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Narguilé é uma forma segura de consumir tabaco?


- Atualizado no dia 6 de fevereiro de 2022 -

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          O narguilé - também conhecido como hookah, argileh, shisha e goza - consiste em inalar a fumaça do tabaco e de outras substâncias aromáticas (as quais conferem sabores diferenciados à fumaça e fica à escolha do consumidor) através de mangueiras que ficam conectadas a uma espécie de jarro. Esse jarro contém água e é por onde a fumaça passa antes de chegar à boca do usuário (estrutura azul na imagem ao lado). Essa é uma popular forma de uso do tabaco que vem sendo utilizado há séculos na África, no Oriente Médio e em certos países da Ásia (1). Estima-se que cerca de 100 milhões de pessoas no mundo utilizem o narguilé e sua popularidade vêm crescendo estrondosamente, especialmente entre os jovens. Muitos acreditam piamente que a fumaça dessa forma de fumo é bem menos tóxica do que a dos cigarros comuns, supostamente não causando danos significativos ao corpo. Mas aí está o grave engano.

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         Em um maior detalhamento do funcionamento do narguilé mais convencional e disseminado (hookah), este inclui um fornilho ou vaso para o tabaco (no qual o tabaco é colocado), um corpo, um vaso para água, uma mangueira e um bocal. Os furos no fundo do fornilho permitem que a fumaça passe no canal central do corpo que é submerso em água (ou álcool, ou refrigerante), enchendo o vaso de água até a metade. A mangueira de couro ou plástico sai do topo do vaso de água e termina com um bocal, que o fumante usa para inalar. Uma pedra ou um briquete de carvão é instalado na parte de cima do fornilho cheio de tabaco, geralmente separado do tabaco por uma folha de alumínio perfurada. Depois de o fornilho ser carregado e o carvão aceso, o fumante inala pela mangueira, aspirando o ar de dentro e ao redor do carvão. O ar quente resultante, que também contém produtos da combustão do carvão, passa então pelo tabaco que, ao ser aquecido, produz a fumaça principal, esta a qual passa pelo corpo do narguilé, borbulha na água do vaso e é carregada pela mangueira até o fumante. Em uma sessão de narguilé, os fumantes normalmente reabastecem e ajustam o carvão para manter o sabor e a concentração de fumaça desejados. Para tanto, podem deixar uma pilha de carvão aceso em uma caldeira próxima - o que pode representar um risco adicional de inalação -, ou podem optar por briquetes que são mais convenientes e fáceis de acender (uso de isqueiro, por exemplo).

         A "filtragem" que ocorre no narguilé através desse processo é mínima, retirando com significativa importância apenas algumas partículas sólidas da fumaça, esta a qual continua contendo quase o mesmo potencial cancerígeno do cigarro tradicional. E a OMS (Organização Mundial da Saúde) alerta: o narguilé pode fazer até mais mal do que o fumo tradicional! Por quê? Cada seção de inalação costuma durar entre 20 e 60 minutos e o resultado disso é que cada rodada pode ter o poder de 100 a 200 cigarros! Quantidades enormes de substâncias cancerígenas e sufocantes (como o monóxido de carbono) acabam sendo mandadas direto para o pulmão e, subsequentemente, para a circulação sanguínea da pessoa.

             Portanto, não é recomendado o consumo nem ocasional de narguilé. E é válido até reforçar: qualquer ato de fumo que envolva queima de substâncias orgânicas é prejudicial. Alguns fabricantes até mesmo chegam a vender misturas de ervas para serem usados no narguilé ao invés do tabaco - menos comum -, alegando que os efeitos tóxicos foram eliminados, sendo que isso passa longe da verdade, porque a queima de carvão sob altas temperaturas continua.

