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Quais são as contribuições teóricas de Turing na Biologia e na Química?


- Atualizado no dia 6 de outubro de 2023 -

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          Em 2018, pesquisadores na China desenvolveram um filtro que remove sais minerais da água cerca de três vezes mais rápido do que os filtros convencionais usados nesse tipo de tarefa. As membranas constituintes da estrutura desse inovador filtro possuem um nanoestrutura única de extensões tubulares e pontuais, e são inspiradas no trabalho teórico do cientista e matemático Alan Turing, o famoso codebreaker e herói da Segunda Guerra Mundial. Apesar disso ser pouco conhecido, Turing também deixou uma importante contribuição nas áreas de química e de biologia no início da década de 1950, essencial para a produção dessas membranas.

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   ALAN TURING

         O Britânico Alan Turing (1912-1954), um grande matemático, criptografo e pioneiro na ciência da computação, foi peça chave na Segunda Guerra Mundial. É estimado que os seus trabalhos teóricos na decifração dos códigos militares Alemães encurtou em mais de 2 anos a guerra e salvou mais de 14 milhões de vidas. Porém, o fato dele ser homossexual - estando envolvido amorosamente com um homem de Manchester - foi motivo para que fosse condenado à prisão em 1952, no Reino Unido. Para escapar da pena, ele aceitou passar pela castração química (1). Com isso, ele acabou levando uma vida de intenso sofrimento e supostamente se suicidou ao morder uma maça envenenada com cianeto em 1954.


         Mesmo antes da sua marcante participação na Segunda Guerra Mundial, Turing já era um matemático de extraordinária capacidade. Durante seu período na King´s College, Cambridge University, ele concebeu a 'Máquina de Turing' - uma máquina universal que poderia imitar todos os dispositivos de cálculo, e considerada a mais influente abstração matemática do século XX. Nessa época, ele tinha 22 anos, e acabou sendo eleito Fellow da faculdade em 1935.

         Apesar de nunca ter referenciado a si mesmo como filósofo, seu artigo de 1950 "Computing Machinery and Intelligence" é um dos mais frequentemente citados na literatura de filosofia moderna. Nele, é abordado de forma original o tradicional problema corpo-mente, ao relacioná-lo com o conceito de computabilidade que Turing tinha introduzido em seu artigo de 1936-37 "On computable numbers, with an application to the Entscheidungsproblem". Essa coletânea de trabalhos acadêmicos pode ser considerada a fundação da ciência da computação e do programa de inteligência artificial. Aliás, seus feitos o levaram para os EUA, na universidade de Princeton, para aprofundar trabalhos avançados no campo de lógica e outros ramos da matemática. No entanto, acabou escolhendo voltar para o Reino Unido em 1938, sendo recrutado imediatamente na área bélica de comunicações.

        Nesse sentido, de 1939 até 1945, Turing ficou quase que totalmente engajado na missão de decifrar a máquina de códigos da Alemanha - Enigma - e em outras investigações criptológicas na agora famosa Bletchley Park, o centro de comunicações governamentais do Reino Unido durante o período de guerra.

         Após seus incríveis feitos na Segunda Guerra Mundial, Turing voltou seu intelecto e trabalhos acumulados para a criação de um computador eletrônico na forma moderna como hoje o conhecemos. Porém, seus planos, apesar de apoiados pela National Physical Laboratory, Londres, foram ofuscados pelos projetos Norte-Americanos mais pesadamente suportados em termos financeiros. O que aconteceu é que as ideias de Turing se disseminaram e alavancaram essa área da computação, porém, ele mesmo recebeu poucos créditos, porque seus feitos e esforços durante a guerra ficaram em total segredo (aliás, desconhecidos até a década de 1970). Com pouco reconhecimento e suporte, acabou frustrado e resolveu passar seu tempo treinando como corredor maratonista, e quase se qualificou para o time Britânico nos Jogos Olímpicos de 1948.

         Mas como sua real paixão era a ciência, ele rapidamente voltou sua atenção para os problemas teóricos relacionados com a computação e também com o poder da mente humana. No final de 1948, ele foi para a Manchester University, onde avançou bastante a área de sistemas computacionais. Em 1951 ele também foi eleito um Fellow da Royal Society pelo seu trabalho de 1936.

          O que poucos sabem, no entanto, é que no início da década de 1950 Turing também voltou sua genialidade para o campo da biologia, um território completamente novo para ele. Nessa área, Turing desenvolveu a Teoria da Morfogênese Biológica, detalhada em seu pouco conhecido artigo de 1952 publicado na Royal Society (Ref.4) e titulado de "The chemical basis of morphogenesis" (A base química da morfogênese). Infelizmente, esse e outros trabalhos seus foram prejudicados devido à criminalização da sua homossexualidade (2).


