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Doação de órgãos de porcos para humanos não é mais ficção!

- Atualizado no dia 12 de outubro de 2023 -

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          No mundo todo, a demanda por transplantes de órgãos vem aumentando ano após ano, devido principalmente ao acentuado crescimento populacional, maior expectativa de vida das pessoas, e aos grandes avanços e alcance da medicina nas últimas décadas. Aqui no Brasil o número de doadores de órgãos, segundo dados mais recentes, é de apenas 14,6 a cada 1 milhão de pessoas (14,6 pmp). Pesquisas de opinião sugerem que 43% das famílias brasileiras não autorizam a doação dos órgãos, muitas vezes por causa de desinformações. Mas mesmo países desenvolvidos também apresentam preocupantes taxas populacionais de doadores de órgãos, como Espanha (39,7 pmp), Croácia (39,0 pmp), Bélgica (32,4 pmp), Portugal (28,6 pmp) e EUA (28,5 pmp). Só nos EUA, 116 mil homens, mulheres e crianças estavam na fila de transplantes até agosto de 2017, e cerca de 20 pessoas morrem todos os dias nessas filas de espera. Na China, mais de 300 mil pacientes estão na fila de espera, mas apenas aproximadamente 10 mil deles conseguirão receber um transplante de órgão anualmente (Ref.19).

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> O Brasil é o segundo no mundo, em números absolutos, na realização do procedimento, atrás dos Estados Unidos, e cerca 88% dos transplantes são realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Mesmo assim, a fila de espera por órgãos é crescente.  De acordo com dados do Sistema Nacional de Transplantes, do Ministério da Saúde, até julho de 2022, cerca de 59 mil pessoas estavam na fila para transplantes no Brasil. A maior parte aguarda por rins e córneas. Ref.23
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           Para piorar a situação, apenas em torno de 3 a cada 1000 pessoas morrem de uma forma que permite a doação de órgãos (como morte cerebral) e os procedimentos de retirada desses órgãos devem ser realizados com urgência, para não existir danos nos tecidos que impossibilitem o transplante. Essa realidade torna imprescindível que alternativas sejam encontradas para que a demanda por órgãos seja satisfeita - como a produção de órgãos artificiais ou a partir de células tronco -, uma tarefa que tem se mostrado difícil.
*PC: Parada Cardíaca

            Contudo, em anos recentes, novos avanços em um campo já pesquisado há décadas, e visitado há centenas de anos, pode trazer uma ilimitada fonte de novos órgãos para transplante. Bem, você pode não ter um 'espírito de porco', mas, em breve, poderá ter um coração ou mesmo um rim de porco! Sim, alguns dos últimos empecilhos que atrapalhavam a doação direta de órgãos de porcos para humanos estão sendo vencidos no meio científico e a era dos xenotransplantes está muito próxima de ter início.

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ATUALIZAÇÃO: O primeiro procedimento de xenotransplante envolvendo o órgão cardíaco foi realizado em janeiro de 2022 na Universidade de Maryland, Baltimore, EUA (1). O paciente, David Bennett, de 57 anos, tinha uma doença cardíaca letal e recebeu, com sucesso, o coração de um porco geneticamente modificado (10 genes manipulados, incluindo ausência da molécula α-1,3-galactose na superfície celular), marcando um passo extremamente importante na medicina que oferece esperança para centenas de milhares de pacientes em terríveis filas de espera por órgãos humanos.


Após 8 horas de operação - conduzida pelo Dr. Bartley Griffith -, o paciente ganhou novo pulso e pressão sanguínea com o novo coração, "doado" por um suíno. Um transplante dessa natureza foi totalmente inédito na história da medicina. Aliás, o novo coração começou a realizar quase todo o trabalho circulatório do paciente pouco tempo depois. Nas primeiras 48 horas - período crítico - nenhum sinal de rejeição foi notado. 

Cirurgiões preparando o coração de porco antes de ser transplantado para o paciente.

O paciente exibiu forte função cardíaca sem sinais óbvios de rejeição aguda por quase 7 semanas pós-cirurgia. Porém, uma súbita falha cardíaca provocou a morte do paciente 2 meses após o transplante. Extensivas análises subsequentes ao evento, incluindo dados de ecocardiografia, mostraram que o coração transplantado estava funcionado bem até o 47° dia pós-cirurgia, e que a falha cardíaca provavelmente tinha causa multifatorial, em especial devido ao crítico estado do paciente antes do transplante (Ref.24). O sistema imune do paciente estava severamente comprometido, limitando a ação de medicamentos anti-rejeição, e tornando-o vulnerável a processos de rejeição - como apontado por evidências indiretas de rejeição anticorpo-mediada. Além disso, o uso intravenoso de imunoglobulina (IVIG) pode ter contribuído para danificar as células musculares do coração. IVIG foi dado ao paciente duas vezes durante o segundo mês pós-transplante para ajudar a prevenir infecções - mas provavelmente pode ter engatilhado respostas imunes contra o coração de porco.

Muitas lições foram aprendidas com o procedimento inédito, e cientistas esperam agora planejar um novo xenotransplante de coração mais seguro e com maior potencial de prolongar a vida do paciente por até vários anos.

> O paciente resolveu participar do experimento - aprovado com uma autorização de emergência do FDA - porque provavelmente estaria morto em poucos dias sem o novo coração. O porco geneticamente modificado foi desenvolvido e criado pela empresa Revivicor. O paciente também recebeu um medicamento experimental (anticorpo KPL-404) desenvolvido pela Kiniksa Pharmaceuticals e elaborado para reduzir ao máximo o risco de rejeição (via supressão de mecanismos chaves da imunidade celular). 


(1) Referências
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    BACKGROUND HISTÓRICO

           A alta demanda por órgãos para transplante aumenta cada vez mais o interesse e os esforços de pesquisadores na possibilidade de "doadores" serem recrutados de outras espécies de mamíferos. Primatas e porcos se tornaram nas últimas décadas os dois principais candidatos para o fornecimento de células e órgãos para humanos, sendo que os porcos ganham quase exclusividade hoje nesse campo de pesquisa.

