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É possível infecção com varíola bovina através de gatos?


          Uma menina de 11 anos de idade foi apresentada ao hospital com uma lesão na sua bochecha esquerda que tinha estado presente ali por 3 semanas. Ela vivia em uma área suburbana na Polônia e tinha contato direto com gatos que viviam em sua casa e vagavam livremente pelas dependências. Nenhuma mordida ou arranhões foram reportados.

           Seus pais inicialmente reportaram que uma pústula apareceu no lado esquerdo da bochecha esquerda da menina, e que tinha evoluído para uma ulceração necrótica com uma escara preta. A escara tinha 2 cm em diâmetro e estava acompanhada por um eritema local em expansão (Figura A) e limfadenopatia submandibular. A paciente tinha sido tratada empiricamente com antibióticos, mas não houve melhora. Incisão da lesão não revelou pus, e uma cultura bacteriana deu negativo. Nesse sentido, uma amostra da lesão e do soro foram testadas para oligonucleotídeos do DNA associado ao gênero Orthopoxvirus e ao vírus Cowpox (1), os quais foram detectados por reação em cadeia de polimerase (PCR). Uma análise via PCR para o DNA da bactéria Bacillus anthracis e testes serológicos para infecções pelas espécies Franscisella tularensis e Bartonella henselae deram negativo.  

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           Como a doença identificada era viral (causada pela espécie Cowpox virus), isso explicou a ineficiência dos antibióticos, já que estes medicamentos são específicos para combater infecções bacterianas (Leitura recomendada: O que são as superbactérias e a resistência bacteriana?).

            A infecção pelo vírus Cowpox - comumente conhecida como varíola bovina - é uma rara doença zoonótica (transmitida para humanos via outros animais). Apesar do nome, humanos podem contrair esse vírus a partir de gatos infectados. Não existe tratamento específico. Na paciente em questão, o processo de cura da ferida foi prolongado, e remoção cirúrgica da escara necrótica foi realizada. Após 3 meses, uma cicatriz de 1 cm cercada por uma área residual de eritema ainda era visível (Figura B). O caso foi descrito e reportado em 2018 no periódico The New England Journal of Medicine (Ref.1).



            Nos humanos adultos, as lesões por Orthopoxvirus [ortopoxivírus] surgem de cinco a doze dias após o contato, localizando-se geralmente nos membros superiores, principalmente nas mãos. Caracterizam-se, inicialmente por máculas pruriginosas que evoluem para pápulas e pústulas, muito dolorosas, até a formação de crostas (Fig.2). Pode haver a disseminação do vírus para a mucosa ocular através do contato direto, sob o risco de desenvolvimento de cegueira. A doença associada é geralmente benigna, de curso autolimitado, resolvendo-se em até quatro semanas.

Figura 2. Homem de 43 anos de idade infectado com um ortopoxivírus (Cowpox como suspeito principal) apresentando uma bolha hemorrágica única de 25 x 20 mm e com uma necrose central no pulso do braço esquerdo, acompanhada de linfangite e febre (38,5°C). A lesão progressivamente aumentou de tamanho ao longo de 2, 4 e 8 dias após manifestação inicial. Tempo de incubação do vírus Cowpox é de 8-12 dias pós-infecção, com sinais e sintomas aparecendo após esse período. Ref.3


          A infecção específica pelo vírus Cowpox causa afecções pustulosas cutâneas locais, as quais podem, em alguns casos, disseminar pelo corpo e se tornarem fatais em pacientes imunocomprometidos. Em outros animais, a manifestação clínica da infecção varia entre espécies e indivíduos: alguns desenvolvem uma forma cutânea com lesões restritas à pele com vários graus de severidade (Fig.3), enquanto outros sucumbem a uma forma sistêmica severa com viremia fulminante associada a alta mortalidade. Roedores parecem ser os principais reservadores desse vírus, mas existe um amplo espectro de potenciais hospedeiros vertebrados, incluindo felinos, cães, macacos, elefantes e alpacas. Neste século, infecções em humanos têm sido frequentemente associadas com contato direto entre pacientes e roedores, causando lesões principalmente nas mãos, braços, rosto e pescoço (Fig.4). Mas infecções humanas podem também ocorrer através de hospedeiros intermediários, notavelmente gatos domésticos, estes os quais são comumente infectados com o vírus Cowpox através de contato com roedores. Mais raramente, infecções podem ocorrer através de objetos contaminados com partículas virais (ex.: penetração ou corte por esses objetos) (Ref.7). Em grávidas, infecção pode causar a morte do feto (Ref.8) (Fig.5).

