YouTube

Artigos Recentes

O que são as superbactérias e a resistência bacteriana?


- Atualizado no dia 1 de novembro de 2023 -

Compartilhe o artigo:



          Doenças ligadas à resistência bacteriana aos medicamentos irão matar um extra anual de 10 milhões de pessoas a partir de 2050 se nada for feito para resolver o problema - e essa estimativa pode estar sendo muito conservadora. O número de vítimas é maior do que aquele de casos afetados hoje anualmente por câncer terminal. Segundo estudos nos últimos anos, os países mais intensamente atingidos serão aqueles em pleno processo de crescimento e desenvolvimento, como é o caso dos constituintes nos blocos Bric - Brasil incluído - e Mint, onde o crescimento populacional ou total populacional é alto mas a condições sociais não acompanham os avanços econômicos e demográficos.

          O uso cada vez maior, inadequado e abusivo de antibióticos, os quais na maioria das vezes são ingeridos de forma irregular e irresponsável (quando o paciente não obedece a uma orientação médica), facilita enormemente a seleção de bactérias patogênicas cada vez mais resistentes no ambiente e no corpo das pessoas, tornando os tratamentos bem mais complicados, ineficientes e até mesmo tóxicos. E isso afeta até hospitais, onde as medidas de higiene e tratamento intensivo dos pacientes acabam também fomentando a evolução de superbactérias, as quais ficam mais poderosas, proliferam e ficam livres para atacar. 

          Algumas estimativas sugerem que se o ritmo de emergência da resistência bacteriana continuar o mesmo observado atualmente, em 35 anos nenhum antibiótico hoje em uso será capaz de combater mais nenhuma doença bacteriana.

- Continua após o anúncio -



   PREVALÊNCIA E TAXA DE EMERGÊNCIA

           Em 2019, a nível mundial, é estimado que 4,95 milhões de mortes estavam associadas à resistência bacteriana (!). Na União Europeia, estima-se que 75% dessas mortes ocorrem em instalações hospitalares ou durante tratamentos médicos, a maioria atingindo idosos e crianças muitos novas, e 39% estão ligadas a bactérias resistentes aos antibióticos mais potentes hoje disponíveis, como a colistina e os carbapenemos. A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera a resistência bacteriana uma das 10 maiores ameaças globais de saúde pública. 

          Segundo um estudo publicado em 2019 no periódico UEG Journal (Ref.22) a resistência a antibióticos comuns usados para tratar bactérias patogênicas e relacionadas com uma variedade de condições estomacais mais do que dobrou em 20 anos (1998-2018). Analisando 1232 pacientes de 18 países ao redor da Europa, os pesquisadores encontraram que resistência à claritromicina - usado tipicamente para tratar infecções causadas pela espécie Helicobater pylori que atingem a parede estomacal (gastrite), e a qual pode levar a úlceras e cânceres na região - aumentou de 9,9% para 21,6%. Na Itália é onde foi registrado o maior percentual no ano passado (~40%). É estimado que essa bactéria está presente em metade da população mundial.


O uso descontrolado de antibióticos é uma das principais causas da resistência bacteriana

          Já um estudo publicado em 2021 na Science (Ref.23) mostrou que desde o ano 2000 a resistência a antibióticos em bactérias causadoras de doenças facilmente transmitidas de animais não-humanos para humanos quase triplicou. Com o consumo cada vez crescente de carnes - aumento em mais de 64-68% na África e na Ásia e em cerca de 40% na América do Sul -, o uso de antibióticos em animais como bovinos e suínos se tornou mais do que excessivo e irresponsável, fomentando a evolução de resistência em várias espécies bacterianas. Aliás, a produção de carnes responde por 73% do uso global de antibióticos. O estudo, em específico, focou na emergência de resistência em quatro clados de bactérias: Escherichia coli, Campylobacter, Salmonella e Staphylococcus aureus. Analisando estudos publicados entre 2000 e 2018, os pesquisadores encontraram que a proporção de antibióticos mostrando taxas de resistência acima de 50% em países desenvolvidos aumentou em galinhas de 0,15 para 0,41 e, em porcos, de 0,13 para 0,34, ou seja, os tratamentos com antibióticos tradicionais falharam 41% das vezes em galinhas e 34% das vezes em porcos criados para o consumo humano.