          Por causa dos cheiros agradáveis geralmente utilizados no narguilé - aromas de frutas, mentolado, etc. - a fumaça passa um ar de 'mais inofensiva'. Isso incentiva os fumantes diretos e os passivos a ficarem mais tempo suportando a nuvem tóxica se acumulando no ambiente, algo até mesmo perigoso em locais fechados e com pouca ventilação (intoxicação com o monóxido de carbono). Muitos especialistas até pedem que os governos proíbam a aromatização desses produtos. Além disso, os acessórios do narguilé são vendidos geralmente sem alertas de riscos à saúde, sem qualquer tipo de regulação, e muitos ainda até trazem alegações sem base científica de que conseguem reduzir a nocividade da fumaça. Isso sem contar propagandas sem sentido que trazem afirmações do tipo “natural” ou “não contém produtos químicos”. Outras propagandas populares mostram narguilés feitos de coco ou abacaxi e chegam até mesmo a colocar "nenhuma árvore foi cortada para fazer o produto", tudo para tentar enganar o consumidor.

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          Para exemplificar a preocupação das autoridades de saúde, um estudo em 2010 (Ref.7) encontrou os seguintes teores na fumaça desses produtos: CO/monóxido de carbono -150 mg, nicotina – 4 mg e alcatrão – 602 mg. São valores muito superiores aos de referência para cigarros (CO - 10 mg, nicotina - 1 mg e  alcatrão - 10 mg de CO). Sendo assim, temos um valor 15 vezes maior de CO, 4 vezes maior de nicotina e 60 vezes de alcatrão, no narguilé em relação ao cigarro. Outro estudo de 2005 (Ref.8) apresenta valores semelhantes (2,94 mg de nicotina, 802 mg de alcatrão e 145 mg de CO). Esse último estudo aponta, ainda, uma presença significativa de poli-cíclico aromáticos (conhecidos agentes carcinogênicos) na fumaça do narguilé. Um estudo publicado em 2012 (Ref.9) já sugeria que a intoxicação pelo monóxido de carbono após a utilização do narguilé pode aumentar o risco de acidentes no trânsito devido à hipóxia cerebral (diminuição do oxigênio sanguíneo no cérebro), já que pode provocar problemas com a coordenação motora, tonturas, fadiga e sonolência. E essa sugestão foi confirmada por um estudo publicado em setembro deste ano na Clinical Toxicology (Ref.28), o qual demonstrou diversos efeitos perigosos de toxicidade por monóxido de carbono via narguilé em jovens adultos.

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MONÓXIDO DE CARBONO E NARGUILÉ

O narguilé pode gerar enormes quantidades de de monóxido de carbono (CO), principalmente por causa do uso de carvão (combustão incompleta de hidrocarbonetos); o CO emitido pelo narguilé é reduzido em 90% quando o carvão é substituído com um aquecedor elétrico, algo longe de popular. O CO exalado após uma sessão de narguilé é estimado de ser maior do que a quantidade exalada após fumar um pacote inteiro de cigarro.

O CO é prontamente absorvido nos pulmões e pode formar uma forte mas reversível ligação com a hemoglobina, levando a uma potencial e fatal hipoxia. A afinidade do CO com a hemoglobina e a mioglobina (componentes proteicos das hemácias carregando ferro e responsáveis pelo transporte de oxigênio no sangue) é 250 vezes e 40 vezes maior, respectivamente, do que aquela com o oxigênio. Após a eliminação do CO, reperfusão de oxigênio nos tecidos ocorre e produz um grande aumento de diversas espécies oxigenadas reativas, promovendo forte estresse oxidativo e múltiplos danos no corpo, incluindo no tecido cerebral. O CO também causa danos celulares por outros mecanismos, como reação com citocromos intracelulares, interrupção do metabolismo oxidativo e disrupção da cadeia transportadora de elétrons (esses últimos dois devido ao impedimento do efetivo transporte de oxigênio para os tecidos) (Ref.39).

