alto nível de preocupação. Primeiro identificado nos EUA em 2016, um estudo publicado recentemente no periódico Annals of Internal Medicine (Ref.) encontrou que enquanto houve um aumento de 44% dos casos clínicos em 2019, em 2021 esse aumento foi de 95% no território estadunidense, e que o número de cepas resistentes a tratamentos de primeira linha em 2021 era cerca de 3 vezes aquele em cada um dos 2 anos prévios. Para casos suspeitos de infecção com o fungo, houve um aumento de 200% em 2021. E casos clínicos podem estar sendo significativamente subestimados. Segundo os autores do estudo, as pressões sobre o sistema de saúde durante a pandemia de COVID-19 podem ter contribuído para exacerbar a disseminação do C. auris, e medidas urgentes são necessárias para detectar e prevenir infecções com o fungo patogênico.

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>   As mudanças climáticas também acabam aumentando o alcance geográfico para várias espécies de fungos, expondo populações humanas vulneráveis a infecções fúngicas, fomentando fluxo genético entre espécies distintas (ex.: hibridizações), e aumentando o risco para a emergência de novas e mais perigosas espécies patogênicas. Eventos temporais extremos mais frequentes e intensos (ex.: furacões, tempestades e inundações) podem dispersar e aerossolizar espécies previamente muito raras ou desconhecidas que podem ser muito [ou potencialmente muito] patogênicos no corpo humano. 
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   ELEMENTOS TRANSPONÍVEIS

           Recentemente, um estudo publicado no periódico PNAS (Ref.8) reforçou o alerta sobre a evolução fúngica sob um cenário de temperaturas cada vez mais altas na superfície terrestre. No estudo, pesquisadores da Escola de Medicina da Universidade de Duke, EUA, mostraram que o fungo patogênico Cryptococcus deneoformans, quando submetido a um estresse térmico (aumento de temperatura no ambiente), ativa respostas adaptativas exageradas, com subsequente aumento no número de mudanças genéticas - potencialmente associadas com uma maior resistência a altas temperaturas e maior virulência.

           Especificamente, exposição a mais altas temperaturas fez com que mais elementos transponíveis ("genes saltantes") se movessem no DNA do fungo, levando a mudanças em como os genes eram usados e regulados.


Fotomicrografia mostrando células do fungo Cryptococcus deneoformans. CDC/EUA

           A transição do ambiente para um hospedeiro de sangue quente requer rápida adaptação para uma variedade de estresses, incluindo alta temperatura. Para o gênero Cryptococcus, e outras espécies patogênicas de fungos, a habilidade de tolerar estresse térmico é crítica para virulência; aqueles fungos incapazes de suportar altas temperaturas são incapazes de causar doença. Estresse térmico induz ativação de genes específicos e também mudanças espontâneas no DNA que permitem ao Cryptococcus sobreviver no hospedeiro. As mudanças espontâneas nos genomas de eucariontes podem ser mediadas, entre outros mecanismos, por elementos transponíveis. Esses elementos são sequências "egoístas" de DNA presentes na maioria dos genomas que podem ser inseridas dentro ou entre regiões codificadoras de genes, levando à disrupção ou alteração da expressão de genes (6).


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          Elementos transponíveis representam ~5 a 6% do genoma dos fungos Cryptococcus e a maioria são sequências retrotransponíveis localizados nos centrômeros de cada cromossomo.

         No estudo, os pesquisadores usaram uma técnica aprimorada de sequenciamento de DNA de 'leitura-longa' e análise computacional para investigar de forma detalhada mudanças genéticas associadas com elementos transponíveis resultantes de respostas ao estresse térmico induzido em laboratório. Acompanhando 800 gerações de crescimento em placa nutritiva da espécie C. deneoformans, a taxa de mutações de elementos transponíveis foi 5 vezes maior nos fungos crescendo em um ambiente de temperatura corporal típica de humanos (37°C) quando comparado com fungos crescendo sob 30°C. 

         Um dos elementos transponíveis observados mudando sob o estresse térmico, chamado de T1, mostrou uma tendência de inserir a si mesmo entre genes codificantes, potencialmente levando a mudanças no modo como os genes são controlados. Um elemento chamado Tcn12 exibiu atividade fortemente dependente da temperatura e frequentemente era inserido dentro da sequência de um gene, potencialmente causando disrupção nas funções do gene e possivelmente levando a resistência medicamentosa. E um terceiro tipo, Cnl1, tendia a ser copiado (cópias de novo) e a ser inserido próximo ou dentro de sequências teloméricas nas terminações dos cromossomos, um efeito com implicações incertas para a biologia desses fungos.