Figura 2. Duas partículas virais de Cowpox observadas através de microscopia eletrônica. O Cowpox é um vírus de DNA endêmico da Eurásia, principalmente Europa. Evidências genéticas nos últimos anos apontam que esse vírus não representa uma única espécie, mas, sim, um agrupamento polifilético de várias espécies. (Barra de escala = 0,2 µm) Ref.4-5


Figura 3. Felinos de grande porte infectados pelo vírus Cowpox, e exibindo dermatite ulcerativa e necro-proliferativa multifocal a coalescente. (A) Leopardo-das-neves (Panthera uncia). (B) Guepardo (Acinonyx jubatus). Ambos os animais estavam mantidos em um zoológico no Reino Unido. A infecção frequentemente manifesta um quadro severo em animais não-endêmicos da Eurásia. O vírus tipicamente infecta um novo hospedeiro através de rupturas ou feridas na pele - após contato direto com lesões de animais infectados. Ref.6 

Figura 4. Três indivíduos do sexo feminino, no norte da França, infectadas pelo vírus Cowpox e exibindo característico desenvolvimento de lesão cutânea. (A) Paciente de 18 anos de idade. (B) Paciente de 17 anos. (C-D) Paciente de 29 anos. Todas haviam sido arranhadas por ratos da espécie Rattus norvegicus comprados em uma mesma loja de "pets". Todos os ratos ficaram muito doentes - e com sintomas respiratórios - e morreram em poucos dias. As pacientes tiveram boa recuperação após admissão hospitalar. Ref.10


Figura 5. Mulher de 22 anos de idade grávida e infectada pelo vírus Cowpox. (A) Lesão cutânea na superfície dorsal de um dedo na mão direita. (B) Lesão cutânea sobre a superfície palmar de um dedo na mão direita. (C) Lesão cutânea sobre o queixo. O feto em desenvolvimento acabou morrendo. Partículas virais foram detectadas em amostras da placenta e do feto. Ref.7


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(1) Lembrar que, apesar de pertencentes ao mesmo gênero (Orthopoxvirus), a doença causada pela altamente contagiosa e letal varíola - declarada pela OMS oficialmente erradicada no mundo na década de 1980 pela vacinação - é causada pelo Variola virus. O Cowpox virus em nada está relacionado com a varíola, e, sim, com a varíola bovina, esta a qual pode ser causada também pela espécie Vaccinia virus. O vírus Cowpox possui circulação limitada à Ásia e à Europa, e pode infectar roedores, bovinos e outros animais domésticos, como gatos. Aqui no Brasil, podemos encontrar o Vaccinia, o qual foi inclusive usado para se preparar a vacina contra a varíola, na década de 1970 (Leitura recomendada: Vacinas: História, Conquistas e Mitos).

> A maioria das pessoas nascidas após 1980 não receberam a vacina contra a varíola e, nesse sentido, existe uma crescente redução na imunidade de rebanho contra infecções causadas por ortopoxivírus. Coincidentemente ou não, algumas espécies zoonóticas de ortopoxivírus estão reemergindo e de forma alarmante, incluindo vários casos de infecções com o vírus Vaccinia no Brasil e na Índia, vírus Cowpox na Europa e na Ásia, novas cepas de ortopoxivírus nos EUA (Alasca e Geórgia) e, em especial, a recente e atual pandemia envolvendo o vírus Mpox (Leitura recomendada: O que sabemos até o momento sobre os surtos atípicos de Mpox?)
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REFERÊNCIAS
  1. https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMicm1702548
  2. Silva et al. (2008). Infecção em humanos por varíola bovina na microrregião de Itajubá, Estado de Minas Gerais: relato de caso. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, 41(5). https://doi.org/10.1590/S0037-86822008000500015
  3. Haddadeen et al. (2020). A case of cowpox virus infection in the UK occurring in a domestic cat and transmitted to the adult male owner. British Journal of Dermatology. https://doi.org/10.1111/bjd.19319
  4. Moens et al. (2022). Genomic Sequencing and Phylogenomics of Cowpox Virus. Viruses, Volume 14, Issue 10. https://doi.org/10.3390/v14102134
  5. Wienecke et al. (2000). Cowpox virus infection in an 11-year-old girl. Journal of the American Academy of Dermatology, 42(5), 892–894. https://doi.org/10.1016/S0190-9622(00)90265-2
  6. Chantrey et al. (2023). Cowpox in zoo and wild animals in the United Kingdom. Journal of Comparative Pathology, Volume 204, July 2023, Pages 39-46. https://doi.org/10.1016/j.jcpa.2023.05.002
  7. Raoult et al. (2019). Atypical Cowpox Virus Infection in Smallpox-Vaccinated Patient, France. Emerging Infectious Diseases, 25(2):212-219. https://doi.org/10.3201%2Feid2502.171433
  8. Ferraris et al. (2021). Fatal Cowpox Virus Infection in Human Fetus, France, 2017. Emerging Infectious Diseases, 27(10):2570-2577. https://doi.org/10.3201%2Feid2710.204818 
  9. https://www.mdpi.com/2218-273X/13/2/325
  10. Charrel et al. (2009). Cowpox Virus Transmission from Pet Rats to Humans, France. Emerging Infectious Diseases, Volume 15, Number 5. https://doi.org/10.3201/eid1505.090235