Fumantes crônicos de cigarro chegam a ter concentrações de carboxihemoglobina (COHb) - hemoglobina ligada com CO - de até 10%, enquanto essa concentração pode ultrapassar 39% após uma sessão de narguilé (Ref.39), caracterizando grave envenenamento (intoxicação severa aguda) por CO. Intoxicação aguda de CO pode causar sérias manifestações agudas neurológicas e cardíacas, incluindo morte. Sinais neurológicos também podem aparecer de forma tardia, várias semanas ou meses após a intoxicação (classicamente conhecida como síndrome pós-intervalo). Finalmente, sequelas neuropsicológicas altamente debilitantes, como problemas de memória, podem persistir a longo prazo. 

Outro sério efeito adverso do uso crônico de narguilé sendo frequentemente reportado na literatura médica e nos hospitais é a policitemia secundária, onde a exposição de longo prazo a alto níveis de monóxido de carbono leva a uma produção compensatória e excessiva de hemácias (Ref.55-56). O excesso de hemácias no sangue aumenta a viscosidade do sangue, levando a sintomas como dor de cabeça, distúrbios visuais, dispneia, sangramentos anormais e severas manifestações neurológicas, incluindo coma. Além disso, a hiperviscosidade sanguínea é um importante fator de predisposição a tromboses venosas e arteriais.

Nos últimos anos, casos de envenenamento por monóxido de carbono por causa do uso de narguilé têm crescido dramaticamente, alcançando 41,6% dos casos reportados e descritos em periódicos médicos em 2018 (Ref.40). Mesmo o uso de narguilé em espaço aberto não elimina o risco de envenenamento, e geralmente é o oposto que ocorre: perigoso uso em locais fechados (Ref.41). O fumo de narguilé dentro de um apartamento, por exemplo, pode levar a concentração de CO a alcançar até 200 ppm (Ref.42). Sintomas de envenenamento com CO incluem dor de cabeça (a mais comum apresentação), tontura, fatiga, náusea/vômito, concentração mental alterada e perda de consciência. Porém, esses sintomas muitas vezes aparecem somente após severa intoxicação (!). Terapia com Oxigênio Hiperbárico (ou normobárico) ou inalação de alto fluxo de oxigênio são usados como tratamento.


Para melhor exemplificar, podemos citar um relato de caso publicado e descrito no periódico Case Reports in Emergency Medicine (Ref.43). Um paciente de 19 anos do sexo masculino foi trazido para o departamento de emergência em uma ambulância após fumar narguilé. Ele apresentava tontura, síncope (desmaio) e visão embaçada. No hospital, o paciente estava consciente e seu histórico médico não apresentava nenhuma informação notável. Seu amigo relatou que ele fumou dois narguilés em um bar-café durante um período de 4-5 horas, e, após se levantar para ir para casa, sua visão ficou embaçada e uma tontura súbita emergiu. O paciente não se lembrava de como ele foi parar no hospital.

Os sinais vitais do paciente revelaram uma temperatura corporal de 36°C, pressão sanguínea de 135/69 mmHg, taxa respiratória de 20/min, taxa no pulso de 88/min, e leitura de oximetria no pulso de 97% no ar ambiente. Ele não reclamava de dor no peito, mas apresentava náusea. Exames físicos não revelaram anormalidade. Porém, seu nível de COHb estava de 32,7%. Nesse sentido, ele foi tratado com inalação por máscara de oxigênio normobárico de 100%. Após 4 horas de tratamento, seu nível de COHb diminuiu para 9,5%, e, ao ser liberado do hospital, era de 0,3%. Nenhuma anormalidade foi observada após 18 horas de acompanhamento.

Funcionários de bares e cafés onde existe o uso de narguilé estão expostos a altos riscos de envenenamento por CO (Ref.44). 
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         No geral, a fumaça do narguilé alcança um nível de toxidade tão alto ou maior que aquele do cigarro comum, e estudos nos últimos anos (Ref.13-17) mostram que ela carrega, além de grandes quantidades de monóxido de carbono, poli-hidrocarbonetos, benzeno, formaldeído, chumbo, óxido nítrico e outros tóxicos como arsênio, cromo e aldeídos voláteis. Todas essas toxinas elevam os riscos de cânceres, especialmente no pulmão, boca, estômago e rins, danos generalizados no sistema respiratório e no sistema cardiovascular, prejuízos bucais diversos (incluindo os dentes) e infertilidade. Normalmente a queima do carvão é usada como fonte de calor nos narguilés, e a fumaça contém produtos tóxicos emitidos tanto pelo carvão quanto pelo produto de tabaco, incluindo os aromatizantes. Assim, a composição do carvão e a do tabaco podem influenciar o conteúdo tóxico da fumaça.