           Mas o mais interessante é que o conceito de transplante entre espécies (xenotransplantes) não é novo, e um grande número de tentativas clínicas nos últimos 300 anos são bem documentadas. Aliás, se voltarmos ainda mais no tempo, encontramos a ideia do xenotransplante na Mitologia Grega, aos nos depararmos com a Quimera (um monstro cuspidor de fogo formado pela junção de um leão, bode e uma cobra), o Lamassu (também uma mistura entre espécies, incluindo a humana) e até mesmo Ícaro e o seu pai, Dédalo, os quais tentaram fugir da ilha de Creta para a Grécia continental com a ajuda de asas de gaivota anexadas aos seus braços. Ícaro, por voar muito perto do Sol, acabou derretendo a cera de abelha que ajudava a prender as penas, caindo para a sua morte no Mar Egeu.


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     XENOTRANSPLANTE DE SANGUE

          Bem, saindo das lendas e contos mitológicos, nós pulamos para o século XVII, quando Jean Baptiste Denis começou a prática de transfusão de sangue de animais para humanos. No geral, os resultados foram mistos e, como resultado, o xenotransplante foi banida na França por vários anos.

      XENOTRANSPLANTE DE PELE

            No século XIX, enxertos de pelo se tornaram relativamente populares entre várias espécies de animais e humanos - incluindo ovelhas, coelhos, gatos, ratos, galinhas e pombos. O enxerto ideal provavelmente devia ter sido de rã, e era formado ou por pele livre ou por um pedículo. Enxertos por pedículos eram complicados por requererem que o doador - uma ovelha, por exemplo - tivesse que ficar imobilizada e presa ao paciente por vários dias, tempo no qual, supostamente, o enxerto seria vascularizado pelo recipiente. Se isso ocorresse, o enxerto poderia ser desconectado do doador. De qualquer forma, nenhum desses procedimentos deve ter dado resultados minimamente positivos, apesar de existirem reportes de "sucesso". Talvez seja possível que alguns dos enxertos fossem casos onde o objetivo era apenas proteger um machucado ou uma úlcera na pele do paciente, dando tempo para a ferida ser curada. Mas é improvável que qualquer um desses enxertos tivesse tido qualquer sucesso como um transplante permanente.

      XENOTRANSPLANTE DE CÓRNEA

            Surpreendentemente, em 1838 foi realizado o primeiro xenotransplante de córnea na história, no caso, de um porco para um paciente humano, sendo que o primeiro alotransplante (de um humano para um humano) de córnea só ocorreu 65 anos depois, em 1905. Bem, o procedimento do início do século XIX não foi bem sucedido.

     "REJUVENESCIMENTO" E O XENOTRANSPLANTE

             Enquanto os xenotransplantes até o momento eram bastante limitados e ineficientes, avanços da medicina na área dos transplantes tradicionais marcaram grandes passos no século XX, quando o cirurgião francês experimental, Alexis Carrel, trabalhando primeiro na França e depois na América do Norte, desenvolveu técnicas de anastomose para os vasos sanguíneos, o que permitiu que o transplante de órgãos pudesse ser realizado com sucesso pela primeira vez (Para mais detalhes, acesse: O Polêmico Transplante de Cabeça). Carrel também desenvolveu um certo interesse nos transplantes entre espécies, pelo menos de uma perspectiva experimental.




           A primeira séria tentativa de xenotransplante apareceu na literatura científica em 1905, quando fatias de rins de coelho foram transplantados para uma criança com insuficiência renal (Ref.18). Nas duas primeiras décadas do século XX, vários subsequentes esforços para usar órgãos de cordeiros, porcos e primatas foram realizados, no entanto os resultados foram desapontadores.

             Ainda no início do século XX, Serge Voronoff, um imigrante russo trabalhando em Paris, desenvolveu o conceito de transplantar células que produziam um hormônio no qual o recipiente era deficiente. Outro visionário, Serge buscava algo que hoje fazemos com o transplante de ilhotas pancreáticas de doadores saudáveis para paciente com diabetes tipo 1 severa (e busca-se atualmente também usar ilhotas pancreáticas de porcos para esse papel).

             No caso de Voronoff, no entanto, seu interesse era reverter os efeitos do envelhecimento em homens idosos que tinham perdido o "vigor pela vida". Nesse sentido, o cientista estava realizando vários transplantes de testículos de chimpanzés e babuínos em recipientes geralmente idosos, onde a técnica basicamente consistia em cortar esse órgão dos primatas em vários pedaços e inserir estes no testículo humano. Ganhando uma fama de "Viagra dos anos 1920", o procedimento se tornou bem popular em ambos os lados do Atlântico, e várias centenas dessas operações foram realizadas.

             Do ponto de vista moderno da medicina, é inconcebível que qualquer um desses procedimentos tenha tido qualquer efeito benéfico, apesar de terem existido reportes na época de "rejuvenescimento" de homens que se submeteram à operação (talvez efeitos placebos, se tais reportes forem verdadeiros). Pelo contrário, as complicações deviam ter sido muitas - necrose, inflamação e infecções -, mesmo, surpreendentemente, parecendo ter sido incomuns tais incidentes (pelo menos em registros oficiais e veículos de comunicação pública).

             Outro médico - mais charlatão do que "doutor" - que resolveu partir para esses procedimentos de xenotransplante foi o norte-americano John Brinkley, cujo trabalho envolveu o transplante de tecido glandular de bodes para humanos, especialmente no Kansas e no Texas. Seu doador modelo foi escolhido com base nos relatos de um fazendeiro local sobre a suposta fantástica potência sexual dos bodes. Brinkley, infelizmente, não seguia um real método científico e seu único objetivo era ficar rico - algo que conseguiu - até ser forçado a sair do seu negócio pela Associação Médica Americana.

