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O que é uma Fístula Cutânea Odontogênica?

Fig.1. (A) Lesão no queixo da paciente e (B) dente afetado mandibular (descolorido).

          Uma mulher previamente saudável de 42 anos de idade apresentou-se à clínica odontológica com um histórico de 6 meses de inchaço e dor no lado direito do queixo, incluindo uma lesão/buraco nessa região que emergiu "do nada" (foto A). A paciente não reportou histórico de trauma no queixo, dor de dente ou febre, mas lembrou de ter fraturado seu incisivo lateral direito 10 anos atrás. Apalpamento da lesão causava dor e liberação de fluido serossanguíneo. Exame intraoral mostrou descoloração do incisivo mandibular lateral direito (foto B).

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          Com base no quadro clínico da paciente, um diagnóstico de fístula cutânea odontogênica foi feito. O relato de caso foi reportado no periódico The New England Journal of Medicine (Ref.1).


   FÍSTULA CUTÂNEA ODONTOGÊNICA

          Uma fístula é um caminho patológico anormal entre dois espaços anatômicos ou um caminho que leva de uma cavidade interna ou órgão até a superfície do corpo. Uma fístula odontogênica cutânea (FCO) é uma comunicação patológica entre a superfície cutânea do rosto e a cavidade oral. Apesar da condição ser bem documentada e reportada na literatura médica, é de rara ocorrência e frequentemente é diagnosticada de forma errônea (ex.: infecção bacteriana na pele).

            À medida que a lesão cutânea se desenvolve, geralmente não é ligada a problemas dentários como causa, especialmente na ausência de sintomas dentais, e os indivíduos afetados tipicamente procuram diagnóstico e tratamento com um dermatologista ou médico geral. Isso muitas vezes leva à prescrição incorreta e/ou desnecessária de múltiplos antibióticos, excisão cirúrgica e de biópsias. Já foi estimado que ~50% dos pacientes com fístulas cutâneas odontogênicas são submetidos a múltiplas operações cirúrgicas dermatológicas e terapias de longo prazo com antibióticos antes de um diagnóstico correto ser estabelecido (Ref.2). Atraso no diagnóstico pode levar a significativas deformidades cosméticas (secundárias ao processo de cicatrização cutânea) ou mesmo disseminação da infecção para outros espaços faciais e até mesmo avançar profundamente no pescoço e na cabeça. Identificação de um dente descolorido, móvel ou careado precisa levantar suspeita de uma origem odontogênica de lesões anômalas no rosto.

           Uma FCO geralmente emerge como uma sequela de invasão bacteriana na polpa dental e infecção crônica da raiz através de uma quebra no esmalte e na dentina causada por lesão de cárie (1), trauma (ex.: fratura no dente), ou outras causas. Se tratamento não for iniciado nesse estágio, a polpa se torna necrótica e a infecção se espalha além do confinamento do dente para dentro da área peri-radicular, resultando em periodontite apical. Esse processo inflamatório - durante meses - leva a reabsorção óssea que que subsequentemente disseca ao longo do caminho de mínima resistência e irrompe na pele. Na superfície cutânea, a condição se manifesta como uma depressão ("covinha") (2), nódulo, úlcera, abcesso ou cisto sobre o queixo, mandíbula ou outros locais do rosto. 

  

Fig.2. Indivíduo de 18 anos do sexo masculino com uma fístula cutânea odontogênica no lado esquerdo da bochecha. O paciente havia sido tratado incorretamente por vários meses com antibióticos, sem sucesso. Uma lesão com casca de ~0,8 cm de diâmetro é observada (seta amarela) e exame intraoral mostrou baixa higiene oral e cáries no segundo pré-molar esquerdo inferior. Samir et al., 2011

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          A lesão clássica da FCO é caracterizada por um nódulo simétrico, eritematoso e liso, com um diâmetro de 1-20 mm e exibindo ou não drenagem (Fig.3). Estudos reportam que a origem da fístula (trajetos fistulosos) em 80-87% dos casos são dentes inferiores (mandibulares), com o restante dos casos com origem nos dentes inferiores (maxilares) (Ref.4). Histórico de dor dental é reportado por apenas ~50% dos pacientes afetados (Ref.5).

 

Fig.3. (a) Uma fístula cutânea odontogênica na sua mais frequente localização, a mandíbula, junto com a presença de um nódulo, a morfologia mais comum. (b) Dente causativo com a presença de detritos purulentos. (c) Ortopantomografia mostra duas áreas de radioluscência no ápice do dente afetado. Guevara-Gutiérrez et al., 2013

 

Fig.4. (a) Úlcera é uma forma incomum de apresentação, como nesse caso envolvendo um adolescente de 15 anos de idade. (b) A fístula emergiu na bochecha como resultado de um processo inicial de cárie. Guevara-Gutiérrez et al., 2013

 

Fig.5. (a) Localização de uma fístula na área paranasal, (b) com a raiz dental afetada localizada no maxilar (apesar da ausência de dente na região). Guevara-Gutiérrez et al., 2013


           Uma vez diagnosticada, o tratamento da condição é simples e efetivo, consistindo da remoção do tecido da polpa infectada e preenchimento do canal da raiz com material biocompatível. Geralmente, antibióticos sistêmicos são desnecessários, devido ao fato da lesão ser uma entidade localizada, mas esses medicamentos devem ser considerados em pacientes com diabetes, imunossupressão ou sinais de infecção sistêmica. 

          Uma vez resolvida a fístula, a lesão cutânea é curada sem tratamento adicional, tipicamente em 1 a 2 semanas. Cicatrizes residuais podem ser cirurgicamente resolvidas caso resultem em incômodo cosmético para o paciente. 

> Diagnóstico diferencial inclui micose subcutânea, actinomicose, osteomielite, neoplasias (como carcinoma basocelular ou carcinoma espinocelular), cistos epidérmicos, granulomas piogênicos e de corpo estranho, linfadenite supurativa, fístula de glândula salivar e infecção tuberculosa.


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. https://www.nejm.org/image-challenge
  2. Samir et al. (2011). Odontogenic Cutaneous Fistula. Sultan Qaboos University Medical Journal, 11(1): 115–118. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/21509218
  3. Claudia et al. (2021). Odontogenic Cutaneous Fistula: A Case in Aged Patient With Delayed Diagnosis. Journal of Craniofacial Surgery 32(4):p e340-e342. https://doi.org/10.1097/SCS.0000000000007114
  4. Guevara-Gutiérrez et al. (2013). Odontogenic cutaneous fistulas: clinical and epidemiologic characteristics of 75 cases. International Journal of Dermatology, 54(1), 50–55. https://doi.org/10.1111/ijd.12262
  5. Ohta & Yoshimura (2019). Odontogenic cutaneous fistula of the face. CMAJ, 191 (46) E1281. https://doi.org/10.1503/cmaj.190674
  6. http://www.anaisdedermatologia.org.br/pt-utilidade-da-ultrassonografia-alta-frequencia-articulo-S2666275221000242