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Emergente e letal ameaça em pacientes com COVID-19: Infecção oportunista com fungos

- Atualizado no dia 17 de março de 2022 -

          Aqui no Brasil, a crise epidêmica da COVID-19 continua fora de controle, e, diariamente, dezenas de milhares de pessoas continuam sendo hospitalizadas, com milhares delas eventualmente morrendo. Porém, nem todas as mortes estão ligadas diretamente ao novo coronavírus (SARS-CoV-2). Perigosas infecções secundárias por patógenos oportunistas (ex.: vírus e bactérias) nas unidades de tratamento intensivo (UTI) são comuns, e mais recentemente médicos e especialistas estão levantando o alarme sobre duas particulares ameaça microbiológica aos pacientes com COVID-19: fungos altamente prevalentes no ambiente, especialmente aqueles do gênero Aspergillus. Na Índia, em meio ao recente descontrole epidêmico da COVID-19, vários reportes têm sido feitos de pacientes desenvolvendo mucormicose ('Fungo Preto'), frequentemente levando à perda de um olho e/ou a óbito. Identificar os pacientes co-infectados com esses fungos e trata-los de forma adequada com antifúngicos pode salvar muitas vidas.

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   ASPERGILLUS E ASPERGILOSE 

          Espécies no gênero Aspergillus são fungos filamentosos saprofíticos (alimentam-se absorvendo substâncias orgânicas normalmente provenientes de matéria orgânica em decomposição) que são mais comumente encontrados em solos e ambientes de acúmulo de lixo em latitudes temperadas quentes e subtropicais (Ref.1). Inalação de esporos assexuados produzidos pelo Aspergillus fumigatus e algumas outras espécies nesse gênero causam um grupo de doenças coletivamente referidas como aspergilose



          A mais severa forma de aspergilose é a aspergilose invasiva, a qual primariamente afeta indivíduos com o sistema imune comprometido e condições pulmonares pré-existentes. Como medicamentos visando a apergilose invasiva não são sempre efetivos devido a uma falta de entendimento de como esses fungos patogênicos funcionam dentro do hospedeiro humano e à evolução de resistência aos antifúngicos, indivíduos infectados sofrem altas taxas de morbidade e de mortalidade. 

          Coletivamente, fungos do gênero Aspergillus afetam milhões de pacientes e causam centenas de milhões de graves infecções todos os anos. É praticamente impossível evitar esses fungos devido ao fato deles produzirem em todo lugar esporos que flutuam no ar, sendo estimado que nós respiramos centenas a milhares ou mais desses esporos diariamente. 

          Nem todas as espécies de Aspergillus exibem as mesmas taxas de infecção. Aproximadamente 70% de todas as infecções por esses fungos são causadas pela espécie A. fumigatus (!). Na verdade, a maioria das espécies do gênero Aspergillus, incluindo várias próximo-relacionadas às espécies patogênicas, ou não são patogênicas ou muito raramente causam doenças. Algumas espécies, incluindo a A. fumigatus, causam infecções oportunísticas, principalmente em mamíferos e aves, e ocasionalmente em outros vertebrados e invertebrados. 

(!) Leitura recomendadaMecanismo de defesa usado por fungo causador de doença pulmonar invasiva é descrito

          Os fungos do gênero Aspergillus também podem crescer em espaços de armazenamento de grãos, e algumas espécies produzem toxinas que podem causar prejuízos à saúde humana e de outros animais, levando a hepato- e nefrotoxicidade, imunossupressão e carcinogenicidade (Ref.2). 

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   ASPERGILOSE E COVID-19 

          As infecções causadas pelo SARS-CoV-2 podem causar severa doença respiratória com alta taxa de admissões em UTIs. Infecções bacterianas e fúngicas são complicações da COVID-19 severa devido aos graves danos no tecido pulmonar, tempestade de citocinas e imuno-paralisias causadas pela síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA). Aspergilose pulmonar invasiva têm sido reportada atuando de forma oportunística junto a outros vírus respiratórios, como os vírus Influenza (gripe). Nesse caso, fatores de risco são cânceres hematológicos, recipientes de transplantes de órgãos sólidos, estadia na UTI, diabetes, doença obstrutiva pulmonar crônica, administração sistêmica de corticosteroides ou doença renal crônica, entre outros. E vários desses fatores de risco são compartilhados pela COVID-19, incluindo o fato dessa última ser uma doença em grande parte respiratória. 