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   ESTRUTURAS DE TURING

         O trabalho de Turing em 1952 não passou de uma simples curiosidade acadêmica sem reais impactos. Pelo contrário.

         O artigo 'The chemical basis of morphogenesis' teoricamente analisou como duas substâncias químicas, ativador e inibidor, podem, sob certas condições, reagirem e se difundirem uma com a outra para a formação de estruturas espaço-temporais estacionárias. Esse trabalho profundamente influenciou o entendimento teórico dos padrões de formação em sistemas químicos e biológicos.

         Porém, apenas após 40 anos de publicação do seu trabalho - e muito depois da morte de Turing - é que evidências experimentais foram obtidas para a reação do ácido malônico-cloreto-iodeto que corroboravam as estruturas reveladas pelo cientista Britânico. Cerca de 10 anos mais tarde, estados estacionários de Turing foram também observados na reação de microemulsão Belousov-Zhabotinsky (BZ) consistindo de micelas reversas. E, nos últimos anos, uma variedade de estruturas estacionárias bidimensionais e tridimensionais estão sendo estudadas nas áreas de química e de biologia.

         As estruturas de Turing geralmente emergem em processos de reação-difusão que estão longe do equilíbrio termodinâmico, no qual o coeficiente de difusão do inibidor precisa ser maior do que o do ativador, resultando em um fenômeno de 'ativação local e inibição lateral' que fomenta a instabilidade dirigida via difusão. Nesse processo, o reagente de difusão mais rápido (inibidor) empurra de volta contra o mais devagar (ativador), efetivamente levando o produto reacional final a um padrão de pontos ou cordas. No entanto, essas duas condições não são facilmente satisfeitas em soluções homogêneas, já que a maioria das reações químicas envolvem moléculas pequenas com similar ou inapropriados coeficientes de difusão diferenciais.


         No trabalho específico de Turing de 1952, ele propôs um modelo matemático onde esse processo de difusão estaria atuando nas células de um embrião para a formação das suas estruturas - membros, ossos e órgãos. Em 1972, os biólogos Hans Meinhardt e Alfred Gierer formularam, de forma independente, uma teoria equivalente mais generalizada. No entanto, se esse processo ocorria a nível celular foi algo bastante debatido no meio acadêmico, apesar de ter sido já observado em diferentes sistemas e ter sido arquitetado artificialmente com sucesso em estruturas bidimensionais.

          Em 2014, no periódico Science (Ref.7), pesquisadores demostraram via modelos computacionais que o padrão periódico de formação dos dedos de animais - incluindo humanos (3) - durante o desenvolvimento embrionário é baseado no sistema proposto por Turing, no qual um ativador e inibidor difusíveis interagem e se auto-organizam, e com os caminhos de sinalização Bmp e WNT, junto com o gene Sox9, formando uma rede de Turing. De fato, estudos prévios e posteriores têm mostrado que as estruturas de Turing existem amplamente na natureza, como o padrão corporal das zebras, a filotaxia dos girassóis, os espaçamentos foliculares dos pelos de ratos, entre outros.

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(3) Aliás, os padrões únicos de impressões digitais nos nossos dedos são explicados pelo sistema reação-difusão de Turing. Entenda: Por que temos impressões digitais [dermatóglifos]?
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          Mais recentemente, a teoria matemática de Turing vêm também se mostrando útil para explicar padrões no campo da ecologia, como o comportamento de segregação de aves e de animais terrestres ao longo de um território (Ref.8) e os misteriosos 'círculos de fadas' - trechos circulares de terra em regiões áridas sem plantas, variando entre 2 e 15 metros de diâmetro, geralmente rodeados por um anel de grama - na Austrália (Ref.9). Inclusive até o padrão de movimentação da cauda dos espermatozoides é explicado matematicamente pelo sistema de reação-difusão de Turing (Ref.)! 


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   AVANÇO NA CHINA

        Com base nas análises teóricas das estruturas de Turing e nas observações experimentais ao longo dos anos, pesquisadores liderados pelo cientista Lin Zhang, da Universidade de Zhejiang, Hangzhou, China, conseguiram aplicar com sucesso esses modelos de difusão na polimerização interfacial orgânica-aquosa. O trabalho levou ao desenvolvimento de uma rota mais fácil para gerar estruturas de Turing em nanoescala com alta permeabilidade à água sob condições ambientes.