 
          Estudos recentes analisando a boca de usuários de narguilé mostram que os danos gerados são os mesmos do cigarro comum (Ref.20-21), e esse nível de agressão se estende também para a traqueia e tecido pulmonar (Ref.22,26). Aliás, quatro grandes estudos de revisão sistemática e meta-análise deste ano (Ref.24-25,30-31) mostraram uma clara associação positiva entre o fumo do narguilé e o desenvolvimento de vários cânceres e diversas outras doenças, como síndrome metabólica e problemas no sistema nervoso, inclusive como um fator de risco para a esclerose múltipla também destacado por um estudo isolado deste ano na Multiple Sclerosis Journal (Ref.29). E a quantidade de nicotina - substância altamente viciante - entregue durante as sessões de fumo leva a quadros de dependência, algo confirmado - e já, obviamente, esperado - por diversos trabalhos de revisão da literatura acadêmica.



          Em relação às quantidades de fumaça tragadas, podemos ver as gigantescas discrepâncias no quadro abaixo, englobando os perfis de tragadas mais utilizados para o cigarro. É importante lembrar que os valores expressos são em mg do componente de interesse/g de tabaco. Um cigarro hoje em dia tem cerca de 0,8 g de tabaco, enquanto a rodada de narguilé usa pelo menos cerca de 10 gramas de tabaco (ou seja mais de dez vezes a quantidade de tabaco fumado). Esse fato, por si só, já garantiria uma maior quantidade de componentes tóxicos inaladas.


          Nesse sentido, um robusto estudo de revisão publicado em março de 2019 no periódico Circulation (Ref.34), mostrou que os fumantes de Narguilé absorvem substâncias tóxicas em níveis frequentemente muito acima dos fumantes de cigarros que causam sérios danos para sistema cardiovascular. Segundo o estudo, uma sessão típica de narguilé gera 35 vezes mais CO do que um cigarro, 10 vezes mais matéria particulada, 27 vezes mais formaldeído, 19 vezes mais acroleína, e 50 vezes mais hidrocarbonetos aromáticos policíclicos pesados. Apesar do tamanho do material particulado carregado até o trato respiratório dos usuários ser menor do que aquele encontrado nos cigarros comuns (0,04-15 μm vs. 0,15-05 μm), o número de materiais particulados carregados em uma baforada (1 L) pode alcançar até 70 x 10^9 partículas quando comparado com uma baforada (45 mL) de cigarro (9,2 x 10^9 partículas) (Ref.38).

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          Aliás, no dia anterior a essa última revisão, um estudo apresentado na 30° Conferência Anual da Associação Cardíaca da Arábia Saudita (SHA 30) (Ref.35) - país onde o uso do narguilé é muito disseminado desde a adolescência - reforçou que tanto o fumo do cigarro quanto o fumo do narguilé aumentam substancialmente o risco de doenças cardiovasculares. Analisando 1554 pacientes com ataques cardíacos entre 2015 e 2018 que deram entrada no King Abdulllah Medical City, os pesquisadores encontraram que a média de idade para esse grave episódio cardiovascular era de 54 anos para fumantes em geral e de 60 anos para não-fumantes. Além disso, fumantes eram mais prováveis de terem múltiplas artérias afetadas e maiores chances do ataque cardíaco ser muito severo e levar a outras complicações, como edema pulmonar e parada cardíaca. Quase 40% dos pacientes com ataque cardíaco eram fumantes.

          Ambos os estudos apontaram que o fumo do narguilé está crescendo globalmente devido à errônea ideia de que essa forma de fumo é menos nociva do que o fumo de cigarro. 