            Particularmente preocupante é o desenvolvimento de resistência nos patógenos bacterianos (Escherichia coli, Klebsiella pneumoniae, Staphylococcus aureus, Streptococcus pneumoniae e Salmonella não-tifoide) que causam as infecções mais comuns. Resistência a fármacos antibacterianos que são comumente usados para tratar infecções causadas por essas bactérias patogênicas (ex.: E. coli resistente a cefalosporinas de terceira geração e fluoroquinolonas; K. pneumoniae resistente a cefalosporinas de terceira geração e carbapenêmicos; S. aureus resistente a meticilina; S. pneumoniae resistente a penicilina; e Salmonella não-tifoide resistente a fluoroquinolonas) tem emergido e se espalhado globalmente junto com o aumento global do consumo de antibióticos, impondo sério risco à saúde pública (Ref.28).

-----------
(!) Em um estudo publicado recentemente no periódico Communications Medicine (Ref.29), pesquisadores alertaram que o uso do termo 'resistência antimicrobiana' e de outros associados* é abstrato e não está transmitindo para o público a seriedade do problema que estamos enfrentando. Além disso, não são termos memoráveis e impactantes, como 'câncer'. 

*Exemplos de outros termos comuns usados: "resistência bacteriana", "superbactérias", "resistência antimicrobiana", "infecções resistentes a medicamentos", "resistência antibiótica".
-----------

- Continua após o anúncio -



   MECANISMO DE RESISTÊNCIA

           Desde a descoberta da penicilina na década de 1920, medicamentos antimicrobianos - em especial antibióticos - têm sido protagonistas na redução da mortalidade e comorbidades causadas por doenças infecciosas comuns. No entanto, o uso disseminado e excessivo de fármacos antimicrobianos se tornou um das maiores forças fomentando resistência antimicrobiana.

          Para entender melhor como essas superbactérias estão emergindo a níveis e taxas alarmantes, vamos a um exemplo hipotético. Imagine que uma população de um certo tipo de bactérias atacando o corpo de uma pessoa é alvejada com um antibiótico específico. Grande parte delas irá morrer na primeira dosagem, e o resto sobrevivente será composto daquelas normais que escaparam por sorte e daquelas  naturalmente resistentes àquele antibiótico. Em uma situação normal, as não-resistentes que sobraram (maioria) irão se reproduzir mais do que as resistentes, sufocando essas últimas e atingindo uma população estável mas menor do que a original. Se outra dose do antibiótico fosse adicionada nesse momento, o mesmo processo ocorreria, e, depois de outras doses seguindo o mesmo padrão, toda aquela população bacteriana morreria devido ao seu escasso número frente às defesas do sistema imune do paciente. Esse seria o momento da cura. Porém, três situações nada desejáveis podem ocorrer durante a administração dos antibióticos.

Neste experimento, no recipiente esquerdo foi colocado bactérias normais junto com antibióticos (pastilhas brancas), e, como esperado, as áreas ao seu redor ficaram livres delas (sombras escuras); já no recipiente da direita, foram colocados as pastilhas em cima de bactérias resistentes, e apenas um dos antibióticos surtiu o efeito esperado, com grande parte dessas bactérias permanecendo vivas na cultura. Isso é exatamente o perigo que estamos enfrentando.


            A primeira situação seria uma super dosagem do antibiótico. Com isso, praticamente todas as bactérias não-resistentes daquela população morreriam. Sem sobreviventes suscetíveis à ação do medicamento, sobrariam apenas as resistentes. Sem concorrentes, essas mais resistentes começariam a se reproduzir em massa, criando uma população superpoderosa: as superbactérias. A partir deste ponto, aquele antibiótico não irá fazer efeito nenhum, e, se elas estiverem no corpo de um paciente, este apresentará uma piora no quadro clínico, além do grande potencial de contágio para outras pessoas ao redor com uma cepa resistente.

           Outra situação que facilita a criação de superbactérias seria a ingestão de antibióticos sem respeitar os horários prescritos por um profissional da saúde. Voltando à situação descrita no parágrafo anterior, se você toma uma dose de medicamento agora e não dá tempo para que a população das bactérias fracas cresça, tomando outra dose de forma adiantada, você acabará matando muitas delas em um curto espaço de tempo, deixando o caminho livre para as resistentes. Por isso é importante seguir religiosamente os horários estabelecidos pelo médico.