         A polimerização interfacial é uma reação de difusão caracterizada por ser um processo longe do equilíbrio termodinâmico. É baseada na reação Schotten-Baumann, na qual a polimerização irreversível de dois reagentes rápidos representados por monômeros multifuncionais ocorre próximo da interface de duas fases imiscíveis de um sistema líquido heterogêneo. Essa técnica vem sendo usada para a criar sistemas de osmose reversa e membranas de nano-filtração para aplicações de larga escala e de baixo custo na purificação de água.

         No estudo Chinês, publicado na Science (Ref.5), os pesquisadores utilizaram piperazina (PZ) como ativador e cloreto de trimesoil (TMC) como inibidor. Otimizando as técnicas utilizadas até agora para a formação de estruturas de Turing, eles conseguiram criar sistemas que atendiam às diferenças apropriadas dos coeficientes de difusão entre ativador e inibidor - através de efeitos sinérgicos de obstrução física e interação química, e adição de álcool polivinílico (PVA) à piperazina para diminuir sua taxa de difusão -, levando à instabilidade dirigida por difusão e gerando pontos e cordas em nanoescala. Isso permitiu a construção de estruturas de Turing tridimensionais de poliamida - TS-I (pontos) e TS-II (cordas). Com estruturas unitárias de apenas algumas dezenas de nanômetros de diâmetro, seria impossível produzi-las por outros métodos atualmente disponíveis, como impressoras 3D, sem o modelo teórico primeiro desenvolvido por Turing.


         As estruturas criadas mostraram-se membranas altamente eficientes para a filtração de água, superando filtros de nylon convencionais. Em testes de performance, essas membranas foram capazes de reduzir o conteúdo de cloreto de sódio de soluções levemente salinas pela metade. Também filtrou outros sais, incluindo cloreto de magnésio em mais de 90%, sulfato de sódio em mais de 99%, cloreto de cálcio em 92% e sulfato de magnésio em mais de 99%. Os pesquisadores ainda mostraram que 1 metro quadrado da membrana filtradora TS-II pode processar até 125 litros de água por hora bombeada a relativa baixa pressão em torno de 5 vezes a pressão atmosférica (5 atm). Isso é quase tão rápido quanto três vezes a performance de filtros comerciais. Na membrana TS-I, conseguiu-se um aumento da área superficial em torno de 19% e um aumento em torno de 36%  na TS-II em relação aos filtros convencionais. Em outras palavras, o 'filtro de Turing' pode ser usado para purificar águas salinas e águas industriais residuais com altíssima eficiência.

          Porém, como a membrana não é muito efetiva para a remoção de cloreto de sódio das águas, ela pode se mostrar impraticável para a dessalinização de águas marinhas (processo importantíssimo em diversos países com fontes de água potável limitadas, como no Oriente Médio e na Austrália), onde a custosa osmose reversa ainda é uma das melhores opções convencionais. Por outro lado, como essa é a primeira estrutura de Turing tridimensional com potencial de aplicabilidade, avanços futuros nessa área podem trazer verdadeiras revoluções tecnológicas, inclusive na produção de métodos super baratos de dessalinização marinha.

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ATUALIZAÇÃO (08/03/21): Em um estudo publicado no periódico Angewandte Chemie (Ref.10), pesquisadores usaram a teoria de 'reação-difusão' de Turing para construir complexas estruturas inorgânicas nanoestruturadas, baseadas em selênio de prata (Ag2Se) sobre uma superfície de selênio de cobalto (CoSe2). O tipo de material resultante mostrou-se um eficiente eletrocatalisador. O feito pode abrir caminho para o desenvolvimento de catalisadores mais baratos e com melhor performance.
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   CONCLUSÃO

          Alan Turing foi um dos grandes gênios do século XX, e seus trabalhos continuam impactando em vários campos da ciência, incluindo na química e na biologia. Sua partida precoce desse mundo reforça o perigo que o preconceito e a intolerância representam para o progresso da humanidade.


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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. https://www.cam.ac.uk/research/news/marking-the-centenary-of-turings-birth
  2. https://plato.stanford.edu/entries/turing/
  3. http://www.sciencemag.org/news/2013/12/gay-math-genius-receives-royal-pardon
  4. http://rstb.royalsocietypublishing.org/content/237/641/37
  5. http://science.sciencemag.org/content/360/6388/518
  6. https://www.nature.com/articles/d41586-018-05055-7
  7. https://science.sciencemag.org/content/345/6196/566
  8. Cass & Bloomfield-Gadêlha (2023). The reaction-diffusion basis of animated patterns in eukaryotic flagella. Nature Communications 14, 5638. https://doi.org/10.1038/s41467-023-40338-2 
Imagem de capa: Steve Meddle/REX/Shutterstock