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DANOS CARDIOVASCULARES E NARGUILÉ

Substâncias tóxicas (incluindo altos níveis de nicotina), toxicidade por monóxido de carbono e hipoxia celular elevam muito o risco de sérios eventos adversos cardiovasculares durante o fumo de narguilé. Seguindo a inalação da fumaça, temos um aumento da pressão sanguínea, da taxa de batimento cardíaco e da resistência vascular periférica. Uma prolongada sessão de narguilé pode, também nesse sentido, levar à hiperativação do sistema nervoso simpático e maiores níveis de catecolamina no plasma, aumentando o risco de perigosa arritmia. Além disso, indivíduos que fumam narguilé possuem um maior risco de infarto agudo do miocárdio devido à ativação anormal de plaquetas (hipercoagulabilidade) e disfunção endotelial.

Para exemplificar, em um relato de caso recentemente publicado no periódico Archives of Current Medical Research (Ref.51), pesquisadores descreveram um paciente de 28 anos de idade sem histórico de consumo alcoólico ou uso de drogas ilegais que apresentou-se ao departamento de emergência de um hospital na Turquia, reclamando de palpitação, a qual se desenvolveu aproximadamente 30 minutos antes da admissão hospitalar. O paciente reportou que havia fumado narguilé por 1 hora e que, subitamente, começou a sentir batidas cardíacas irregulares. O paciente não experienciava dores no peito ou dispneia durante esse período. Nada de notável foi observado no histórico médico do paciente e ele nunca tinha fumado narguilé antes.

Na admissão ao departamento de emergência, sua taxa cardíaca estava a 180 batimentos por minuto e sua pressão sanguínea era de 138/73 mmHg. Exame físico não revelou anormalidades além da taxa cardíaca aumentada. Eletrocardiografia (ECG) obtida na sala de emergência mostrou um ritmo cardíaco irregular com a ausência de ondas P (Figura A). A saturação de oxigênio do paciente estava em 94% em ar ambiente e análise gasosa do sangue revelou que o nível de carboxiemoglobina estava em 6%. O paciente foi diagnosticado com fibrilação atrial, um tipo de arritmia cardíaca caracterizado por uma taquicardia atrial muito mais caótica. 


Dado o diagnóstico, o paciente foi tratado com diltiazem (25 mg) e metoprolol (5 mg) pela via intravenosa (IV) para o controle da taxa cardíaca, mas sem sucesso. Mesmo após tratamento anticoagulante e uma dose única de propafenona (600 mg), o ritmo cardíaco anormal não foi resolvido. Somente após tratamento de 4 horas com de amiodarona (IV) um ritmo sino normal foi alcançado (figura B). 

O paciente foi aconselhado a não mais fumar narguilé, e foi liberado com uma terapia beta-bloqueadora e um tratamento oral anticoagulante por 3 semanas. O ritmo cardíaco permaneceu normal por 1 mês após liberação hospitalar.
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          Nos EUA, estima-se que quase 5% dos estudantes entre 15 e 18 anos e quase 14% dos jovens adultos (18-24 anos) já são usuários de narguilé. No Reino Unido, existem duas vezes mais usuários de narguilé do que fumantes de cigarro. Na Europa em geral, é reportado que 10,6% dos jovens são usuários regulares ou ocasionais desses produtos; na América, essa porcentagem é de 6,8% (Ref.38). E em países do Oriente Médio, a porcentagem da população que fuma narguilé já varia de 9% até 15%.  E a maioria dos usuários não veem potencial de vício com a nicotina inalada pelo narguilé - como se a nicotina nesse produto fosse magicamente diferente da nicotina aspirada via cigarro - e não acreditam em qualquer toxicidade oriunda dessa forma de fumo, mesmo notando que a capacidade aeróbica diminui drasticamente após cada sessão.