           Já a terceira situação preocupante é o uso frequente, abusivo e sem necessidade de antibióticos, algo que vai selecionando bactérias resistentes diversas e aleatórias no ambiente, deixando pouco espaço para as bactérias não-resistentes manterem ou retomarem o controle populacional. Aqui também entra o uso abusivo e muitas vezes desnecessário de antibióticos em animais de criação (galinhas, vacas, etc.), os quais acabam se transformando em mais uma fonte de superbactérias e também podem contaminar o ambiente em volta com antibióticos (até 90% dos antibióticos dados a esses animais acabam sendo excretados pela urina e pelas fezes).

            Para piorar a situação, as bactérias também conseguem incorporar genes de resistência em seu material genético oriundos de outras bactérias, via transferência horizontal de genes (1). Assim, um certo tipo de bactéria resistente aos antibióticos pode passar sua resistência para outros tipos. E isso é grave. Ficamos preocupados com a resistência sendo criadas diretamente por bactérias causadoras de doenças, mas diversas outras inofensivas para nós podem estar se tornando também resistentes e passando essa resistência para outras nocivas, em uma rede de transferências de genes através do solo, animais e água. Esse material genético livre em tráfego é resistente a degradações, possibilitando a incorporação por outros organismos mesmo após viajar longas distâncias. Assim, o exagero e mau uso dos antibióticos afetam de forma preocupante todo o ambiente bacteriano à nossa volta, aumentando perigosamente o leque de possibilidades adaptativas desses seres.


         Aliás, um estudo publicado na ACS' Environmental Science & Technology (Ref.18) mostrou que até mesmo o ar está sendo substancialmente poluído com genes de resistência, tornando a atmosfera terrestre um potencial veículo de disseminação e de amplo alcance da resistência bacteriana. As bactérias contaminam o ambiente à sua vota com genes de resistência e estes acabam sendo carregados pelo ar, contaminando outros ambientes ou seres vivos. O estudo em específico analisou 19 cidades ao redor do mundo, incluindo San Francisco, Pequim e Paris, na busca por 30 genes de resistência contra sete classes comuns de antibióticos: quinolonas, beta-lactamas, macrolídeos, tetraciclinas, sulfonamidas, aminoglicosídeos e vancomicinas. Pequim mostrou ter o mais diversos grupo de genes de resistência presentes no ar, com 18 subtipos diferentes detectados, enquanto San Francisco possuía a maior quantidade desses genes. No geral, os dois tipos mais abundantes eram os genes resistentes às beta-lactamas e às quinolonas.

          Um estudo mais recente publicado no periódico Philosophical Transactions of the Royal Society B (Ref.24) reforçou a hipótese do "tráfego aéreo" de bactérias ao encontrar que bactérias termófilas da mesma espécie (Thermus thermophillus) vivendo em fontes termais no Monte Vesúvio na Itália, em fontes termais na região de El Tatio no norte do Chile e nas Termas del Flaco no sul do Chile, e nas fontes termais em Kamchatka, Rússia, compartilhavam memórias moleculares (relativas ao sistema de defesa CRISPR-Cas) extremamente similares entre si. Isso sugere que essas bactérias podem estar migrando pelo ar para alcançarem lugares tão isolados e tão distantes entre si. Se populações dessa espécie estivessem isoladas entre si, evoluindo de forma independente, semelhanças genéticas tão idênticas provavelmente não existiriam.

          Outro exemplo nesse sentido foi revelado por um estudo publicado no periódico Environment International (Ref.19), o qual identificou a presença de bactérias resistentes a multi-antibióticos no Alto Ártico da Noruega, um lugar remoto e altamente isolado. E alguns dos genes de resistência apontados nesses microrganismos mostraram ter origem aparente da Índia, os quais primeiro tinham sido descobertos nesse país há apenas alguns anos. Os pesquisadores geneticamente sequenciaram 40 amostras de solo coletadas em 2013 de 8 localidades na região de Kongsfjorden, Svalbard, identificando 131 genes de resistência a antibióticos. Um deles, o blaNDM-1, foi primeiro revelado na Nova Déli, em 2010, e é responsável por ativar resistência contra antibióticos carbapenemos. Ou seja, a disseminação desse gene demorou apenas 3 anos para sair de uma zona temperada e chegar até o Alto Ártico, o que demonstra o quão rápido está ocorrendo o alastramento geográfico da resistência bacteriana. Esses  genes podem ter sido transferidos horizontalmente para as bactérias nativas dessa remota região através de vários meios, incluindo ar e animais  - principalmente pássaros e humanos -, e provavelmente através de fezes nesse último caso.