          Cada vez mais evidências sugerem que infecções com o SARS-CoV-2 – e possivelmente os fármacos utilizados para trata-la – tornam os pacientes com COVID-19 especialmente vulneráveis a esses fungos. Essa ameaça, primeiro notada durante a pandemia de gripe (H1N1) em 2009, está reforçando o alerta de alguns pesquisadores para que a vigilância fúngica aumente entre os pacientes mais doentes com COVID-19, e que fármacos antifúngicos sejam administrados quando necessário (Ref.4). 

          Em um estudo de revisão publicado em 2016 no periódico Open Forum Infectious Diseases (Ref.5), pesquisadores investigaram retrospectivamente 57 casos de infecções com fungos Aspergillus em pacientes com gripe severa sendo reportados desde 1963, encontrando que 46% dos casos de co-infecção resultaram na morte dos pacientes, e com alguns sobreviventes sofrendo de falha respiratória por mais de 30 dias. Nesse sentido, algo semelhante pode estar acontecendo com a COVID-19.  

           Evidências acumuladas são muitas e preocupantes, e cada vez mais estudos têm reportado pacientes com COVID-19 complicada pela aspergilose. Em um estudo publicado ainda em abril de 2020 no periódico Mycoses (Ref.6), pesquisadores analisaram 19 pacientes com COVID-19 apresentando SDRA moderada a severa. Em 5 dos 19 pacientes foi identificada aspergilose invasiva pulmonar. Em junho de 2020, um estudo publicado no periódico The Lancet Respiratory Medicine (Ref.7) reportou que 30% de 27 sucessivos pacientes mecanicamente ventilados com COVID-19 estavam também com aspergilose invasiva pulmonar.

             Em um estudo publicado 2021 no periódico Emerging Infectious Diseases (Ref.8), analisando 186 pacientes ao redor do mundo com aspergilose pulmonar associada à COVID-19 – 182 dos quais foram admitidos em uma UTI –, encontrou que mais da metade desses pacientes morreram, e com 33% dessas mortes sendo atribuídas à infecção fúngica. Aliás, este ano, vários são os estudos de relatos de casos publicados nesse sentido, englobando múltiplas espécies de fungos, e os especialistas já inclusive deram um nome para a co-infecção fúngica de pacientes com COVID-19: CAPA (na tradução do inglês, Aspergilose Pulmonar COVID-19-Associada). A prevalência global de CAPA pode alcançar 19-33%. Entre exemplos de relatos de casos (2021):  

- Um estudo publicado no periódico Mycoses (Ref.11), reportou um caso onde foi cientificamente comprovado que a COVID-19 de um paciente foi fatalmente complicada por aspergilose pulmonar causada pelo fungo A. flavus.

- Em março de 2021, foi confirmado e descrito o primeiro caso nas Américas de pneumonia ventilador-associada envolvendo infecção pela espécie A. flavus em um paciente com COVID-19 em Buenos Aires, Argentina (Ref.12).  

- Um paciente no Japão de 72 anos de idade com COVID-19 severa, melhorou temporariamente após tratamento com remdesivir, dexametasona e antibióticos enquanto estava sob ventilação mecânica. Porém, uma nova sombra apareceu no pulmão do paciente, causada por infecção pelo fungo A. fumigatus, com subsequente diagnóstico clínico de CAPA (Ref.13). Mesmo seguindo tratamento com o antifúngico voriconazol, seu quadro piorou e ele morreu. Os pesquisadores nesse relato de caso reforçaram a importância do diagnóstico precoce de CAPA.

- No periódico Journal of Medical Mycology (Ref.14), foi reportado o primeiro caso de infecção com o fungo A. ochraceus em um paciente de 39 anos imunocompetente co-infectado pelo SARS-CoV-2, e cujo quadro clínico foi complicado por infecções pulmonar e cerebral. O paciente não respondeu ao antifúngico voriconazol, e anfotericina B lipossômica teve que ser adicionada ao tratamento.