           Aliás, nesse último ponto, o uso de narguilé está fortemente associado a efeitos cardiovasculares negativos em resposta à prática de exercícios físicos, marcados por reduzidas capacidades submáximas e máximas de performance aeróbicas (Ref.39). Atletas e indivíduos que gostam de realizar exercícios físicos intensos têm mais um motivo para não usarem narguilé. Evidência mais recentemente também sugere que o uso crônico causa danos no sistema reprodutivo masculino e infertilidade (Ref.52).


Campanha do Ministério da Saúde contra o uso do Narguilé


          Por fim, analisando todas as evidências acumuladas até o momento, uma revisão mais recente publicada no periódico European Heart Journal (Ref.36), investigando os efeitos do cigarro tradicional, e-cigarros e narguilé no corpo, encontrou que todos os três métodos de consumo de tabaco causam diferentes graus de inflamação e de danos ao DNA, levando a uma variedade de problemas de saúde. Em relação específica ao narguilé, as evidências fortemente suportaram um aumento de risco de 218% para o desenvolvimento de doença obstrutiva crônica pulmonar; um aumento de risco de 122% para o desenvolvimento de câncer; e um aumento de 9% na rigidez das paredes arteriais. Os pesquisadores também encontraram potencial de maior dano endotelial nas artérias - em termos de dilatação fluxo-mediada - pelo narguilé em comparação com o cigarro tradicional, e um maior risco de infecção pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) ou complicação da COVID-19.

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INFECÇÕES BACTERIANAS E NARGUILÉ

Além dos efeitos tóxicos da fumaça do narguilé, os médicos alertam que o uso coletivo do narguilé - como geralmente é feito, passando de boca em boca entre um grupo de pessoas - pode transmitir doenças infectocontagiosas, como hepatite (inflamação no fígado), herpes e tuberculose. Aliás, existem vários relatos de casos na literatura acadêmica, incluindo infecções pulmonares com bactérias resistentes a antibióticos (Ref.48). Aliás, o patógeno da tuberculose (Mycobacterium tuberculosis) (!) é uma bactéria mesófila microaerofílica (entre 20-45°C), tornando a água no jarro do narguilé um habitat ideal para sua proliferação (Ref.50). Além disso, existe evidência de que a fumaça do narguilé facilita a infecção pulmonar da M. tuberculosis, e de outros patógenos, como fungos. 


Um caso notável foi reportado recentemente no periódico Oculoplastiy and Ophthalmic Pathology Update (Ref.54). Uma menina de 3 anos de idade, após consumir o narguilé do pai, desenvolveu celulite orbital causada por infecção com uma cepa resistente da bactéria Staphylococcus aureus e com a bactéria Pseudomonas aeruginosa. O quadro foi de difícil tratamento, incluindo hospitalização por 26 dias, uso prolongado de antibióticos, drenagem cirúrgica de abcesso e três cursos do esteroide sistêmico dexametasona.
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          Nesse último ponto,  piora o fato de que a 'socialização' promovida pelo narguilé acaba atraindo ainda mais os jovens para o uso. E estudos (Ref.23) alertam que equipamentos mal higienizados de narguilé costumam concentrar diversas bactérias patogênicas, incluindo superbactérias ligadas à doenças graves, como pneumonia, e mesmo o SARS-CoV-2 (Ref.37).

          Importante, o fumo de narguilé pode também aumentar a taxa de fumo de cigarro, devido à exposição extra de nicotina.

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   EPIDEMIA NO BRASIL

           A alta popularidade do narguilé é atribuída principalmente à introdução de flavorizantes no tabaco, uma crescente cultura de socialização em bares e cafés, à disseminação das redes sociais, à falsa ideia de segurança durante o uso desse produto e à ausência de fortes e específicas políticas regulatórias. Esses fatores dificultam muito campanhas de conscientização alertando sobre os perigos do narguilé, especialmente entre os mais jovens.