           É importante também frisar que a emergência de resistência nas bactérias aos antibióticos por seleção natural é comum na natureza e muito mais antiga do que o uso terapêutico de antibióticos por humanos. Isso porque os antibióticos são produzidos, ou baseados, em toxinas produzidas por fungos que visam deter a proliferação de bactérias - reduzindo a disputa por recursos nutricionais no ambiente entre populações bacterianas e fúngicas. Portanto, é mais do que natural uma "corrida armamentista" entre esses dois tipos de organismos, onde toxinas fúngicas cada vez mais poderosas são respondidas com mecanismos de defesa bacteriana cada vez mais poderosos. Aliás, a penicilina, descoberta em 1928, e o primeiro antibiótico do mundo, foi extraída justamente de fungos.

        Somando-se a isso, como os antibióticos estão sempre sendo utilizados em situações normais de real necessidade, casos de resistência bacteriana fomentados pela intervenção humana nunca irão deixar de existir. Por isso em hospitais é comum surgirem cepas resistentes, já que é um ambiente onde pacientes estão frequentemente sob tratamento com antibióticos. As ações de combate à resistência bacteriana promovidas pelas agências de saúde, portanto, visam apenas desacelerar a escalada da resistência bacteriana ao redor do mundo, dando tempo para o desenvolvimento de novos medicamentos mais eficazes e a otimização dos métodos de prevenção. 


Mais informações:

   TRANSFERÊNCIA HORIZONTAL CARRY-BACK

          Entender todos os processos pelos quais a resistência bacteriana surge é de fundamental importância para combater a atual crise que vivemos devido à disseminação cada vez maior das superbactérias. Em 1973 foi proposta a hipótese de que genes de resistência encontrados em algumas superbactérias gram-negativas poderiam estar vindo de uma classe de bactérias - Actinobactérias, especialmente do gênero Streptomyces - que produzem mais de três quartos dos antibióticos que hoje utilizamos. Esses genes de resistência específicos, responsáveis por enzimas que anulam os efeitos dos antibióticos, são utilizados pelas actinobactérias como auto proteção contra seus antibióticos, estes os quais são usados para impedir outras de crescerem em seu ambiente e, assim, aumentar a oferta de recursos por diminuir a competição.

           Um estudo publicado em 2017 na Nature (Ref.10) encontrou forte evidência suportando essa hipótese. Os pesquisadores, analisando bactérias resistentes, encontraram genes de resistência muito parecidos com aqueles das Actinobactérias, sendo que em um caso específico eles eram 100% idênticos! Esses genes estariam trafegando entre bactérias via transferência horizontal de genes, na forma de um mecanismo denominado ´carry-back´, o qual envolve uma espécie de "sexo" entre as bactérias.

          Resumidamente, o processo pode ser explicado em três passos:

1°. A bactéria Gram-negativa injeta seu DNA na Actinobactéria, através de um mecanismo naturalmente encontrado na primeira, chamado de conjugação, no qual a célula bacteriana consegue introduzir seu material genético em outras células bacterianas - é considerado pelos cientistas como um equivalente de relação sexual entre esses microrganismos, já que ocorre uma troca de informações genéticas. Mesmo em bactérias Gram-positivas, como as Actinobactérias, bem diferentes das Gram-negativas, o processo é conhecido de ocorrer.

2°. Dentro da Actinobactéria, o DNA injetado é mesclado com o DNA ali presente, o qual contém os genes de resistência. Depois que a Actinobactéria morre, o DNA recombinante é liberado no ambiente.

3°. Por último, o DNA injetado - e combinado com o DNA da Actinobactéria - consegue agir como uma "cola" e mediador, reconhecendo e mesclando-se com o DNA de bactérias gram-negativas patógenas no ambiente, através de um fenômeno chamado de transformação natural, e acaba levando consigo os genes de resistência nele incorporados. Com isso, surge uma bactéria resistente a um tipo de antibiótico, esta a qual poderá ser selecionada e se espalhar.