       XENOTRANSPLANTE DE RIM

             Na década de 1960, Keith Reemtsma - naquela época na Universidade de Tulane, Louisiana - hipotetizou que o transplante de rins de primatas não-humanos para humanos poderia funcionar e, portanto, seria um tratamento de sucesso para falhas renais. Apesar do conceito de alotransplantes renais já existir, a oferta viável desse órgão era praticamente insignificante. E, para piorar, os procedimentos de diálise eram muito limitados. Pacientes com graves problemas renais, portanto, só esperavam a prematura morte. Nesse sentido, a alternativa de xenotransplante de um animal evolucionalmente próximo de nós (chimpanzés, no caso) se tornou a melhor esperança na época.

             Os rins de chimpanzés pesam bem menos do que aqueles de um humano adulto, mas mesmo assim os procedimentos foram em frente. A maioria dos transplantes falharam dentro de 4 a 8 semanas, seja por rejeição (devido ao limitado número de agentes imunossupressores na época) seja por complicações infecciosas (por causa da administração excessiva dos poucos agentes imunossupressores disponíveis). Mesmo assim, uma das pacientes de Reemtsma viveu por 9 meses, retornando para o trabalho de professora e permanecendo em aparente boa saúde até um colapso repentino seguido de morte. Uma autópsia do rim do chimpanzé doado mostrou que o órgão parecia normal e não mostrava sinais de aguda ou crônica rejeição. Foi sugerido que ela morreu de um distúrbio eletrolítico agudo, em algo que corroborava com a imensa diurese dos outros pacientes no pós-operatório - frequentemente excedendo 20 litros de urina em 24 horas. Ou seja, o problema para a paciente pode ter se manifestado tardiamente.

              Outros cirurgiões também investiram nesse tipo de procedimento, particularmente Tom Starzl, o qual usou babuínos como doadores no Colorado, com resultados similares aos de Reemtsma, exceto pela falta de qualquer tipo de sucesso a longo prazo.

     XENOTRANSPLANTE DE CORAÇÃO

              James Hardy, o qual realizou o primeiro alotransplante de pulmão em 1963, chegou a visitar Reemtsma e ficou impressionado com a saúde de alguns dos seus pacientes humanos carregando rins de chimpanzés. Então, em 1964, Hardy ficou inspirado e resolveu realizar o primeiro transplante de coração a partir de doadores chimpanzés - após não ter encontrado nenhum doador humano. Porém, pelos padrões médicos hoje, seu recipiente de estreia era um paciente que não deveria passar por qualquer transplante cardíaco, já que sofria de ateromatose vascular por todo o seu corpo - tinha até perdido ambas as pernas por amputação devido ao problema - e ainda se encontrava em um estado de semi-coma na época. Mas como o paciente estava morrendo rapidamente, Hardy resolveu seguir em frente.

             Como o coração do chimpanzé doador não era grande o suficiente para suportar a circulação do paciente, este acabou morrendo dentro de algumas horas. A falha do procedimento já controverso gerou pesadas críticas do público e da comunidade médica, e Hardy foi dissuadido a desistir de realizar outras operações do tipo. O primeiro transplante de coração de sucesso de humano para humano só deu certo em 1967, a partir dos trabalhos de Barnard e seus colegas, os quais, aliás, também realizaram dois xenotransplantes cardíacos mais tarde.

              Mas talvez o caso mais famoso de xenotransplante cardíaco desde a tentativa de Hardy foi um realizado por Leonard Biley, o qual transplantou um coração de babuíno para um bebê humano do sexo feminino, conhecida como Baby Fae, em 1983. Naquela época, era quase impossível obter órgãos humanos para bebês com graves doenças cardíacas congênitas. O procedimento cirúrgico em Baby Fae foi tecnicamente um sucesso, mas o órgão doado sofreu significativa rejeição e a paciente morreu 20 dias depois. O tecido cardíaco foi extraído de um babuíno que era necessariamente ABO -incompatível com o recipiente - já que o tipo sanguíneo O praticamente não é encontrado nesses primatas -, sendo algo que provavelmente ajudou a complicar a severidade da rejeição. Apesar de agentes imunossupressores já existirem em significativa variedade na época, ainda não eram suficientes para serem utilizados nesse tipo de procedimento com mínima eficiência. De qualquer forma, o caso serviu para chamar a atenção da sociedade para a quase inexistente oferta de órgãos de transplante para bebês. Além disso, Bailey, inspirado, terminou conseguindo criar um programa de alotransplante cardíaco para crianças e bebês na Universidade de Loma Linda, o qual obteve enorme sucesso.

      XENOTRANSPLANTE DE FÍGADO

             Tom Starzl, já citado e um dos grandes pioneiros no campo de alotransplante de rins e fígado, realizou uma boa quantidade de xenotransplantes entre primatas não-humanos e jovens pacientes no Colorado, na década de 1960, mas sem sucesso. Quando os agentes imunossupressores se tornaram ainda mais diversificados e eficientes nas décadas seguintes, Starzl e seu time em Pittsburgh realizaram dois xenotransplantes de fígado entre babuínos e pacientes humanos adultos na década de 1990. Um dos seus pacientes chegou a sobreviver por 70 dias, mas os resultados, no geral, fizeram com que ele desistisse do campo.

             Embora esses procedimentos até o momento eram realizados a partir de doadores primatas em sua grande maioria, alguns dos xenotransplantes de fígado foram feitos de outros animais não primatas. Um deles foi feito de um porco sem modificação genética, em 1993, onde Makowka e seus colegas realizaram o único xenotransplante de fígado conhecido, com o objetivo de "cobrir" uma paciente até que um doador humano estivesse disponível. A paciente tinha 26 anos, um histórico de 14 anos vivendo com uma hepatite autoimune, tinha dado entrada no hospital com uma encefalopatia nível III e estava na fila de alta prioridade para um transplante. Hepatite C foi detectada sorologicamente. O xenotransplante entregou um fígado funcionando no pós-operatório, algo que foi certificado com a detecção de bile sendo produzida e outros marcadores bioquímicos no sangue da paciente. Porém, devido à rejeição imune e danos no órgão, a paciente morreu 34 horas depois de danos cerebrais irreversíveis.