          Os pesquisadores também conduziram experimentos in vivo, infectando ratos com esses fungos. A mobilização de elementos transponíveis mostrou ser maior nos fungos vivendo nos roedores do que naqueles crescendo em placas nutritivas, com os três elementos destacados (T1, Cnl1 e Tcn12) sendo mobilizados dentro de apenas 10 dias de infecção. Isso sugere que outros fatores de estresse dentro do corpo de hospedeiros (ex.: sistema imune) podem fomentar a mobilização dos elementos transponíveis além do fator térmico.

          Somados, os achados fortemente sugerem que a mobilização de elementos transponíveis é uma estratégia adaptativa para aumentar as chances de sobrevivência e a patogênese do C. deneoformans - e provavelmente de outros fungos - tanto no ambiente quanto dentro do corpo de hospedeiros endotérmicos, alterando rapidamente a estrutura genômica para esses fins.

          "Esse é um fascinante estudo, o qual mostra como aumentar a temperatura global pode afetar a evolução fúngica em direções imprevisíveis," disse o Dr. Aruturo Casadevall, do departamento de Microbiologia e Imunologia da Universidade Johns Hopkins, em entrevista ao jornal da Universidade de Duke (Ref.9). "À medida que o mundo fica mais quente, elementos transponíveis em fungos no solo como o Cryptococcus deneoformans podem ser tornar mais móveis e aumentar mudanças genômicas no sentido de aumentar virulência e resistência a medicamentos. Uma coisa a mais para se preocupar com o aquecimento global!"

          Comentando sobre o estudo e mencionando a série The Last of Us, um dos autores do estudo, a Dra. Asiya Gusa, do departamento de Genética Molecular e Microbiologia da Universidade de Duke, disse em entrevista (Ref.9): "Isso é exatamente o tipo de coisa que eu estou falando [cenário apocalíptico de pandemia fúngica] -- menos a parte dos zumbis!"


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. Carter & Nnadi (2021). Climate change and the emergence of fungal pathogens. PLOS Pathogens, 17(4): e1009503. https://doi.org/10.1371/journal.ppat.1009503
  2. Hoenigl, M. (2022). When disaster strikes fungi take control. The Lancet Respiratory Medicine, Volume 10, Issue 12, P1104-1106. https://doi.org/10.1016/S2213-2600(22)00268-5
  3. Xu, J. (2022). Assessing global fungal threats to humans. mLife, Volume 1, Issue 3, Pages 223-240. https://doi.org/10.1002/mlf2.12036 
  4. Sanyaolu et. (2022). Candida auris: An Overview of the Emerging Drug-Resistant Fungal Infection. Infection & Chemotherapy, 54(2):236-246. https://doi.org/10.3947%2Fic.2022.0008 
  5. Sharma & Chakrabarti (2023). Candidiasis and Other Emerging Yeasts. Current Fungal Infection Reports. https://doi.org/10.1007/s12281-023-00455-3
  6. Ashkenazi-Hoffnung et al. (2023). Navigating the New Reality: A Review of the Epidemiological, Clinical, and Microbiological Characteristics of Candida auris, with a Focus on Children. Journal of Fungi, 9(2), 176. https://doi.org/10.3390/jof9020176
  7. Almaguer Chávez, M. (2022). Thermotolerance and Adaptation to Climate Change. In: Frías-De-León, M.G., Brunner-Mendoza, C., Reyes-Montes, M.d.R., Duarte-Escalante, E. (eds) The Impact of Climate Change on Fungal Diseases. Fungal Biology. Springer. https://doi.org/10.1007/978-3-030-89664-5_3
  8. Jinks-Robertson et al. (2023). Genome-wide analysis of heat stress-stimulated transposon mobility in the human fungal pathogen Cryptococcus deneoformans. PNAS, 120 (4) e2209831120. https://doi.org/10.1073/pnas.2209831120 
  9. https://today.duke.edu/2023/01/warmer-climate-may-drive-fungi-be-more-dangerous-our-health
  10. Lyman et al. (2023). Worsening Spread of Candida auris in the United States, 2019 to 2021. Annals of Internal Medicine. https://doi.org/10.7326/M22-3469