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Por que o Holodomor é tão polêmico?

           Em meio à invasão da Ucrânia pelas forças militares Russas, o conturbado passado histórico que une os dois países tem sido cada vez mais desenterrado e explorado contra ou a favor de um ou outro lado do conflito (1). Um polêmico e trágico episódio nesse passado marcou o início da década de 1930, quando Ucranianos e Russos estavam sob o manto da União Soviética. A grande fome de 1932-33 no território Soviético matou estimadas 6-8 milhões de pessoas, com 3-5 milhões desse total ocorrendo na Ucrânia e na região adjacente de Cubã. Devido à grande proporção de mortes dentro do território Ucraniano e particularmente em regiões populosas, um longo e acirrado debate tem sido arrastado há décadas: afinal, o evento foi um genocídio promovido pelo governo central da União Soviética ou apenas um trágico infortúnio consequente de uma política econômica mal planejada?

(1) Leitura recomendada: Qual é a relação entre Vikings, Rússia e Kiev?

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   GENOCÍDIO

           Infelizmente, o termo genocídio tem sido banalizado e usado em variados contextos, frequentemente com objetivos propagandísticos e políticos. Essa observação também foi feita pelo notável historiador Eric Hobsbawam, este o qual escreveu que o termo se tornou excessivamente usado, "portanto perdendo parte do seu significado, um pouco parecido com o que aconteceu com a palavra fascismo" (Ref.1). Por outro lado, uma definição consensualmente aceita do termo não existe na literatura acadêmica. Muitos eventos históricos têm sido classificados como crime contra a humanidade e aceitos sem resistência acadêmica como genocídio, e podemos citar nesse sentido o Holocausto (2) - sem sombra de dúvida, uma das mais marcantes atrocidades na história da humanidade -, Genocídio de Ruanda e, mais recentemente, o Genocídio Armênio (3). Outros eventos históricos, porém, são controversos quando caracterizados como genocídio.

Para mais informações:


            O termo genocídio foi primeiro cunhado pelo acadêmico de Direito Judeu-Polonês Raphaël Lemkin, em 1943, visando nomear os programas Nazistas de violência sistemática nos territórios ocupados, particularmente o assassinato em massa dos Judeus na Europa - incluindo sua própria família. Lemkin, mais tarde, teve papel crucial na criação da Convenção sobre Prevenção e Punição do Genocídio, dentro da Organização das Nações Unidas (ONU), a qual declarou em 1946 genocídio como um crime sob a lei internacional. A Convenção foi aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 9 de dezembro de 1948 e entrou em vigor em 1951, fornecendo uma definição legal para o termo. Genocídio foi, então, definido como "atos cometidos com a intenção de destruir, inteiramente ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso".

 


            Porém, essa definição oficial da ONU nasceu controversa e acusada de estar contaminada com viés político. De fato, uma proposta inicial na Convenção incluía grupos políticos e sociais como potenciais vítimas de genocídio, mas foi derrubada após vigoroso protesto de alguns representantes, entre eles justamente a União Soviética. Nesse sentido, desde 1948, muitos acadêmicos têm sugerido definições alternativas para genocídio, e podemos citar alguns exemplos (Ref.2):

- "A destruição deliberada da vida física de seres humanos individuais por razão de serem membros de qualquer coletividade humana", definição dada em 1959 pelo acadêmico de Direito Pieter Drost.

- "Crime contra a coletividade, tomando a forma como assassinato em massa, e carregado com intenção explícita", definição dada pelo sociólogo Leo Kuper.

- "O assassinato em massa de um número substancial de seres humanos, quando não em curso de ação militar contra as forças militares de um inimigo declarado, sob condições de ausência de defesa e ajuda das vítimas", definição dada pelo acadêmico especializado em genocídio Israel Charny. 