- Em Teerã, no Irã, uma mulher de 66 anos imunocompetente e com COVID-19 severa (incluindo saturação de oxigênio de 87%) hospitalizada na UTI desenvolveu uma CAPA fatal causada pelo fungo A. terreus (Ref.15). 

- Em fevereiro de 2021, uma mulher de 70 anos de idade foi admitida na UTI com COVID-19, e desenvolveu uma massiva hemoptise causada por um pseudoaneurisma pulmonar arterial  induzido pela infecção com o fungo A. niger (Ref.16). 

- Em março de 2021, foi reportado um paciente de 69 anos na UTI sem fatores prévios de risco para aspergilose invasiva pulmonar que desenvolveu essa condição (causada pelo fungo A. fumigatus)  duas semanas após a manifestações de sintomas de uma COVID-19 que progrediu para um quadro severo (Ref.17).

- Mais recentemente, em um estudo publicado no The Lancet Respiratory Medicine (Ref.), analisando 565 pacientes com COVID-19 sob ventilação mecânica na França, encontrou que 15% deles preenchiam os requisitos para um quadro de CAPA; pacientes com CAPA tinham uma taxa de mortalidade quase duas vezes maior (61,8% vs 32,1%).

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          Além de sobrecarregar o sistema imune, e de reduzir alguns tipos de células imunes, a COVID-19 causa sérios danos nas células revestindo o tecido pulmonar, prejudicando a habilidade do órgão de limpar o trato respiratório de patógenos, incluindo fungos. Apesar de não ser incomum que pacientes com COVID-19 estejam co-infectados com outros microrganismos patogênicos, infecções com fungos do gênero Aspergillus pode ser a mais letal forma de co-infecção, de acordo com especialistas (Ref.2).

          Um importante fator de risco para a infecção invasiva com esses fungos é o uso sistêmico de corticosteroides, uma classe de medicamentos agora padrão para o tratamento de COVID-19 severa, especialmente a dexametasona. Em um recente estudo observacional de quatro pacientes com COVID-19 com infecções provavelmente causadas por fungos Aspergillus, e hospitalizados em New York, EUA, notou que todos eles receberam doses maiores do que o recomendado de corticosteroides, com todos indo a óbito (Ref.18). 

          Para piorar a situação, a identificação de infecções com esses fungos é difícil de ser feita em pacientes hospitalizados com COVID-19, especialmente em pacientes na UTI. Isso porque a infecção fúngica pode causar sintomas não-específicos, como tosse e falta de ar, ambos também comuns na COVID-19. Sem contar que mesmo no cenário de uma identificação positiva do fungo em amostras do tecido pulmonar – facilitada por procedimentos de alto risco de exposição viral como a broncoscopia (cada vez mais evitada em pacientes com COVID-19) –, nem sempre isso significa que existe uma infecção fúngica (os fungos podem estar colonizando o ambiente pulmonar sem causar prejuízos para o hospedeiro, como ocorre na maior parte das pessoas, hospitalizadas ou não) (Ref.2, 19). 

          Por causa desses empecilhos, alguns médicos começaram a administrar medicamentos antifúngicos em pacientes com COVID-19 severa após a terceira semana de hospitalização, independentemente de teste positivo para fungos Aspergillus. Mas mesmo essa estratégia carrega riscos. O uso inadequado desses fármacos pode levar à evolução de resistência medicamentosa nesses fungos. De fato, este mês, no periódico Medical Mycology Case Reports (Ref.20), pesquisadores reportaram o caso de um paciente com COVID-19 severa agravada com a co-infecção da espécie A. fumigatus multirresistente ao antifúngico triazol e seus derivados; o paciente morreu após 14 dias de hospitalização. Em Paris, França, um paciente de 56 anos internado na UTI com COVID-19 grave desenvolveu aspergilose invasiva pulmonar causada por uma cepa de A. fumigatus também multirresistente aos derivados do triazol (Ref.21). Essas resistências são associadas ao gene cyp51A.