     XENOTRANSPLANTE DE ILHOTAS PANCREÁTICAS

              Bem, como a insulina produzida pelos porcos difere da insulina humana por apenas um aminoácido, e que insulina desses animais era administrada com sucesso para o tratamento de pacientes com diabetes por décadas até que a insulina humana recombinante se tornasse disponível, os médicos ficaram tentados a usarem ilhotas pancreáticas de porcos para tratar de uma vez por todas os diabéticos. Então, em 1993, um grupo sueco liderado por Carl Groth foi o primeiro a tentar o transplante dessas células de porcos para pacientes humanos. Apesar de C-peptídeos suínos terem sido registrados no sangue de alguns dos pacientes, indicando que algumas ilhotas sobreviveram, nenhum benefício clínico foi obtido.

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     XENOTRANSPLANTE USANDO PORCOS

           A partir do final da década de 1990 começou a ficar claro que o futuro da área de xenotransplantes seria marcado pelo uso de porcos (gênero Sus) como doadores. Apesar dos porcos e primatas terem se separado no processo evolucionário há estimados 70-80 milhões de anos, humanos modernos (Homo sapiens) e esses animais possuem uma notável similaridade fisiológica e imunológica entre si. As vantagens no uso desses animais são inúmeras, e podemos citar:

- Primeiro, existiria um suprimento ilimitado de "doadores" de órgãos, já que esses animais são facilmente criados em grandes quantidades. Anualmente, apenas nos EUA, mais de 100 milhões de porcos são mortos todos os anos visando a alimentação humana. Além disso, possuem alguns órgãos de tamanho e função similar aos nossos, sendo animais bem parecidos conosco em termos fisiológicos/genéticos. Nesse último ponto, apesar dos porcos domésticos (Sus domesticus) crescerem até massas de até 450 kg - limitando as doações para humanos até a idade de 1 ano -, e serem os mais visados para futuros xenotransplantes, modelos laboratoriais miniaturizados tem alcançado porcos domésticos adultos que alcançam no máximo 200-300 kg, fornecendo órgãos de tamanho adequado em qualquer idade.

- Segundo, esses órgãos estariam disponíveis a qualquer momento, acabando com as filas de espera. O paciente começa a ter graves problemas com o seu órgão e já terá um porco doador esperando prontamente.

- Devido às suas características reprodutivas, os porcos são um dos poucos animais de grande porte que são possíveis de serem submetidos a um programa de cruzamento genético seletivo. Os porcos possuem grandes ninhadas (5-10 filhotes), maturidade sexual prematura (~5 meses), curto tempo de gestação (114 dias) e ciclos frequentes de cio (a cada 3 semanas). Isso facilita enormemente a busca por um modelo ideal de xenotransplante entre esses mamíferos.

- Terceiro, a morte cerebral - principal condição para muitos alotransplantes - possui diversos efeitos adversos nos órgãos do doador, particularmente o coração, que pode levar a um mal funcionamento do tecido ou causar outros danos. No caso do xenotransplante de porcos, isto seria evitado, considerando que o órgão seria retirado de um animal saudável sob anestesia.

- Transplantes entre humanos são efetuados muitas vezes com o transporte de vírus e outros microrganismos diversos sendo carregados pelo doador. Vírus como o da raiva já resultaram em fatalidades durante alotransplantes em anos recentes, por exemplo. No caso dos porcos, estes seriam cuidadosamente monitorados em ambientes especiais, prevenindo a infecção desses animais com microrganismos potencialmente danosos para humanos. Aliás, avanços genéticos recentes já conseguiram limpar completamente porcos de retrovírus que antes eram vistos como um potencial perigo durante os xenotransplantes.

- Notavelmente, muitos materiais para doação podem ser derivados dos porcos: (i) tecidos estruturas com células viáveis (ex.: válvulas cardíacas, submucosa do intestino delgado); (ii) células ou tecidos viáveis para funções biológicas preservadas (ex.: hepatócitos, neurócitos, células sanguíneas, ilhotas, córnea, pele); e (iii) órgãos sólidos (ex.: coração, fígado, rim, pulmão).


            Ainda existem empecilhos a serem solucionados, especialmente considerando que os porcos se separaram na linhagem evolucionária dos humanos há cerca de 80 milhões de anos, mas a lista hoje já é bem reduzida, principalmente com os avanços na engenharia genética e o popular uso do CRISPR (Para saber mais, acesse: CRISPR-Cas9: o poder da edição genética!). Além de extensivas edições genéticas visando eliminar genes responsáveis pela expressão de xenoantígenos (antígenos nos órgãos doados de porcos que podem ativar o nosso sistema imune, incluindo células exterminadoras naturais), existem também experimentos envolvendo transgenia visando tornar as células suínas mais humanas. Por fim, quimeras também têm sido propostas, onde células-tronco humanas pluripotentes induzidas (iPSCs) são introduzidas em embriões de porcos organogênese-suprimidos, visando produzir órgãos humanos dentro dos porcos. Porém, têm sido publicados menos trabalhos sobre quimeras.

          Por exemplo, um dos grandes problemas antes para o sucesso a longo prazo dos xenotransplantes de porcos era que enquanto no endotélio vascular humano é expresso os antígenos do grupo sanguíneo ABH, o dos suínos expressa um oligossacarídeo galactose, Galα1,3Gal (Gal). A presença de Gal nos porcos e sua ausência nos humanos, portanto, gera anticorpos anti-GAL, representando uma grande pedra no caminho. Porém, dois métodos foram desenvolvidos para removê-la:

          - Desenvolvimento de porcos homozigotos para o gene-nocaute α1,3-galactosiltransferase (GTKO), o qual não mais expressa o GAL;

          - Fornecimento de resistência dos porcos ao ataque imune humano com a inserção de um ou mais genes humanos de proteínas regulatóro-complementares no genoma dos porcos, como a CD55 ou a CD46.