          Todas as três definições acima sugeridas, e outras mais que poderiam ser citadas, são mais inclusivas, englobando também grupos sociais e políticos. Nesse ponto, outros acadêmicos têm defendido uma definição mais exclusiva de genocídio, argumentando que uma generalização do termo pode torná-lo sem real significado e remover o seu peso simbólico. Talvez esse medo tenha primeiro ganhando corpo durante a Guerra Fria, onde o termo se tornou um instrumento de retórica do conflito, com a União Soviética e os EUA frequentemente acusando um ao outro de "genocídio" dentro das suas respectivas esferas de hegemonia; no discurso Soviético, o termo se tornou próximo associado com a noção de "imperialismo Ocidental". Nesse contexto de falta de consenso sobre o que deve ser incluído e o que deve ser excluído, alguns acadêmicos têm proposto uma variedade de subcategorias para o crime de genocídio, visando caracterizar diferentes tipos de assassinatos em massa sistemáticos, como "politicídio", "genocídio cultural" e "democídio".

           De qualquer forma, independentemente da falta de consenso sobre a questão da inclusividade e exclusividade, o pré-requisito de que o ato de atrocidade deve ser cometido intencionalmente para caracterizar um genocídio é amplamente aceito no meio acadêmico. 

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   UCRÂNIA SOVIÉTICA, COLETIVIZAÇÃO E GRÃOS
 

           Em 1914, o Império Russo entrou na Primeira Guerra Mundial. Após uma série de desastres militares, a popularidade do governo monárquico afundou, culminando na Revolução de 1917 e dando início à Guerra Civil Russa. Ao mesmo tempo, a Ucrânia estabeleceu um governo provisório, declarando independência da nova República do Povo Ucraniano, em janeiro de 1918. Independentemente do status de independência, os camponeses da República do Povo Ucraniano foram obrigados a fornecer ao Exército Vermelho grãos e outros produtos agrícolas, com o objetivo de suportar a luta contra o Exército Branco na guerra civil, ao longo de três anos (1918-1921).

            Eventualmente, a União Soviética (ou União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, URSS) foi estabelecida, incorporando forçadamente o território Ucraniano no processo - dando origem, em 1922, à República Socialista Soviética Ucraniana.

          Em ordem de consolidar o controle Soviético, o Comunismo de Guerra prevaleceu em todas as regiões da União Soviética, incluindo a Ucrânia. Todos os assim chamados "elementos capitalistas" da economia, como o mercado, empreendimentos privados e moeda, foram abolidos. Essas políticas radicais, junto com a Guerra Civil, deixaram a economia Ucraniana, a qual já estava devastada pela Primeira Guerra Mundial, em ruínas.

          Esse cenário levou a uma redução de 25% na produção de grãos em relação ao nível pré-guerra (Ref.3). O resultado direto foi a fome Soviética de 1921, evento que forçou os líderes Soviéticos a adotarem a Nova Política Econômica (NEP) - o famoso "um passo atrás para dar dois à frente", onde práticas do sistema capitalista foram reintroduzidas. Entre as medidas econômicas do NEP para reduzir levemente a pressão sobre as vilas, a requisição de alimento sólido foi substituída por um imposto. Então, quando a situação doméstica da União Soviética estava relativamente estabilizada no final da década de 1920, Josef Stalin (1878-1953), na época Secretário Geral do Partido Comunista, introduziu uma industrialização e coletivização em todo o território Soviético.

             Nesse processo, a Ucrânia foi um alvo primário para a industrialização, e Stalin demandou que 20% do investimento fosse para os Ucranianos. A planta de aço em Zaporizhzhya, Azov, e a grande hidrelétrica sobre o Rio Dnieper foram exemplos notáveis desse investimento prioritário. A coletivização, por outro lado, caracterizou-se pelo estabelecimento de fazendas coletivas (kolhosps). Essas fazendas visaram coletivizar todas as fazendas individuais, incluindo todas as terras, ferramentas e grãos excedentes, no sentido de melhorar a eficiência e compensar a falta de animais de criação.

            Porém, as novas políticas econômicas implementadas na União Soviética acabaram em desastre.