          Em meados de dezembro de 2020, no periódico The Lancet Infectious Diseases (Ref.22), um grupo de médicos e de Sociedades Médicas de Micologia estabeleceu um guia clínico para facilitar a identificação de aspergilose invasiva, incluindo características que devem ser buscadas em imagens do pulmão por tomografia computacional (CT) e intervalos temporais otimizados para testagens. 

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ATUALIZAÇÃO (23/03/2021): Em um estudo publicado no periódico Nature Communications (Ref.23), pesquisadores descreveram um revolucionário novo método de diagnóstico da aspergilose não-invasivo baseado em um anticorpo monoclonal Aspergillus-específico, JF5. Em experimentos com ratos, o anticorpo in vivo-guiado foi capaz de rapidamente reconhecer infecção pulmonar causada por fungos Aspergillus sem a necessidade de procedimentos invasivos. O método opera através de um radiorastreador injetado intravenosamente e de avançadas técnicas de imagem molecular, permitindo precisa avaliação quantitativa da infecção fúngica.

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          Segundo os especialistas, já está mais do que claro que a arpegilose pulmonar COVID-19-associada (CAPA) deve ser considerada uma séria e potencialmente fatal complicação em pacientes com COVID-19 severa, especialmente aqueles recebendo tratamentos de imunossupressão. Deve‐se sempre suspeitar de aspergilose pulmonar como causa de infecção secundária nos pacientes gravemente enfermos.


   MUCORMICOSE E COVID-19

          Além da arpegilose pulmonar, cada vez mais relatos de caso na literatura acadêmica aumentam a preocupação com outra e mais letal infecção fúngica oportunista: mucormicose. Na Índia, junto à recente explosão de casos de COVID-19 - com recordes diários de  300-400 mil casos registrados de infecção com o SARS-CoV-2 -, médicos vêm reportando também um aumento dramático de mucormicose (também conhecida como "Fungo Preto") entre os pacientes com COVID-19 em recuperação ou recuperados (Ref.27). "Eu estarei removendo o olho para salvar a vida dela", disse Dr. Akshay Nair, um cirurgião ocular em Mumbai sobre uma paciente diabética de 25 anos afetada pela mucormicose pós-recuperação da COVID-19, quadro conhecido como CAM (Mucormicose Associada à COVID-19, na tradução da sigla em inglês). 


          Mucormicose é uma rara infecção fúngica caracterizada por infarto e necrose dos tecidos do hospedeiro que resultam da invasão da vasculatura por hifas de fungos filamentosos dentro da ordem Mucorales, comumente envolvendo espécies dos gêneros Aspergillus, Rhizopus, Mucor e Rhizomucor. Esses fungos estão presentes em abundância no ambiente, e as infecções podem ser iniciadas a partir da ingestão de alimentos contaminados, inalação de esporos dentro das narinas ou pulmões, ou inoculação em pele danificada ou lesionada.



           A mais comum apresentação clínica da mucormicose é a infecção rino-orbital-cerebral, esta a qual parece ser secundária à inalação de esporos dentro dos sinos paranasais de um hospedeiro suscetível. Mortalidade é alta, variando entre 50% e 80%, com fatores de risco para grave progressão clínica incluindo envolvimento intracraniano ou orbital, e supressão imune irreversível. Quando a infecção fúngica é disseminada, mortalidade alcança 90% dos casos.

          Situações de predisposição para a mucormicose incluem diabetes, uso sistêmico de corticosteroides, neutropenia, malignâncias hematológicas, transplante de células-tronco, e indivíduos imunocomprometidos. Em torno de 70% dos casos de mucormicose rino-orbital-cerebral têm sido ligados a pacientes com diabetes Tipo 2, a maioria dos quais tinham também desenvolvido cetoacidose na época de apresentação. De fato, um dos mais importantes fatores de risco para o agravamento da COVID-19 é um quadro de diabetes, e o procedimento terapêutico padrão para o tratamento de casos graves da doença é o uso de corticosteroides (associado com imunossupressão e aumento das taxas de glicose no sangue), explicando a razão para os casos de mucormicose estarem em alta. Somando-se a isso, a COVID-19 promove hiperglicemia, desregula o metabolismo de ferro e causa danos ao endotélio vascular, todos fatores de risco para a mucormicose.