          Aqui no Brasil, um estudo recente estimou que, em 2019, o uso de narguilé era feito por ~800 mil Brasileiros, dos quais ~80% tinham de 15 a 24 anos de idade, representando um aumento de 300% na prevalência entre os jovens (Ref.53). Iniciação no uso de narguilé geralmente ocorre entre os 13 e 16 anos de idade. Entre estudantes universitários dos cursos de biomedicina, medicina e enfermagem de uma instituição filantrópica de Curitiba, 92,8% afirmaram realizar uso do narguilé, com 61,5% acreditando que essa forma de fumo não causa danos quando comparado ao cigarro, mesmo realizando graduação em cursos na área de saúde (Ref.47).           

           Em torno de 75% dos fumantes Brasileiros iniciam-se no tabagismo até os 18 anos e 67% começam a fumar regularmente/diariamente com 18 anos ou menos. Nesse cenário, o narguilé acaba sendo também uma potencial porta de entrada para o fumo do cigarro, aumentando ainda mais o volume de fumo. E quando mais cedo é iniciada a dependência no tabaco, maior o risco de câncer e outras doenças crônicas não transmissíveis, morte prematura na meia-idade ou na idade madura.            


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         Estamos, sem sombra de dúvidas, enfrentando uma crescente e preocupante epidemia de narguilé pelo mundo, e em várias regiões no globo seu uso já ultrapassa o cigarro, este o qual é geralmente uma opção bem mais cara devido aos pesados impostos. Com a falsa imagem de um produto seguro para a saúde, muitos defensores desinformados do narguilé ignoram os alertas das agências de saúde e acabam caindo nas garras da indústria do tabaco. O uso do tabaco sob quaisquer formas - especialmente o fumo - permanece a principal causa de doenças e morte prematura, e responde por cerca de 9% das mortes ao redor do mundo (~6 milhões de mortes anuais). Precisamos dar um basta nisso, ou a moda do "cigarro saudável" da década de 1970 pode voltar disfarçado de um jarro de água.


ESCLARECIMENTO: É comum muitos usuários de narguilé questionarem o porquê de não existirem tantos estudos na área de saúde sobre essa forma de fumo, especialmente trabalhos clínicos de longo prazo, do que aqueles envolvendo os cigarros. Ora, o uso de narguilé ficou concentrado na região do Oriente Médio por muito tempo, e só a partir da década de 1990 é que houve uma  crescente disseminação pelo Ocidente e outras partes do mundo, muito devido ao desespero da indústria do tabaco para promover seu produto sob outras formas além do cigarro. O veneno é o mesmo, mas só na última década é que os trabalhos científicos começaram a desmascarar em peso o narguilé de forma oficial porque o uso cresceu muito e se transformou em questão séria de saúde pública. Em 2017, por exemplo, foram inúmeros os estudos publicados sobre o assunto, incluindo diversas meta-análises importantes, todas mostrando que os males do narguilé são tão nocivos quanto aqueles associados ao cigarro. Além disso, a Turquia, por exemplo - onde o consumo de narguilé é gigantesco - estendeu recentemente os rótulos de advertência sobre riscos à saúde para as garrafas ou para os vasos de narguilés, exigindo que essas advertências sejam colocadas nos dois lados do vidro, cobrindo 65% da superfície.

e-NARGUILÉ: Deve-se distinguir o narguilé dos dispositivos eletrônicos conhecidos como e-hookahs, e-shisha ou canetas hookah. Esses são sistemas eletrônicos de liberação de nicotina, que podem ser aromatizados, de modo que seu sabor é similar aos produtos de tabaco aromatizados para narguilés denominados maassel. O uso de dispositivos eletrônicos não envolve a combustão do carvão, ao invés disso, um líquido adocicado é aquecido eletronicamente para criar um aerossol que depois é inalado. Esses dispositivos estão sendo pesquisados atualmente, mas evidências de efeitos negativos ao organismos já estão sendo acumuladas na literatura acadêmica. Mas, de fato, existe uma significativa redução na emissão de algumas substâncias tóxicas, como o monóxido de carbono. Sobre os cigarros eletrônicos em geral, o assunto foi discutido no artigo: Os cigarros eletrônicos são realmente mais saudáveis?