            Com início em 1929, a coletivização Ucraniana foi perseguida de maneira rigorosa e sem descanso, e profissionais experientes foram enviados para essas regiões para acelerar o processo. Camponeses recebiam pequenas propriedades rurais, enquanto seus animais de criação, equipamentos e outros pertences eram coletivizados para o uso comunitário. Além disso, a maior parte das colheitas eram dadas para o Estado, e apenas uma pequena porção da produção era revertida para os camponeses, estes os quais, em 1926, constituíam 82% da população na União Soviética (Ref.4). O objetivo do governo Soviético era centralizar a distribuição de grãos para que estes pudessem ser consumidos de forma mais eficiente, com foco especial nos trabalhadores urbanos, os quais eram responsáveis pela industrialização agressiva da União Soviética (a prioridade da agenda política do governo). Os camponeses precisavam dar suporte incondicional à classe trabalhadora nos centros urbanos, e, de fato, o principal propósito da coletivização era a aquisição em larga escala de grãos para o sustento da industrialização urbana.

           Idealmente, as autoridades locais tinham o papel de administrar uma distribuição ótima de grãos, reservando parte suficiente para a industrialização e parte suficiente para os camponeses (kolkhozniki, membros das fazendas coletivas), e tudo de forma harmônica e minimamente justa. Porém, na realidade, as aquisições de grãos eram feitas de forma brutal, e frequentemente oficiais tomavam tudo dos camponeses. Somando-se a isso, as aquisições não se limitaram aos grãos, com recursos valiosos, moedas e outros bens também sendo alvos de confisco; inicialmente essas aquisições extra-grãos se limitavam aos mais ricos (ex-donos de terras, mercadores, banqueiros e aristocracia), mas rapidamente as coisas saíram fora de controle. Sem comida e sem alimento - e sob condições sanitárias precárias, vulneráveis a doenças diversas -, os kolkhozniki passaram a ter dificuldade em manter uma sobrevivência mínima sobre o regime imposto, e a crescente exploração começou a fomentar revoltas e repulsa ao projeto Socialista (!).  

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(!) É importante diferenciar o Socialismo do Comunismo. Um regime político e econômico Comunista (distribuição de recursos de acordo com as necessidades individuais dos trabalhadores) nunca existiu na União Soviética e é considerado por muitos como utópico. No sistema econômico Socialista [Marxista, no caso], a distribuição idealmente justa das riquezas - mediada pelo Estado - é feita de acordo com o trabalho individual realizado, de forma a prevenir exploração deletéria da classe trabalhadora. O Socialismo - geralmente considerado um estágio intermediário e necessário para o Comunismo - também se mostrou um projeto falho na União Soviética, corrompido por um regime ditatorial e violento.

> Para mais informações: Qual o sentido devo pegar do Comunismo ao Nazismo: Direita ou Esquerda?
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           Outros fatores pioravam a situação já calamitosa. A tecnologia empregada nas fazendas coletivas ainda era muito limitada e recebia pouco investimento para inovação ou manutenção. Transporte sofria com vários problemas de logística, com grandes cargas de grãos frequentemente apodrecendo paradas em caminhões e trens (Ref.21). As autoridades locais eram afetadas por corrupção, abusos, atividades ilegais e uso exagerado de violência contra os camponeses - aumentando a inimizade da população local em relação às autoridades Soviéticas. A comunicação era precária entre as autoridades locais e centrais, dificultando a administração das fazendas coletivas Ucranianas. Camponeses Ucranianos famintos eram impedidos de deixarem a vila onde moravam para buscar alimento em outros lugares. Condições climáticas desfavoráveis no início da década de 1930 também reduziram significativamente o rendimento agrícola.

           Aliás, as falhas de comunicação e frequentes desinformações entre as autoridades locais e centrais, unidas com o obsessivo fomento à industrialização, aumentaram a pressão sobre a produção de grãos na Ucrânia. Stalin mostrava-se sempre insatisfeito com as produções agrícolas, porque acreditava que o solo preto Ucraniano muito fértil era capaz de muito mais, ignorando, minimizando ou subestimando os problemas enfrentados pela coletivização. Eventualmente, Stalin passou a suspeitar de inimigos e organizações contrarrevolucionárias orquestrando contra o governo Soviético, levando a prisões e deportações em massa - algo potencializado com as crescentes revoltas, pilhagens e tumultos. Os fazendeiros ricos e bem-sucedidos que se opunham à coletivização eram chamados de "kulaks" ("um punho") pela propaganda Soviética, esta a qual os promoviam como inimigos declarados do Estado e uma classe que precisava ser eliminada (Ref.5). Em 1930, é reportado um aumento de 10 vezes nas rebeliões camponesas fomentadas pela coletivização ao longo da União Soviética, com 30% delas ocorrendo no território Ucraniano (Ref.5).