           Um diagnóstico de mucormicose requer evidências tanto microbiológicas quanto histológicas de infecção fúngica. A apresentação clínica pode ser variável, tornando o diagnóstico precoce e início imediato de uma terapia antifúngica desafiadores. A infecção pelo fungo oportunista geralmente se manifesta inicialmente com uma sinusite aguda, febre, congestão nasal, secreção nasal purulenta e dor de cabeça. Todos os sinos se tornam envolvidos, e disseminação contígua para estruturas adjacentes como o palato, órbita e cérebro resultam em sintomas clínicos. Com base na localização anatômica, a mucormicose pode ser classificada em: 

- rino-orbital-cerebral;

- pulmonar;

- cutânea;

- gastrointestinal;

-- disseminada.

           Entre diabéticos, a mucormicose rino-orbital-cerebral é a mais comum forma, e a pulmonar a menos comum. Em contraste, entre indivíduos imunossuprimidos ou que foram submetidos a um transplante de órgão ou pacientes com malignâncias hematológicas, as formas pulmonar e disseminada são as mais comuns.

          Aqui no Brasil foi descrito no final do ano passado (Ref.30) um caso de mucormicose gastrointestinal em um paciente de 86 anos com COVID-19, incluindo sintomas de febre, náusea, dor abdominal, sangramento gastrointestinal e perfuração. Afeta principalmente o estômago e o cólon. A aparência de uma mucormicose gástrica é geralmente uma grande úlcera com necrose, eventualmente apresentando uma secreção aderente, grossa e verde. Pode alcançar uma taxa de mortalidade de até 85% no caso de diagnóstico tardio ou ausência de diagnóstico, e engloba aproximadamente 8% dos casos de mucormicose.

          Em indivíduos de alto risco, o diagnóstico mucormicose deveria ser suspeito se existe dor ou inchaço facial unilateral, inchaço orbital, ou proptose (esbugalhamento dos olhos, fazendo com que se dilatem para fora da cavidade ocular em um ou ambos os olhos). Necrose tecidual, frequentemente um sinal tardio, é uma característica marcante da patologia, resultando de angioinvasão e trombose vascular. Mesmo com diagnóstico precoce e tratamento invasivo agressivo (terapias antifúngicas e uso intravenoso de fármacos como a anfotericina B, combinados com intervenção cirúrgica), o prognóstico de recuperação não é muito promissor.

          Nesse sentido, especialistas têm pedido cuidado extremo no uso de glucocorticoides em pacientes com COVID-19, porque o uso desses medicamentos está associado com o desenvolvimento de mucormicose mesmo em pacientes sem comorbidades prévias (Ref.29). O uso de glucocorticoides em casos leves de COVID-19 (sem hipoxemia) ou a utilização de doses maiores de glucocorticoides deveria ser evitado. No geral, na ausência de um claro benefício terapêutico, medicamentos visando caminhos do sistema imune deveriam ser desencorajados. 


   MUCORMICOSE E ÍNDIA

          Na Índia, provavelmente devido à grave explosão epidêmica de COVID-19 e colapso do sistema de saúde, um grande número de casos de mucormicose têm sido reportados tanto de forma anedótica por médicos quanto por descrição de relatos na literatura acadêmica. Soma-se a isso o fato de que a Índia, historicamente, é o país com a maior prevalência de mucormicose do mundo, com 140 casos por milhão de habitantes anualmente, e aquele com a segunda maior população de adultos com idades de 20-79 anos portadores de diabetes Tipo 2 (frequentemente não-controlada). Em específico, é estimado que >10% da população adulta na Índia é diabética (77 milhões de pessoas). Um estudo de revisão publicado no periódico Journal of Fungi (Ref.31), analisando um total de 43 casos reportados da doença (41 provados) associados à COVID-19 e descritos na literatura acadêmica entre 1 de dezembro de 2019 e 9 de abril de 2021, encontrou que 71% dos casos eram oriundos de pacientes Indianos.