           Conhecer de onde os genes de resistência se originam são muito importantes na criação de novos antibióticos mais eficientes. Nesse caso do carry-back, é possível testar vulnerabilidades das Actinobactérias e explorá-las nos antibióticos sintéticos.


   EVOLUÇÃO AO VIVO

          Em 2016, a Havard Medical School liberou um famoso vídeo mostrando a evolução de resistência bacteriana em uma cultura de bactérias inicialmente vulnerável a um antibiótico (com taxa virtualmente zero de sobreviver em contato com o fármaco). Nas barras de números mostradas no vídeo, nos cantos extremos, não existe antibiótico, e é onde podemos observar massiva proliferação das bactérias (mancha branca); nas outras barras pretas convergindo para o centro, onde a presença de antibióticos passa a aumentar exponencialmente, até chegar a 1000 vezes a concentração da primeira barra contendo o medicamento, bactérias quase inexistem. No decorrer do vídeo, podemos ver uma rápida resposta evolutiva ocorrer, com bactérias resistentes ao antibiótico sendo selecionadas e exibindo notável proliferação no meio, progressivamente tomando conta de todo o sistema. Em outras palavras, superbactérias emergiram e/ou foram selecionadas devido à pressão farmacológica, proliferaram-se e as nova população resistente substituiu a população bacteriana prévia menos resistente. E isso tudo em apenas 11 dias! 
           

            


Mais informações:

- Continua após o anúncio -


   GONORREIA

          Um caso de destaque global relativo à resistência bacteriana é a bactéria Neisseria gonnorrhoeae, responsável pela gonorreia, uma doença sexualmente transmissível. Desde a década de 1980, essa bactéria vem evoluindo uma agressiva e contínua resistência aos antibióticos, obrigando o abandono de vários dos fármacos tradicionais como primeira linha de tratamento - penicilina, tetraciclina, ciprofloxacino e, mais, recentemente, a cefixima. Atualmente, o tratamento padrão envolve tipicamente a combinação de duas drogas - a ceftriaxona injetável e a azitromicina oral.



         A N. gonorrhoeae ainda não é amplamente resistente à ceftriaxona, mas duas cepas já isoladas - H041 e F89 - já se mostraram totalmente resistentes a esse antibiótico. Além disso, há alguns anos um homem Britânico foi infectado com uma superbactéria dessa espécie que, até o momento, não conseguiu ser detida com nenhum antibiótico (2). Teme-se que, em breve, a gonorreia possa se tornar uma doença intratável. Só nos EUA, são cerca de 800 mil casos anuais da doença, e 78 milhões estimados ao redor do mundo. Um relatório de 2019 da OMS reportou que mais de 1 milhão de pessoas são infectadas diariamente com quatro infecções sexualmente transmissíveis (gonorreia, tricomoníase, sífilis e clamídia), e com a gonorreia respondendo por 24% desses casos (Ref.21).


          Nesse sentido, um estudo publicado no periódico mBio (Ref.14) buscou decifrar o caminho evolucionário que levou à atual super-resistência da N. gonorrhoeae. Os pesquisadores primeiro mostraram que as mutações de resistência à ceftriaxona nas cepas HQ41 e F89 vieram com um relativo alto custo de fitness. Nesse caso, as mutações dramaticamente prejudicaram a taxa de crescimento dessa bactéria, algo até já esperado, considerando que as mudanças genéticas associadas alteram principalmente a enzima bacteriana que é alvo da ceftriaxona - proteína de ligação PBP2, vinculada ao gene penA . Ao mesmo tempo que as mutações tornam mais difícil para a droga se ligar à essa proteína, elas tornaram essa última menos eficiente em sua tarefa original de construir e reparar a parede celular da bactéria.

          Isso, à primeira vista, teria feito com que a nova bactéria se tornasse menos competitiva com outras da mesma espécie. Porém, quando os pesquisadores juntaram as cepas resistentes à ceftriaxona com as não-resistentes, e injetaram a mistura em ratos, aquelas resistentes com mutações que limitavam seu crescimento rapidamente ganharam mutações extras compensatórias durante a competição e até mesmo começaram a ganhar a disputa com as não-resistentes e de rápido crescimento. Experimentos iniciais mostraram que as mutações compensatórias no DNA atuaram de forma notável na expressão da enzima AcnB, esta a qual está associada com a produção de energia celular que alimenta o crescimento bacteriano. E a forma mutante da enzima não só altera o metabolismo energético como também causa extensivas mudanças na atividade de vários outros genes que regulam o metabolismo de carbono e de energia.