           Os kulaks, e outros que resistiram à coletivização, foram deportados para a região de Ural, Sibéria e Cazaquistão. Um total de 2,1 milhões de camponeses foram deportados para essas regiões remotas. Um número similar foi desapossado e relocado dentro dos territórios de origem. Entre aqueles deportados e relocados, 1,8 milhão perderam a vida (Ref.4).

            Em 1929, é reportado que 9093 levantes de camponeses e 1307 ataques contra autoridades ocorreram (Ref.4). Em janeiro-abril de 1930, 6117 revoltas de camponeses na União Soviética são reportadas (das quais 1895 ocorreram na Ucrânia), envolvendo um total de 1,8 milhão de camponeses (Ref.4). Em 1930, foram registradas 4098 perturbações em massa nas áreas rurais da Ucrânia, as quais englobaram quase 957 mil pessoas (Ref.4). Esses distúrbios da ordem eram suprimidos por tropas, e representavam uma séria ameaça ao regime Soviético.

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   HOLODOMOR, UCRÂNIA E GENOCÍDIO
 

          Em 1932-1933, as políticas de coletivização e de requisição de grãos do governo ditatorial de Stalin na União Soviética levaram a uma fome artificial no sudoeste do território Soviético e no Cazaquistão que ceifou a vida de seis a oito milhões de pessoas. Na Ucrânia, esse processo custou a vida de pelo menos três milhões, possivelmente quatro a cinco milhões, de pessoas, tanto de Ucranianos em termos étnicos quanto de pessoas de outras nacionalidades. No pico de mortalidade, é estimado que as mortes nas vilas estavam a uma taxa de 25-28 mil por dia. Além do excesso direto de mortes no período (início de 1932 até o outono e inverno de 1933) - reduzindo substancialmente a população Ucraniana total (em 1930 algo em torno de 32 milhões) -, houve agravantes indiretos da catástrofe demográfica, como queda brusca na taxa de nascimentos e na expectativa de vida.

           No período pós-Soviético, nacionalistas Ucranianos levantaram voz e compararam o evento a um "Holocausto Ucraniano" (em termos de escala das mortes), cunhando o termo Holodomor ("morte por fome"). Entre 1991 e 2010, todo presidente na Ucrânia, iniciando com Leonid Kravchuk, deu suporte para os estudos do Holodomor; Kravchuk, aliás, foi o primeiro a se referir ao evento como um genocídio (Ref.1). Em 2006, o Conselho Supremo da Ucrânia (Verkhovna Rada) - o poder legislativo unicameral do país, situado na capital Kiev - passou uma resolução reconhecendo o Holodomor como um "ato de genocídio contra o povo Ucraniano". E, em 2007, um decreto presidencial transformou o quarto sábado de novembro no dia oficial de lembrança para "as vítimas do Holodomores" (Ukaz Prezydenta Ukrainy N°431/2007) (3). Finalmente, em 2008, um museu em memória das "Vítimas dos Holomodores" (Natsional’nyi muzei “Memorial pam’iati zhertv Holodomoriv v Ukraini) foi construído em Kiev para marcar o 75° aniversário do principal Holodomor (Grande Fome).  