             A combinação dos dois métodos resultaram em casos raros de rejeição hiperaguda em xenotransplantes experimentais (no caso, primatas não-humanos). Mais recentemente, eliminação de cinco genes (GGTA1, CMAH, β4galNT2, SLA-I α chain, e β2-microglobulina) responsáveis pela produção de cinco cruciais xenoantígenos (αGal, Neu5Gc, Sda, and SLA-I) levaram a uma dramática redução, in vitro, na antigenicidade das células suínas em relação ao sistema imune humoral humano (Ref.21).



          No geral, a resposta patobiológica aos órgãos transplantados de porcos é complexa, envolvendo anticorpos, coagulação, e respostas complementares, inflamatórias e celulares. Para superar essas barreiras, manipulação genética desses animais têm sido direcionadas para dois principais alvos: (a) deleção da expressão de carboidratos xenoantígenos contra os quais os humanos possuem anticorpos naturais, e (b) expressão transgência de proteínas humanas protetivas (ex.: proteínas regulatórias de coagulação). Manipulação genética nesse sentido já permite o transplante e manutenção por meses de rins de porcos em primatas não-humanos, e cientistas já sugerem que pacientes na fila de espera por um transplante renal sem perspectiva de conseguir um rim humano deveriam já estarem sendo voluntários para receberem um rim suíno (Ref.19). Aliás, cerca de 40% dos pacientes hoje esperando um rim novo são prováveis de morrer dentro de 5 anos. Segundo esses cientistas, qualquer procedimento que possa atrasar a necessidade de diálise ou reduzir o período durante o qual o paciente sob diálise espera por um rim, é válido ser testado. 

            Também nessa linha, é importante realçar que o xenotransplante pode futuramente ser uma opção melhor do que o alotransplante, isso porque o primeiro procedimento permite a modificação do doador, ao invés de apenas tratar o recipiente, e portanto existe o grande potencial de reduzir as complicações associadas a agressivas terapias imunossupressoras associadas aos transplantes tradicionais de órgãos.

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   EXPERIMENTOS EM ANOS RECENTES

   - Procedimentos cardíacos

            Comparando com décadas atrás, os procedimentos de xenotransplante envolvendo porcos estão dando resultados muito promissores, e o mais recente grande avanço na área deixou os testes clínicos em humanos para procedimentos cardíacos muito próximos.           

            Xenotransplantes cardíacos e renais - órgãos inteiros - nos últimos anos vêm rendendo resultados mais do que positivos, com primatas não-humanos vivendo mais de 8 meses com corações duplos (porco-primata) e quase 3 meses com rins de porcos. Ao longo desta década, no Instituto Nacional de Saúde (NIH), em Bethesda, Maryland, babuínos lá estavam sendo criados com corações de porcos batendo em seus abdômens, e com um deles alcançando o recorde de quase 3 anos de vida saudável após o xenotransplante (Ref.10). Com melhores imunossupressores, especialmente a expressão do anticorpo anti-CD40, boa parte dos babuínos analisados conseguiram ultrapassar 1 ou 2 anos com um coração de porco concomitante com o coração natural deles. Porém, sem os imunossupressores, a rejeição ocorria às vezes quase que imediatamente. Baixas doses mostraram-se relativamente efetivas. Outro empecilho é que o coração estava batendo no abdômen - anexado aos vasos sanguíneos dos babuínos - e não dentro do peito fazendo seu papel fisiológico, o que deixa incerto se os longos períodos de efetividade dos xenotransplantes realizados seriam os mesmos em uma situação normal. E, por fim, o coração do porco não era essencial para os babuínos sobreviverem, já que esses últimos mantiveram seus órgãos cardíacos. Com apenas um coração de porco, esses primatas estavam sobrevivendo menos do que 60 dias (e apenas um caso com sobrevivência de 57 dias).

           Nesse sentido, um estudo publicado em 2018 na Nature (Ref.14) reportou um novo protocolo de xenotransplante que permitiu, pela primeira vezes, que babuínos recebessem corações de porcos geneticamente modificados e sobrevivessem por mais de seis meses. E o principal: os primatas ficaram totalmente dependentes do coração de porco, este o qual substituiu o órgão cardíaco dos babuínos.

          Basicamente, os pesquisadores utilizaram um novo procedimento de imunossupressão substancialmente menos tóxico para o corpo visando prevenir que que os babuínos rejeitassem o coração suíno, este o qual tinha sido fruto de modificação genética para reduzir reações imunes inter-espécies. Além disso, eles usaram um processo otimizado para preservar os órgãos sendo transplantados. Normalmente, os corações são mantidos imersos em uma solução resfriada com a ajuda de gelo. No entanto, os tecidos desses órgãos podem ser danificados quando o sangue é re-circulado através deles. Os pesquisadores encontraram que a sobrevivência do coração após o transplante pode ser aumentada significativamente ao se bombear de forma intermitente um solução similar ao sangue e oxigenada contendo nutrientes e hormônios através do coração alvo (perfusão) a uma temperatura de 8°C durante o armazenamento e transporte.




          Continuando o protocolo, os pesquisadores também administraram um medicamento (tensirolimo) que impede o crescimento exagerado do tecido cardíaco ao suprimir a proliferação celular (sem isso, os babuínos morrem em menos de 2 meses). O uso de tensirolimo pode também diminuir o risco de lesões trombóticas microangiopáticas. Junto com esse procedimento, a pressão arterial dos babuínos foi inicialmente diminuída para se igualar àquela dos suínos. O próximo passo foi alterar o procedimento padrão de administração do hormônio cortisona (o qual visa imunossupressão), diminuindo seu tempo de uso ao máximo para reduzir o efeito colateral de crescimento excessivo do músculo cardíaco (limite de 3 semanas).