          O objetivo agora dos pesquisadores é detalhar o máximo possível esses caminhos evolutivos para tentar traçar melhores estratégias na luta contra as cepas resistentes da N. gonorrhoeae. O estudo também deixa o alerta que as mutações compensatórias podem facilitar a disseminação descontrolada das novas formas mais resistentes.

- Continua após o anúncio -



   A HORA DE AGIR É AGORA

          Considerada hoje como uma das maiores ameaças à humanidade, a resistência bacteriana pode tornar intratáveis diversas doenças causadas por bactérias com o nosso atual arsenal de medicamentos. E essa situação não afeta apenas o tratamento dessas doenças em particular, mas todas as situações em que os antibióticos são necessários para prevenir a instalação de graves infecções no nosso corpo, como nas cirurgias. Simples cesarianas ou qualquer outro tipo de procedimentos cirúrgicos com um mínimo de complexidade, mas não tão essenciais, acabariam não podendo ser realizados porque os riscos não valeriam a pena. Ora, um dos grandes problemas nos hospitais são as infecções bacterianas e sem medicamentos para preveni-las de chegarem nos pacientes tudo se tornaria extremamente perigoso de ser realizado nos centros de saúde, especialmente em pessoas já debilitadas. A situação é bem grave.

            O grande entrave é que o problema da resistência bacteriana é subvalorizado e pouco difundido. Seria de fundamental importância uma reeducação no uso de antibióticos pela população, além de melhor tratamento dos doentes em hospitais para evitar contaminações amplas. E é comum vermos as pessoas tomando antibióticos para qualquer coisa. Deu uma febre maior ou uma gripe mais demorada, e já estão se entupindo, desnecessariamente, de antibióticos, mesmo com esses medicamentos só sendo eficazes apenas contra bactérias (e para cada tipo, existe um específico).  E além da criação das superbactérias, o uso constante e irresponsável dos antibióticos danifica sua microbiota intestinal, a qual é composta de bactérias boas e que acabam morrendo no processo. E o pior: bactérias maléficas passam a tomar conta do seu intestino, já que está sem sua população protetora, fazendo você perder diversos benefícios proporcionados pelas bactérias boas ao seu corpo. Aliás, várias superbactérias podem ser selecionadas no intestino, podendo ser uma ameaça futura para você ou outras pessoas ao seu redor.

         
A amoxicilina é um dos antibióticos mais utilizados no mundo, especialmente aqui no Brasil; é preciso ter extremo cuidado ao usá-lo, sempre seguindo orientações médicas; tomá-lo como se fosse um xarope é um dos erros mais graves cometidos pelas pessoas, o que leva a drásticas consequências



         E não são apenas as pessoas que acabam usando erroneamente os antibióticos. Estudos recentes mostram que 30-50% das indicações de tratamento, escolha do agente ou duração da terapia com antibióticos são incorretamente determinados pelos médicos. Além disso, 30-60% dos antibióticos prescritos em unidades de tratamento intensivo (UTI) já foram encontrados serem desnecessários, inapropriados ou sub-ótimos. Um estudo clínico randomizado controlado mais recente, publicado no periódico International Forum of Allergy and Rhinology (Ref.27), encontrou que os antibióticos não são necessários para pacientes após a maioria das cirurgias endoscópicas rotineiras de sino, mesmo o uso profilático sendo quase sempre prescrito. E mais: nesse estudo, os pacientes recebendo antibióticos mostraram-se 10 vezes mais prováveis de reportarem sintomas gastrointestinais deletérios, como diarreia. Todas essas prescrições incorretas acabam fomentando a resistência bacteriana. Concentrações sub-terapêuticas e sub-inibitórias de antibióticos podem promover também o desenvolvimento de resistência bacteriana ao suportar alterações genéticas, como mudanças na expressão de genes, THG e mutagênese. 

          Pesquisadores também estão preocupados não só com o uso indiscriminado ou incorreto de antibióticos, mas com o excesso deles sendo prescritos para qualquer pequena infecção bacteriana, especialmente aquelas que atacam o trato respiratório superior (como garganta inflamada). Pequenas infecções como sinusite, tonsilite, bronquite e certas infecções renais respondem por cerca de 90% do uso de antibióticos, e provavelmente são o principal condutor da resistência bacteriana sendo observada atualmente. 