 


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(3) O plural ("Holomodores") é usado na Ucrânia para fazer referência também aos eventos de fome nos anos de 1921-22 e de 1946-47.
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          Porém, mesmo com 80% dos Ucranianos concordando com a declaração de que o Holodomor foi um genocídio, a questão ainda persiste alvo de intenso debate político e acadêmico. Isso foi agravado quando, em 2010, subiu ao poder da Ucrânia o presidente pró-Rússia Viktor Yanukovych, este o qual buscou ativamente mudar a narrativa e negar o Holodomor, declarando como posição oficial do novo governo que o evento de 1932-33 foi apenas "uma terrível tragédia, resultado de circunstâncias difíceis", e também preferindo usar o termo holod ("fome") ao invés de Holodomor (Ref.7) - algo similar ao que o governo Bolsonaro faz hoje no Brasil com a questão da ditadura militar (4). Voz foi dada a minorias acadêmicas que negavam o Holodomor e estudos contrários à nova narrativa foram sufocados. A situação sofreu nova reversão em 2014, com a queda de Yanukovych, revitalizando o suporte governamental e institucional ao Holodomor como um crime de genocídio que precisa ser sempre lembrado.

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(4) Sugestão de leitura: Regime Militar no Brasil: Revolução ou Golpe?
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            Para aqueles que argumentam em favor do Holodomor como um genocídio, a intensificação da fome constituiu um ato deliberadamente planejado por parte das autoridades Soviéticas, e com o objetivo de destruir a nação Ucraniana como um fator político e um organismo social, e removendo qualquer aspiração de um Estado separado da União Soviética. Durante o final da década de 1920 e início da década de 1930, Stalin ordenou a prisão e a execução em massa de líderes políticos, acadêmicos, intelectuais, escritores, linguistas, artistas, estudantes, clérigos e advogados na Ucrânia, e chegou a proibir o ensino da linguagem Ucraniana, levando a revoltas dentro da população. Somando-se a isso, a população rural estava cada vez mais rebelde contra o inumano controle da produção agrária ditada pelo Kremlin. Para subjugar de vez os Ucranianos, Stalin e aliados teriam orquestrado um genocídio por fome, diretamente confiscando mais colheitas e alimentos na Ucrânia. Torres de vigia foram erguidas ao longo das áreas rurais Ucranianas para prevenir a população de acessar os suprimentos de alimentos. Além disso, restrições e bloqueios de viagem - junto com o fechamento de fronteiras - preveniram os Ucranianos de procurarem alimento fora das áreas afetadas.

            Em 1933, aproximadamente 190 mil camponeses Ucranianos foram pegos fugindo do país e foram enviados de volta. Fome era geralmente o que esperavam por eles, caso não fossem executados ou deportados. Vários outros eram simplesmente mortos a tiros pelos guardas de fronteira Soviéticos (Ref.3). Até 77-80% dos intelectuais, entre eles mais de 200 autores Ucranianos e 62 linguistas, foram liquidados ou desapareceram (Ref.5).

             Suportando a narrativa de genocídio, é primeiro argumentado que a fome como um todo foi artificial (produzida pelo ser humano), e não o resultado primário de qualquer causa natural. As colheitas naquela época eram, no mínimo, adequadas, e a Grande Fome, portando, teria sido resultado de um regime irrealístico de aquisição de grãos dos camponeses Ucranianos. Líderes Soviéticos estariam totalmente cientes da situação que eles fomentaram, mas recusaram qualquer assistência àqueles em fome, incluindo rejeição de ajuda internacional. De fato, exportações de grãos continuaram a partir de fartas reservas, somando um total em torno de 1,8 milhões de toneladas em 1933 (Ref.5). Stalin poderia ter salvado milhões de vidas se ele quisesse, através da suspensão de exportações de alimentos, liberação das reservas de grãos ou dando aos camponeses acesso às áreas de armazenamento de grãos, e, se ele tivesse feito isso, tais 'simples medidas' poderiam ter mantido as mortes em centenas de milhares ao invés de milhões.

           Essa interpretação da fome como um instrumento de genocídio se tornou "popularizada" no Ocidente durante a década de 1980, emergindo junto com a "redescoberta" desse evento (Ref.2). Isso porque a narrativa Soviética foi sempre de negar que o trágico evento de fome sequer ocorreu, escondendo qualquer evidência argumentando pelo contrário.