          Dos cinco babuínos usados nos testes clínicos, um teve complicações e teve que ser eutanasiado. Dois viveram de forma saudável por três meses. E os outros dois foram deixados vivendo por pouco mais de 6 meses, antes de serem eutanasiados.

          De acordo com a Sociedade Internacional para o Transplante de Coração e Pulmão, em 2000, testes clínicos em humanos já podiam ser considerados caso experimentos com xenotransplantes em primatas resultassem em uma taxa de sobrevivência superior a 3 meses em pelo menos 60% dos espécimes estudados (mínimo de 10 no total) (Ref.15). O último experimento alcançou uma taxa de sucesso de 80%, mas ainda em uma população primata de 5 indivíduos.

          Agora, faltam outros estudos clínicos independentes replicarem os resultados em uma população maior de primatas para que os testes em humanos tenham finalmente início. Além disso, ainda é preciso justificar o porquê dos corações de porcos precisarem ser usados em detrimento de tecnologias de suporte mecânico, pelo menos em um período inicial onde o xenotransplante em humanos ainda será bastante limitado em termos de longevidade. Nas últimas duas décadas, dispositivos mecânicos têm sido usados com sucesso e vêm evoluindo continuamente para o uso temporário em pessoas com falhas cardíacas em espera por um doador humano. Futuramente, caso as técnicas de xenotransplante atinjam um nível de grande avanço e alta compatibilidade com o corpo humano, esse problema ético perca a força, especialmente em termos de custo.

         De qualquer forma, o novo protocolo criado pelos pesquisadores pode também otimizar os transplantes cardíacos entre humanos hoje realizados.

          Em 2020, no periódico Xenotransplantation (Ref.20), um procedimento proposto de perfusão fria contínua não-isquêmica conseguiu com sucesso preservar a função sistólica integral do coração de porcos, sem sinais de disfunção cardíaca xenográfica - a qual pode levar a taxas de mortalidade no recipiente de 40-60% -, e visando transplante para babuínos.

   - Procedimentos não-cardíacos

          Fora do campo cardíaco, substancialmente dificuldade ainda é encontrada nos transplantes de pulmões e fígados de porcos para primatas. Já, ilhotas pancreáticas desses animais transplantas para primatas não-humanos imunossuprimidos chegam a funcionar por mais de um ano e planos para iniciar transplantes especiais desse tipo já foram acionados em alguns países, com algumas iniciativas já elaborando projetos para a criação de 1000 porcos anuais voltados exclusivamente apara a área de xenotransplantes.

          Xenotransplantes de córneas para primatas não-humanos - através de enxertos laminares de porcos - também chegam a sobreviver por mais de um ano, com o recipiente recebendo apenas injeções de corticosteroides nos olhos. Isso provavelmente fará com que esse procedimento seja o primeiro a entrar em testes clínicos com humanos.

           Outra área de interesse também, e promissora, é usar engenharia genética para o crescimento de células humanas específicas em porcos para o tratamento de várias doenças, como o Mal de Parkison. Experimentos já reportarem melhoras com duração acima de um ano em funções locomotoras de macacos com condições parecidas com o Mal de Parkison após o transplante de células produtoras de dopamina geneticamente modificadas de porcos para os seus cérebros.

            Mesmo que muitos experimentos ainda só consigam sucesso de apenas relativo longo prazo, esses procedimentos podem ser realizados inicialmente para cobrir pacientes em grave estado de saúde presos em filas de espera por órgãos e células humanas.

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ATUALIZAÇÃO (20/10/21): Cirurgiões em New York, EUA, anexaram com sucesso um rim crescido em um porco geneticamente alterado em um paciente humano (Ref.22). O órgão funcionou normalmente, até melhor que o esperado! No caso, o teste experimental foi realizado em um paciente com morte cerebral mantido vivo em um ventilador (sob consentimento da família), com subsequente acompanhamento de 54 horas. Apesar de ainda incertas as consequências a longo prazo do procedimento - realizado no N.Y.Y Langone Health - e do fato do órgão ter sido mantido fora do organismo do paciente, após a conexão dos vasos sanguíneos humanos ao rim de porco (vasos superiores da perna esquerda), urina e creatinina (resíduo renal) começaram a ser produzidas quase imediatamente, sem sinais de rejeição e sugerindo fortemente que o funcionamento normal seria observado com o órgão dentro do paciente. Frequentemente, no transplante tradicional a partir de doadores humanos mortos, os rins demoram dias a semanas no novo recipiente. Após o feito, alguns cirurgiões já especulam que o xenotransplante será parte da prática clínica em menos de 1 ano!

> O porco doador foi geneticamente modificado para não expressar na superfície celular a molécula de carboidrato α-1,3-galactose (α-gal), a qual engatilha uma imediata reação do sistema imune humano.

ATUALIZAÇÃO (25/08/23): Um rim de porco geneticamente modificado foi transplantado para um humano e permaneceu funcional por 32 dias, sem rejeição! No caso, o paciente tinha morte cerebral e estava sob suporte ventilatório. O transplante de sucesso foi feito em New York, EUA, e precisou apenas de uma modificação genética - deleção de um gene codificante da biomolécula alfa-gal no porco - e sem necessidade de medicamentos experimentais ou dispositivos médicos de suporte. Ref.25

Na foto, Dr. Jeffrey Stern, MD, (à esquerda) e Dr. Robert Montgomery, MD, DPhil, se preparam para implantar o rim de porco no abdômen do paciente. Ref.25


ATUALIZAÇÃO (12/10/23): Cientistas anunciaram que um macaco sobreviveu por 2 anos após receber um transplante de rim fornecido por um porco geneticamente modificado. O feito pode ser crítico no sentido de abrir as portas para testes clínicos de xenotransplante em humanos.