          É bem comum médicos receitarem amoxicilina para crianças e adultos para o tratamento de infecções do trato respiratório superior e, como ele é um antibiótico que abrange um grande espectro de alvos, acaba atuando não só na garganta mas também na flora intestinal. Segundo especialistas, é preciso urgentemente criar novas alternativas de tratamento para essas infecções pouco perigosas, as quais muitas vezes acabam sendo combatidas rapidamente pelo próprio corpo da pessoa com alguns empurrõezinhos, como descanso, boa hidratação e boa alimentação. Novos medicamentos que deem também um pequeno empurrão de ajuda no corpo seriam a melhor forma de lidar com essas infecções mais leves e atenuar drasticamente o processo evolucionário bacteriano via antibióticos. É estimado que cerca de metade dos antibióticos usados em humanos e boa parte daqueles usados em animais são desnecessários e inapropriados


     
           Nessa linha, outro desafio é criar medicamentos otimizados que matem quase 100% das bactérias infecciosas, não deixando espaço para o surgimentos de cepas resistentes.  Em anos recentes, diversos grandes avanços foram dados nessa área (3), mas ainda são insuficientes. Duas das causas para essa insuficiência podem ser facilmente apontadas: falta de financiamento e regulamentação excessiva. 

          É bem conhecido que empresas farmacêuticas não gostam de investir muito em antibióticos porque esses medicamente geram margens de lucro muito menores do que aqueles que visam enfermidades crônicas, como diabetes e doenças neurodegenerativas. Isso sem contar que profissionais de saúde evitam receitar novos antibióticos com medo de faltar opções de medicamentos para casos de resistência bacteriana, o que diminui ainda mais as vendas. E fora do investimento privado, o investimento governamental passa longe do desejado. Além disso, mesmo empresas e grupos de pesquisa com suficientes recursos encontram dificuldade em lançar ou realizar testes clínicos com novos antibióticos por causa do excesso de regulações e normas que precisam ser cumpridas, as quais geralmente tornam o processo demorado e frequentemente frustrante. De fato, continuamente novas classes de promissores antibióticos são descobertas, mas esbarram nos complicados testes clínicos em humanos (Ref.30).


            Algumas áreas de pesquisa focam em encontrar e estudar os genes de resistência no material genético das bactérias, como o estudo anteriormente mencionado sobre a bactéria da gonorreia. No passado, decodificar o genoma bacteriano custava centenas de milhares de dólares e, hoje, os custos não ultrapassam os 50 dólares, e é algo que se pode fazer em um curtíssimo intervalo de tempo. Portanto, as análises desses genes resistentes podem gerar grandes avanços na formulação de medicamentos e/ou tratamentos mais seguros.

          Uma estratégia alternativa aos antibióticos que possui bastante potencial foi proposta mais recentemente em um estudo publicado no periódico Nature Biotechnology (Ref.25). Aproveitando o principal processo de propagação de resistência bacteriana (conjugação), os pesquisadores resolveram testar a transferência de sequências genéticas engenhadas entre bactérias que codificam uma toxina (no caso, uma proteína chamada de CcdB) e seu antídoto (a proteína CcdA) para a espécie Vibrio cholerae (causadora da cólera). O sistema é projetado de forma a fazer com que a toxina seja produzida somente na V. cholerae e que o antídoto seja produzido apenas nas V. cholerae sensitivas aos antibióticos (não-resistentes), ou seja, matando apenas as V. cholerae resistentes. Para garantir que apenas bactérias V. cholerae codifiquem a toxina, os pesquisadores projetaram sequências genéticas que precisam de proteínas específicas dessa espécie para se tornarem funcionais e também um sistema de atraso para que a toxina não seja codificada em excesso (o que pode ameaçar outras bactérias ao redor). O protocolo pode servir de base para diversas outras espécies.