           No lado desfavorável em caracterizar o evento como um genocídio, alguns acadêmicos e grupos políticos (incluindo o governo Russo) argumentam que as políticas radicais de industrialização e de coletivização afetaram vários grupos e sem intenções genocidas. Um ponto particularmente enfatizado é que a população do Cazaquistão foi, proporcionalmente, mais afetada pela fome (1,45 milhões de mortes, cerca de 38% da população) (Ref.5). Como resultado, dado que a fome se estendeu além do território Ucraniano, um cenário de genocídio seria impossibilitado. Outro ponto levantado é que nem todos os Ucranianos sofreram com a fome, esta a qual se concentrou em escala e proporção muito maior nos camponeses, poupando grande parte das áreas urbanas (excesso de morte próximo de 200 mil em 1933) (Ref.6). O evento de fome seria, nesse sentido, mais ilustrativo das atitudes impiedosas e rígidas do governo Soviético ao lidar com os camponeses - visando atender as absurdas demandas econômicas Soviéticas -, ao invés de um grupo étnico em particular. No processo de coletivização, com foco na mobilização de recursos para industrialização e a reorganização e modernização da economia agrícola, superar a resistência dos camponeses teria sido essencial, resultando tragicamente em extrema violência contra a população rural em muitas situações.

            Por outro lado, como contra-argumento para esse último ponto, existe também a alegação de que Stalin teria forçado máxima exploração da população rural Ucraniana com intenção de causar o máximo de mortes possíveis a nível nacional e, assim, enfraquecer a Ucrânia como um todo sob a desculpa de "esforços econômicos". Das colheitas realizadas em 1930, a Ucrânia foi forçada a dar ao estado Soviético 7675000 toneladas de grãos, uma quantidade extremamente excessiva em comparação com outras regiões Soviéticas altamente produtivas (Ref.9). Em 1932, em meio ao Holodomor, foram extraídas 4,27 milhões de toneladas (Ref.9). Em agosto de 1932, o decreto "Cinco Talos de Grãos" estabeleceu que todos, até mesmo crianças, pegos "roubando" qualquer produção de um campo coletivo, podiam ser prontamente executados ou presos por "roubo à propriedade socialista"; no começo de 1933, próximo de 55 mil pessoas foram julgadas e sentenciadas, das quais ~2 mil foram executadas (Ref.10). Mais de um terço das vilas, na época do Holodomor, foram colocadas em listas negras por falharem em cumprir as cotas; essas vilas eram cercadas por tropas e os residentes eram impedidos de deixá-las ou receber qualquer suprimento, ou seja, essencialmente uma sentença de morte coletiva (Ref.10). Isso somaria-se às perseguições, prisões, deportações e execuções em massa de elementos culturais e nacionalistas Ucranianos ocorrendo previamente e em paralelo.

           No Cazaquistão, é argumentado - no lado favorável ao crime de genocídio - que as mortes foram devidas primariamente por negligência econômica. Por exemplo, os camponeses no Cazaquistão não foram prevenidos de deixar o país para encontrar comida em outros lugares (Ref.5).

          Voltando ao conceito central de "genocídio" consensualmente aceito como pré-requisito ("ato intencional"), é também frequentemente levantada a ausência de documentos escritos sugerindo que Stalin ordenou e supervisionou propositadamente a Grande Fome, e visando um grupo étnico em específico (Ucranianos). Outros rebatem esse ponto argumentando que ausência de evidência não significa que o evento de genocídio não ocorreu. O historiador Norman Naimark, por exemplo, levantou a seguinte observação sobre esse problema em particular (Ref.2):

           "Não existe muita evidência de que Stalin tenha ordenado a Grande Fome Ucraniana, mas existe toda razão para acreditar que ele sabia do processo, entendia o que estava acontecendo, e que foi completamente indiferente ao destino das vítimas. Isso pode não ser evidência suficiente para condená-lo em uma corte internacional de justiça como um genocida, mas isso não significa que o evento em si não possa ser julgado como um genocídio. Recente jurisprudência internacional concluiu que um evento histórico - como o massacre em Srebrenica em julho de 1995 - pode constituir um genocídio sem a demonstração que criminosos específicos foram culpados do crime."