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          Em um reportagem publicada na BBC News (Ref.27), o Dr. Akshay Nair - que trabalha em três hospitais em Mumbai, uma das cidades mais afetadas pela segunda onda epidêmica da COVID-19 na Índia - disse que ele já testemunhou cerca de 40 pacientes sofrendo de mucormicose apenas no mês de abril. Nos últimos 2 anos, Dr. Nair havia registrado apenas 10 casos em Mumbai. Muitos dos pacientes eram diabéticos que tinham se recuperado da COVID-19 em casa. Onze deles tiveram um olho cirurgicamente removido devido à manifestação da forma rino-orbital-cerebral. E entre dezembro de 2020 e fevereiro de 2021, seis dos seus colegas em cinco cidades - Mumbai, Bangalore, Haiderabade, Déli e Pune - reportaram 58 casos da infecção fúngica, a maioria deles contraindo-a de 12 a 15 dias após a recuperação da COVID-19.

          O movimentado Hospital de Sion, em Mumbai, reportou 24 casos de mucormicose nos últimos dois meses, comparado com até 6 casos que eram reportados anualmente. Onze deles perderam um olho e seis deles morreram. A maior parte pacientes de meia-idade diabéticos derrubados pela infecção fúngica duas semanas após se recuperarem da COVID-19. "Estamos vendo de dois a três casos por semana aqui [Hospital de Sion]," disse a médica Dra. Renuka Bradoo à BBC (Ref.27). "É um pesadelo dentro de uma pandemia."

          No sul da cidade de Bengaluru, Dr. Raghuraj Hegde, um cirurgião oftalmológico, reportou 19 casos de mucormicose nas últimas duas semanas, a maioria de jovens pacientes. "Alguns estavam tão doentes que nós não podíamos nem mesmo operá-los," disse Dr. Hegde (Ref.27).

          Muitos dos pacientes com mucormicose rino-orbital-cerebral acabam procurando atendimento médico tardiamente, quando estão começando a perder a visão. Nesse sentido, os médicos acabam tendo que cirurgicamente remover o olho afetado para parar a infecção fúngica de alcançar o cérebro. Alguns pacientes perdem a visão em ambos os olhos, e alguns precisam remover o osso da mandíbula para impedir a infecção fúngica de continuar se disseminando. Mesmo pacientes com COVID-19 tão novos quanto 27 anos e sem diabetes acabam perdendo um olho por causa da mucormicose

          Segundo reportado no The New York Times (Ref.32), no estado de Maarastra, o qual inclui a área comercia de Mumbai, já foram registados cerca de 200 pacientes recuperados da COVID-19 e que estavam sendo tratados para mucormicose, com oito mortos até o dia 10 de maio (2021). Na região de Gujarat, o governo chegou a ordenar a compra de 5 mil doses de anfotericina B. A capital Nova Déli também têm registrado um significativo aumento de casos de mucormicose.


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

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  3. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/myc.13155
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  8. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33539721/
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  10. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/myc.13213
  11. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/myc.13255
  12. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2211753920300440
  13. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1341321X21000660
  14. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1156523321000147
  15. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/ccr3.4051
  16. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7881698/
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  18. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/myc.13185
  19. https://www.atsjournals.org/doi/full/10.1164/rccm.202005-1945LE
  20. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2211753920300427 
  21. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2211753920300439
  22. https://www.thelancet.com/journals/laninf/article/PIIS1473-3099(20)30847-1/fulltext
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  30. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7719411/
  31. https://www.mdpi.com/2309-608X/7/4/298/htm
  32. https://www.nytimes.com/2021/05/09/world/india-covid-mucormycosis.html
  33. Gangneux et al. (2022). Fungal infections in mechanically ventilated patients with COVID-19 during the first wave: the French multicentre MYCOVID study. The Lancet Respiratory Medicine, Volume 10, Issue 2, P180-190. https://doi.org/10.1016/S2213-2600(21)00442-2