O avanço foi descrito em um estudo na Nature (Ref.27), envolvendo macacos da espécie Macaca fascicularis e porcos domésticos miniaturizados (Sus domesticus). Os cientistas editaram 69 genes no porco, três deles associados a moléculas de rejeição na superfície celular. Do total de edições, 59 visaram genomas de retrovírus embebidos no DNA dos porcos. O restante das edições foram adições de genes humanos que ajudam a manter o órgão transplantado saudável (ex.: prevenção de coágulos sanguíneos).

Do total de 15 macacos que receberam rins dos porcos geneticamente modificados (e um coquetel de imunossupressores), 5 deles viveram por mais de 1 ano e 2 deles viveram por mais de 2 anos. É um recorde em termos de xenotransplante. Em procedimentos prévios que usavam esses primatas como modelos humanos, nenhum sobrevivia por mais de 50 dias.

Análises de biomarcadores mostraram que os rins transplantados tiveram um desempenho tão bom quanto dos dois rins nativos. Como as modificações genéticas visavam humanos, é provável que os órgãos transplantados durariam bem mais nos receptores. 

Por outro lado, especialistas levantam dúvidas relativas à quantidade excessiva de edições genéticas, algo que pode elevar muito o custo em um contexto de escalar a produção desses porcos para fins de aliviar as filas de transplante nos hospitais (Ref.28).
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   RETROVÍRUS ENDÓGENOS SUÍNOS

            A maior parte das preocupações em anos mais recentes relativas aos procedimentos de xenotransplante com porcos residia nos retrovírus que estão presentes no genoma de cada célula suína, e os quais passariam inevitavelmente para o corpo do recipiente. Apesar de muitos deles serem considerados fracos para causarem complicações mesmo em pacientes imunossuprimidos, outros podem ser potencialmente perigosos.

             Porém, este ano, dois estudos de grande impacto foram publicados mostrando que os cientistas, através de engenharia genética, estão conseguindo eliminar de vez esses vírus. Em Agosto (Ref.11), pesquisadores da eGenesis reportaram, em um estudo publicado na Science, que conseguiram livrar 37 porcos de 25 desses retrovírus.

             Os 25 PERVs - retrovírus endógenos de suínos, na tradução da sigla - tinham sido previamente identificados escondidos no material genético dos porcos. Experimentos misturando células humanas e suínas mostravam que esses vírus podiam escapar e infectar tecidos humanos - através de transferência horizontal -, o que gerou bastante preocupação com os xenotransplantes.

              Contudo, com a ajuda do CRISPR-Cas9, os pesquisadores editaram o código genético dos vírus do DNA de embriões dos porcos. Os embriões "limpos" deram origem a porcos saudáveis, sem os PERVs. Marcou também a criação dos animais com o maior número de modificações genéticas já feitas.

             Já um estudo publicado no final de Setembro (Ref.12), também na Science, mostrou que pesquisadores Chineses conseguiram dar um passo a mais e criar porcos completamente livres de PERVs. A inativação ocorreu também usando o CRISPR-Cas9, gerando porcos PERV-inativados via transferência nuclear de células somáticas. Esse estudo, pelo que parece, acabou de vez com o problema (!).

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(!) ATUALIZAÇÃO (25/12/19): Em um estudo publicado ainda como preprint na bioRxiv (Ref.17), esses mesmos pesquisadores Chineses, em colaboração com as Universidades de Cambridge, Massachusetts e Harvard, descreveram uma nova geração de porcos livres dos PERVs e com 13 modificações genéticas imune-relacionadas (no sentido de evitar rejeições), e já começaram a transplantar seus órgãos para primatas não-humanos, um passo crucial no sentido de testes clínicos em humanos. As modificações e eliminações dos retrovírus endógenos - um total de 42 alelos geneticamente editados - foram feitas via CRISPR-Cas9 em células retiradas das orelhas desses animais. Primeiro, o núcleo dessas células foram editadas para as modificações imune-relacionadas e colocadas em óvulos coletados dos ovários de porcos, gerando embriões, os quais foram implantados no útero de porcos fêmeas 'mães de aluguel'. Células dos filhotes resultantes foram retiradas e editadas para a remoção dos PERVs, com o núcleo editado sendo transferido para óvulos (mesmo processo anterior) para finalmente termos a criação de filhotes (PERVKO·3KO·9TG) aparentemente saudáveis (exibiam fisiologia normal) e férteis, prontos para os transplantes visando primatas. Em testes in vitro, a tendência das células dos porcos editados de se ligarem a certos anticorpos humanos foi reduzida em 90% e melhor sobreviveram a interações com células humanas imunes, em um nível similar aos vistos em alotransplantes. Futuramente, os pesquisadores planejam realizar as edições em uma única geração. Os cientistas estimam que agora os transplantes de porcos para humanos podem ser iniciados em significativa escala dentro de 5 anos.

> O estudo foi publicado após revisão por pares no periódico Nature Biomedical Engineering.


   XENOTRANSPLANTE NO BRASIL

           Em 2022, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) e a Universidade de São Paulo (USP) anunciaram o investimento conjunto de R$ 10 milhões no projeto que pretende desenvolver órgãos compatíveis para transplante, envolvendo suínos (Ref.26). 

            A iniciativa dos pesquisadores da USP, agora em parceira com o MCTI, é a única na América Latina voltada à pesquisa de produção de órgãos em animais para transplante em humanos. O projeto é coordenado pelo professor Silvano Raia, professor emérito da Faculdade de Medicina da USP, e pioneiro na execução de transplantes de órgãos no país. O grupo de pesquisa que ele coordena é multidisciplinar, envolvendo geneticistas, embriologistas e imunologistas, e trabalha há quatro anos no projeto, tendo obtido resultados relevantes para a criação dos embriões suínos geneticamente modificados.