            Essa declaração de Naimark é suportada pela publicação em 2008 da obra Holodomor 1932-33 rokiv v Ukrain: dokumenty i materialy - uma coleção de 1125 páginas de documentos Ucranianos e Russos arquivados relacionados ao Holodomor supervisionada pelo Instituto de História da Academia de Ciências da Ucrânia. Várias cartas da coleção mostram que a Ucrânia estava em forte crise no inverno de 1931-32. Pessoas estavam morrendo por causa da fome, havia reportes de canibalismo, alguns começaram a fugir das vilas, oposição popular começou a crescer, fazendeiros estavam matando todos os animais de criação para se alimentarem, brigadas armadas para coleta de grãos estavam vagando pelas áreas rurais, violência estava crescendo, o setor de agrícola parecia estar colapsando, e a autoridade Soviética no país estava ruindo. Líderes do Partido Comunista Ucraniano estavam ativamente enviando cartas ao Kremlin requisitando ajuda. Uma das mais notáveis cartas nesse sentido é do líder Lazar Kaganovich, em 11 de agosto de 1932:

            "A esse ponto, a questão da Ucrânia é a mais importante. A situação no país é terrível. Se nós não tomarmos medidas agora para melhorar a situação, nós podemos perder a Ucrânia."

           Stalin parecia estar, de fato, muito ciente dessa conturbada situação, já que, em 14 de dezembro de 1932, ele assinou um decreto ordenando mais prisões em massa de contrarrevolucionários, a expulsão de todos os elementos nacionalistas do Partido Comunista Ucraniano e de todas as instituições Soviéticas, e o fechamento de todos os jornais e noticiários Ucranianos. É estimado que 125 mil pessoas foram presas em 1933, e milhares foram mandadas para campos de concentração. Centenas de intelectuais Ucranianos foram expulsos das suas instituições de pesquisa. E tudo isso em meio à morte de inúmeras pessoas famintas nos campos. Existe evidência de crescente sistematização em lidar com os Ucranianos durante esse período, no sentido de subjugá-los (Ref.11).

            Um estudo publicado em 2021 no periódico East European Historical Bulletin (Ref.13), analisando novos arquivos documentais da antiga União Soviética, encontrou que, pelo menos na primeira metade de 1933, as autoridades regionais na Ucrânia requeriam que autoridades em vilas, cidades e distritos enviassem informações compreensivas sobre as dinâmicas das taxas de mortalidade em diferentes grupos de idade no Holodomor a cada dez dias, mas sem qualquer medida dessas autoridades regionais para prevenir ou parar os assassinatos em massa por fome, mesmo recebendo regularmente relatórios de um cenário de crescente taxa de mortalidade em todos os grupos de idade. O achado implica que o governo Soviético teria criado um sistema especial verticalmente integrado visando monitoramento constante das taxas de mortalidade nas áreas ruais, com atualizações a cada cinco dias no nível distrital e a cada dez dias nos níveis regionais, tornando evidente a sistematização das mortes no território Ucraniano e fortemente sugerindo que a Grande Fome foi planejada.

          Por outro lado, um estudo publicado também em 2021 no periódico The Journal of Economic History (Ref.14), analisando as mortes por fome na Ucrânia no ano específico de 1933 (até 2,6 milhões de mortes), concluiu que:

I. O clima em 1931-32 era similar à média de 1924-1929; o fator climático explica até 8,1% do excesso de mortes, e, portanto, não pode ser usada como justificativa para a Grande Fome;

II. Políticas econômicas (coletivização e super-industrialização) aumentou significativamente a mortalidade por fome, e bem antes do Holodomor; essas políticas explicam até 52% do excesso de mortes;

III. Existe evidência de que Ucranianos e Alemães foram vítimas de discriminação, e que os Ucranianos foram mais coletivizados. Porém, a autora do estudo realçou que isso não é prova de genocídio; para provar genocídio (em termos étnicos, com base na lei internacional), seria necessário mostrar que o Stalin sabia que a coletivização falharia anos antes da fome, e que, portanto, exporia de forma desproporcional os Ucranianos ao processo.