(1) HISTÓRIA: Apesar da sua precisa origem ser incerta, os narguilés têm sido usados pelos indígenas da África e da Ásia para fumar tabaco e outras substâncias, como flores, temperos, frutas, café, maconha ou haxixe, há pelo menos quatro séculos ou mais. Foram disseminado com real força em todas as partes da Ásia e África pelas rotas comerciais envolvendo China e Índia, englobando dispositivos dos mais simples (feitos com casca de coco) até os mais complexos e luxuosos. Segundo alguns relatos históricos, o narguilé foi inventado na Índia pelo médico Hakim Abul Fath, no reinado do Imperador Akbar (que governou de 1556 a 1605) como um método de usar o tabaco que pretendia ser menos prejudicial. O médico sugeriu que a “fumaça do tabaco deve primeiro passar por um pequeno receptáculo de água para que fique inofensiva”. A crença popular, embora não embasada científicamente, de muitos usuários de narguilé nos dias atuais de que a prática é relativamente segura para a saúde pode ser tão antiga quanto o próprio narguilé. 

IMPORTANTE: Aproveitando o assunto, é válido mencionar outro problema similar: muitos acham que o cigarro de palha, só por ser feito de modo 'natural', é mais benéfico ou até mesmo completamente inofensivo à saúde. Ledo engano. Os cigarros de palha, por não possuírem filtro, fazem com que mais fumaça tóxica vá direto para o seu corpo. Além disso, eles possuem quantidades muito maiores de nicotina do que o cigarro comum, causando uma maior dependência e envenenamento - devido à nicotina em excesso. Conclusão: eles acabam sendo até piores do que o seu primo industrializado em relação ao perfil da fumaça gerada.  A única "vantagem" deles é que eles tendem a ficar apagando toda hora, porque a palha de milho usada para embalá-lo é péssima para manter uma combustão mínima e contínua. Isso induz o usuário a não consumi-lo excessivamente.

Cigarro de palha pode ser ainda mais prejudicial do que o cigarro comum

           Outro mito é pensar que os rotulados cigarros 'light' são menos nocivos por conterem filtros e matérias-primas diferenciadas. Os fabricantes colocam cores e avisos de segurança, classificando o nível de periculosidade dos produtos. Não, pura enganação. Todo cigarro é prejudicial, e vários estudos já mostraram que o consumo dessas versões mais "família" mantêm os mesmos níveis de riscos para o desenvolvimento de doenças associadas, como o câncer. O governo dos EUA, por exemplo, em 2009, proibiu os fabricantes de colocarem essas classificações de segurança nos produtos de tabaco, as quais estariam incentivando pessoas a fumarem mais sob o falso pretexto de baixa periculosidade (Ref.7).

          Qualquer ato de fumo, seja para o trago da nicotina, maconha ou qualquer outra droga, é extremamente prejudicial pelo fato de produzir fumaças carregadas por centenas de substâncias cancerígenas, além de  poderem envenenar o corpo com o próprio princípio ativo. Tente fugir do vício procurando tratamento profissional e ajuda de amigos/familiares.

           
Artigo relacionado:  Tabaco sem fumo... seguro?


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. http://www.who.int/tobacco/mpower/mpower_report_full_2008.pdf
  2. http://portal.anvisa.gov.br/wps/content/Anvisa+Portal/Anvisa/Inicio/Derivados+do+Tabaco/Assuntos+de+Interesse/Danos+A+Saude/Narguile
  3. http://www.inca.gov.br/wcm/dncf/2013/o-que-e-narguile.asp
  4. http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/cidadao/principal/agencia-saude/19588-mais-de-212-mil-brasileiros-admitem-usar-narguile 
  5. http://www.mayoclinic.org/healthy-lifestyle/quit-smoking/expert-answers/hookah/faq-20057920
  6. http://www.cdc.gov/tobacco/data_statistics/fact_sheets/tobacco_industry/hookahs/   
  7. http://www.cancer.gov/about-cancer/causes-prevention/risk/tobacco/light-cigarettes-fact-sheet
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