            A criação dos suínos geneticamente modificados ocorrerá no chamado pig facility, uma instalação de nível de biossegurança dois (NB2) indispensável para a criação de suínos doadores de órgãos e o início dos ensaios pré-clínicos, em condições sanitárias adequadas para evitar patógenos. A pig facility definitiva está ainda em processo de construção.

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   CONCLUSÃO

          Apesar de considerável trabalho ainda precisar se feito para garantir xenotransplantes completamente seguros e eficientes entre porcos e humanos como rotina clínica, já demos passos mais do que grandes para tornar viável esse procedimento em um futuro bem próximo. No caso de transplantes cardíacos entre porcos e primatas, avanços recentes deixaram robustos testes clínicos em humanos muito próximos, e um procedimento experimental já foi realizado envolvendo um paciente de 57 anos com uma doença letal no coração (até o momento com sucesso). Só nos EUA, é estimado que falhas cardíacas irão atingir mais de 8 milhões de pessoas em 2030, e várias dessas pessoas irão morrer esperando um órgão de um doador humano.

          Seja como ponte para os alotransplantes, seja para operações vitalícias, os porcos provavelmente irão resolver vários problemas associados com os transplantes tradicionais, incluindo o tráfico ilegal de órgãos humanos, o (pequeno) risco associado com a excisão de órgãos (ex.: rins) de doadores saudáveis e altruístas, os danos nos órgãos de doação causados pelos efeitos da morte cerebral em muitos doadores humanos viáveis, e mesmo os problemas de imunossupressão já enfrentados dependendo dos avanços futuros no campo da genética, aumentando as chances de sobrevivência dos recipientes. Considerando os atuais progressos pré-clínicos, cientistas acreditam que o xenotransplante será a próxima revolução na medicina. 

           No futuro, ser um 'híbrido' humano-suíno talvez se torne tão normal quanto hoje vemos as próteses. E, por essa, a Evolução Biológica não esperava.


            Bem, e como ainda não temos o xenotransplante disponível para humanos, faça a sua parte e seja um doador de órgãos! Avise a sua família sobre a sua intenção e ajude a salvar vidas!



 
 E NÃO DEIXE QUE OS MITOS CONFUNDAM VOCÊ! ENTRE ELES, PODEMOS CITAR:


1) Se os médicos do setor de emergência souberem que você é um doador, não vão se esforçar para salvá-lo.

Se você está doente ou ferido e foi admitido no hospital, a prioridade número um é salvar a sua vida. A doação de órgãos somente será considerada após sua morte e após o consentimento de sua família.


2) Quando você está esperando um transplante, sua condição financeira ou seu status é tão importante quanto sua condição médica

Quando você está na lista de espera por uma doação de órgão, o que realmente conta é a gravidade de sua doença, tempo de espera, tipo de sangue e outras informações médicas importantes.


3) Necessidade de qualquer documento ou registro expressando minha vontade de ser doador.

Não há necessidade de qualquer documento ou registro, apenas informe sua família sobre sua vontade de ser doador.


4) Somente corações, fígados e rins podem ser transplantados.

Órgãos necessários incluem coração, rins, pâncreas, pulmões, fígado e intestinos. Tecidos que podem ser doados incluem: córneas, pele, ossos, valvas cardíacas e tendões.


5) Seu histórico médico acusa que seus órgãos ou tecidos estão impossibilitados para a doação.

Na ocasião da morte, os profissionais médicos especializados farão uma revisão de seu histórico médico para determinar se você pode ou não ser um doador. Com os recentes avanços na área de transplantes, muito mais pessoas podem ser doadoras.


6) Você está muito velho para ser um doador.

Pessoas de todas as idades e históricos médicos podem ser consideradas potenciais doadoras. Sua condição médica no momento da morte determinará quais órgãos e tecidos poderão ser doados.


7) A doação dos órgãos desfigura o corpo e altera sua aparência na urna funerária.

Os órgãos doados são removidos cirurgicamente, numa operação de rotina, similar a uma cirurgia de vesícula biliar ou remoção de apêndice. Você poderá até ter sua urna funeral aberta.


8) Sua religião proíbe a doação de órgãos.


Todas as organizações religiosas aprovam a doação de órgãos e tecidos e a consideram um ato de caridade.




Artigos Recomendados:

REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
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  2. https://www.organdonor.gov/statistics-stories/statistics.html
  3. http://www.abto.org.br/abtov03/default.aspx?c=1099
  4. http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/entendadoacao.pdf
  5. http://www.abto.org.br/abtov03/default.aspx?mn=473&c=916&s=0&friendly=mitos
  6. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4684730/ 
  7. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3246856/ 
  8. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5030131/ 
  9. http://www.nature.com/news/new-life-for-pig-to-human-transplants-1.18768
  10. http://www.sciencemag.org/news/2016/04/researchers-keep-pig-hearts-alive-baboons-more-2-years
  11. http://science.sciencemag.org/content/357/6357/1303
  12. http://www.sciencemag.org/news/2017/08/crispr-slices-virus-genes-out-pigs-will-it-make-organ-transplants-humans-safer
  13. https://www.fda.gov/BiologicsBloodVaccines/Xenotransplantation/
  14. Längin, M., Mayr, T., Reichart, B., Michel, S., Buchholz, S., Guethoff, S., … Abicht, J.-M. (2018). Consistent success in life-supporting porcine cardiac xenotransplantation.
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  19. Cooper DKC, Hara H., Iwase H., et al. (2021) Pig kidney xenotransplantation: Progress toward clinical trials. Clin Transplant. 2021;35:e14139. https://doi.org/10.1111/ctr.14139
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  26. https://jornal.usp.br/institucional/usp-e-ministerio-da-ciencia-e-tecnologia-investem-r-10-milhoes-para-o-desenvolvimento-de-orgaos-para-transplantes/ 
  27. Anand et al. (2023). Design and testing of a humanized porcine donor for xenotransplantation. Nature 622, 393–401. https://doi.org/10.1038/s41586-023-06594-4 
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