            Independentemente se a fome foi usada ou não como arma planejada de subjugação, é nítido que Stalin e seu governo estavam em uma agressiva campanha contra os grupos de resistência ao controle Soviético na Ucrânia. E tiveram sucesso nessa campanha após a avassaladora epidemia de fome. Em uma questão de poucos meses, a Ucrânia perdeu parte substancial da sua população, mergulhou em pobreza e perdeu boa parte das suas tradições e identidade cultural. A Ucrânia possuía o maior potencial de recursos para a União Soviética, e sua perda poderia significar um colapso do regime Stalinista.

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   CONCLUSÃO

          Em 1928, a União Soviética era um dos 30 países mais ricos do mundo, e a economia Soviética estava crescendo rapidamente. Mesmo assim, quase 10% da população Soviética morreu de fome e doenças induzidas pelas fome na Ucrânia, um território famoso pela sua produção de grãos e fértil solo. Em 1932-1933, a "morte pela fome" atingiu seu pico mais trágico, período chamado de Holodomor. Existem três principais explicações historicamente levantadas para o Holodomor: clima, políticas econômicas e genocídio. Evidências acumuladas não suportam fatores climáticos como relevantes para a tragédia. Políticas agressivas e mal gerenciadas de coletivização, de fato, causaram um grande número de mortes por fome em vários períodos durante a década de 1920 e de 1930. A intensificação dessas mortes e mais agressivas políticas de controle e coletivização na Ucrânia, junto a uma aparente sistematização e supervisão das mortes - sem implementação de qualquer medida para tentar reverter o processo -, podem talvez caracterizar uma forma de genocídio.

          Em termos de leis internacionais, porém, pode ser mais difícil esse reconhecimento, por causa do conceito legal mais limitado de genocídio. Se o Holodomor for considerado um genocídio, a Ucrânia possui o dever de punir os seus idealizadores sob o Artigo 1 da Convenção sobre Genocídio, a qual, entre outros pontos, declara que "as Partes Contratantes confirmam que genocídio, seja cometido em tempo de paz ou em tempo de guerra, é um crime sob lei internacional que deve ser prevenido e punido." A punição é algo mais complicado nesse sentido, considerando que a União Soviética foi extinta. Já foi inclusive sugerido que o Partido Comunista da Ucrânia, uma "ramificação" do Partido Comunista da União Soviética e com uma ideologia de patriotismo Soviético, fosse o alvo de punição (Ref.18). Por outro lado, temos também o Partido Comunista da Federação Russa, ainda relativamente muito expressivo na Rússia e com uma ideologia similar àquela do partido comunista Ucraniano. O próprio presidente Vladmir Putin - hoje liderando uma agressiva e criminosa campanha de invasão militar no território Ucranino - possui uma origem diretamente ligada à ex-União Soviéta, como ex-agente de inteligência da KGB.

          Aliás, o Partido Comunista da Ucrânia foi banido pelas autoridades Ucranianas em 2015, por terem apoiado os movimentos separatistas de Donestsk e Lugansk e a anexação da Crimeia pela Rússia. O banimento também incluiu qualquer simbolismo ou propaganda pró-Nazista e pró-Comunismo. A Anistia Internacional condenou o banimento do Partido Comunista como um ataque à liberdade de expressão no país (Ref.19).

          Internacionalmente, treze países reconhecem a Grande Fome na Ucrânia (1932-33) como um genocídio, incluindo os EUA, Austrália e Canadá. Porém, dentro da historiografia e dentro da sociedade, ainda persiste um caloroso debate sobre se esse evento constitui, de fato, um genocídio - especialmente entre historiadores na Ucrânia e na Rússia. Aqui no Brasil, recentemente o senador Alvaro Dias (Podemos-PR) apresentou projeto (PL 423/2022) para reconhecer o extermínio de ucranianos por meio da fome (Holodomor) como genocídio e instituir o quarto sábado de novembro como Dia de Memória do Holodomor (Ref.20).


REFERÊNCIAS 

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