          Medidas bem mais simples e práticas podem também ser implantadas para reduzir infecções bacterianas em hospitais que vão além dos métodos tradicionais. Por exemplo, em um estudo publicado na Applied and Environmental Microbiology (Ref.26), pesquisadores mostraram que o uso de camas de cobre nos quartos hospitalares nas Unidades de Tratamento Intensivo (UTI) podem reduzir em mais de 95% do número de bactérias associadas próximo dos pacientes. As propriedades anti-bacterianas do cobre (Cu) são conhecidas desde a Antiguidade, onde na Índia Antiga (prática Ayurveda) a água de beber era frequentemente armazenada em recipientes produzidos com esse metal para ajudar na prevenção de doenças.

----------
OBSERVAÇÃO: A resistência aos medicamentos pode afetar quaisquer microrganismos, já que lida com processos evolutivos, incluindo vírus, bactérias e fungos. Inseticidas também geram resistência em insetos, por exemplo.
-----------
- Continua após o anúncio -



ATUALIZAÇÃO (12/08): O Centro para Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC) tinha reportado em abril deste ano um surto de bactérias Shigella sonnei resistentes à ciprofloxacina, uma das últimas drogas que funcionavam no tratamento deste patógeno. Até agora, foram confirmados 275 casos de resistência a esse medicamento (entre março de 2014 e maio de 2015) no país. As autoridades aumentaram o alerta máximo em hospitais. O Shigella sonnei causa fortes diarreias e intoxicação alimentar.
  1. http://www.cdc.gov/features/getsmart/index.html 
 


Artigos relacionados 

    REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
    1. http://www.cdc.gov/drugresistance/
    2. http://www.fda.gov/ForConsumers/ConsumerUpdates/ucm092810.htm
    3. https://www.gov.uk/government/collections/antimicrobial-resistance-amr-information-and-resources
    4. https://www.niaid.nih.gov/topics/antimicrobialresistance/Pages/default.aspx
    5. http://www.health.gov.au/internet/main/publishing.nsf/Content/ohp-amr.htm
    6. https://www.betterhealth.vic.gov.au/health/conditionsandtreatments/antibiotic-resistant-bacteria
    7. https://www.whitehouse.gov/sites/default/files/docs/national_action_plan_for_combating_antibotic-resistant_bacteria.pdf 
    8. http://www.fda.gov/ForConsumers/ConsumerUpdates/ucm519931.htm 
    9. http://www.bbc.com/news/health-37420691
    10. https://www.nature.com/articles/ncomms15784
    11. https://www.nature.com/news/antibiotic-resistance-has-a-language-problem-1.21915
    12. https://www.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/652262/Antibiotic_Awareness_Key_messages_2017.pdf
    13. http://journals.plos.org/plosbiology/article?id=10.1371/journal.pbio.2003533
    14. http://mbio.asm.org/content/9/2/e01905-17.full?sid=6e794eac-aab2-441a-8b49-732812b252fd
    15. https://www.cdc.gov/drugresistance/about.html
    16. https://www.cdc.gov/antibiotic-use/community/about/antibiotic-resistance-faqs.html
    17. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4378521/
    18. https://pubs.acs.org/doi/abs/10.1021/acs.est.8b02204
    19. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S016041201832587X
    20. https://www.thelancet.com/journals/laninf/article/PIIS1473-3099(18)30605-4/fulltext
    21. https://www.who.int/news-room/detail/06-06-2019-more-than-1-million-new-curable-sexually-transmitted-infections-every-day
    22. Megraud, F et al., 2019. European survey of Helicobacter pylori primary resistance to antibiotics - Evolution over the last 20 years. Presented at UEG Week Barcelona October 21, 2019
    23. https://science.sciencemag.org/content/365/6459/eaaw1944
    24. https://royalsocietypublishing.org/doi/10.1098/rstb.2018.0092
    25. López-Igual, R. et al. Nature Biotechnol. https://doi.org/10.1038/s41587-019-0105-3 (2019).
    26. https://aem.asm.org/content/aem/early/2019/10/14/AEM.01886-19.full.pdf
    27. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/alr.22756
    28. Ren et al. (2023). Global trend of antimicrobial resistance in common bacterial pathogens in response to antibiotic consumption. Journal of Hazardous Materials, Volume 442, 130042. https://doi.org/10.1016/j.jhazmat.2022.130042
    29. Krockow et al. (2023). Existing terminology related to antimicrobial resistance fails to evoke risk perceptions and be remembered. Communications Medicine 3, 149. https://doi.org/10.1038/s43856-023-00379-6
    30. https://www.nature.com/articles/d41586-023-04086-z