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Balinhas de melatonina são inofensivas?


           Problemas no sono frequentemente possuem etiologia multifatorial e muitas vezes intervenções comportamentais ou de dieta não são suficientes para resolvê-los (1). Devido ao fato do sono poder ser perturbado por processos em todos os órgãos, uma avaliação médica, psiquiátrica, neurológica e de fatores específicos ao sono pode ser necessária, resultando em tratamentos individuais que podem incluir a administração de medicamentos como melatonina, benzodiazepinas e não-benzodiazepinas. Causas reversíveis dificultando o sono podem incluir dores crônicas, transtornos de humor e de ansiedade, síndrome das pernas inquietas, apneia do sono, noctúria, doenças da tireoide, etc.

(1) Leitura complementar: 


          Nos últimos anos, balinhas ou gominhas de melatonina têm ficado cada vez mais populares para pessoas com dificuldade para dormir, especialmente por serem vendidas sem necessidade de prescrição médica e promovidas como um produto totalmente seguro. E essa falsa sensação de segurança pode estar prejudicando a saúde de muitas pessoas.

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          De forma preocupante, muitos - desde crianças até adultos - têm usado melatonina como se essa substância fosse um simples "suplemento alimentar", ou seja, de forma indiscriminada e frequentemente abusiva. E mais grave nesse último ponto: assimilando quantidades muito maiores do que aquelas produzidas naturalmente no corpo (Fig.1). Melatonina é um hormônio sintetizado de forma endógena pela glândula pineal, com efeito em vários sistemas fisiológicos e visando primariamente manter sincronia do sono com o ciclo dia/noite. Sua produção no corpo é fortemente associada com a exposição à luz natural. 

Figura 1. A melatonina é uma pequena molécula lipofílica que atua como um neuro-hormônio. A síntese endógena de melatonina ocorre primariamente na glândula pineal [no cérebro] a partir do aminoácido precursor L-triptofano e liberado no terceiro ventrículo, subsequentemente alcançando a circulação sistêmica. Ambiente iluminado envia sinais nervosos ao núcleo supraquiasmático no cérebro inibindo essa síntese endógena. A melanina também é produzida em vários outros tecidos do corpo além da glândula pineal, incluindo o timo, trato gastrointestinal e até células imunes inatas e adaptativas na medula óssea. No geral, a produção endógena de melatonina é relativamente pequena (<100 µg) do que as doses comumente administradas pela via endógena.


            Reforçando, a função primária da melatonina é na regulação do ciclo "sono-despertar", ou seja, um crítico mediador circadiano. Porém, existem receptores de melatonina encontrados em várias partes do cérebro, provavelmente impactando em outras funções neurológicas; evidência sugere provável papel importante na regulação dos estágios de sono (ex.: duração e proporção dos movimentos REM e NREM). E não apenas no cérebro, receptores de melatonina têm sido encontrados em numerosos outras regiões do corpo, como tecidos adiposos, artérias coronárias, células pancreáticas beta e alfa, miométrio e testículos. Portanto, melatonina exógena pode ser esperada de afetar numerosos outros processos fisiológicos além da regulação do sono. Melatonina também têm mostrado ser um potente hormônio imunomodultório e antioxidante (!) assim como exibe ação que reduz a pressão sanguínea, aumenta a proliferação de células ósseas e inibe a reabsorção óssea (Ref.1).

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(!) Um alerta também sobre o consumo excessivo de antioxidantes na forma de suplementos multivitamínicos e afins (ex.: coenzima Q10): O que é o Paradoxo dos Antioxidantes?

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           Aliás, um recente estudo Brasileiro encontrou que o uso de suplementos de melatonina pode piorar a inflamação intestinal. Para mais informações, acesse aqui a matéria completa.

           E doses comercializadas em suplementos alimentares em certos países comumente ultrapassam 1 mg e valores alegados nas embalagens pelos fabricantes podem não corresponder com o real valor em cada dose ("gominha"). Quando consumido oralmente, a melatonina possui uma biodisponibilidade de 15% devido ao extensivo metabolismo hepático antes de alcançar a circulação sistêmica. Mesmo assim, uma gominha com concentrações tão baixas de melatonina quanto 0,1 mg a 0,3 mg já é suficiente para aumentar a concentração plasmática dessa substância em jovens adultos para níveis naturalmente encontrados no organismo no período noturno ou de sono. Um estudo recente publicado no periódico JAMA (Ref.2), analisando diferentes suplementos de melatonina nos EUA, encontrou valores de até 347% da quantidade declarada nas embalagens, com valores por dose variando de 1,3 mg até 13,1 mg! No Canadá, valores de até 478% daqueles declarados por fabricantes têm sido reportados. Crianças consumindo gominhas de melatonina podem estar sendo expostas a quantidades entre 40 e 130 vezes maiores de melatonina do que normalmente circula no corpo.

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> Nos EUA, melatonina têm sido considerada um suplemento alimentar e têm sido disponível sem prescrição desde 1994 - e, nesse sentido, não passam pelo mesmo controle rígido de qualidade de medicamentos. Aqui no Brasil, o uso da melatonina para a formulação de suplementos alimentares, destinados exclusivamente a pessoas com idade igual ou maior que 19 anos e para o consumo diário máximo de 0,21 mg, é autorizado pela ANVISA desde 2021 (Ref.3)*. Regulação varia na Europa, mas geralmente a melatonina pode ser comercializa em vários países Europeus com doses diárias recomendadas abaixo de ~1 mg, e com doses maiores permitida como produto farmacêutico com ou sem prescrição. No Reino Unido, a substância é disponível apenas com prescrição. No Japão, a melatonina não é aprovada como um fármaco.  

*Porém, a ANVISA ressaltou: "Não foram aprovadas alegações de benefícios associadas ao consumo de suplementos alimentares à base de melatonina."

> Em 2023, a ANVISA proibiu o produto "Soninho Perfeito Melatonina Kids" fabricado pela empresa M.R. Oemed Indústria Farmacêutica Ltda (Ref.4). A medida foi adotada porque a melatonina não é autorizada para uso em suplementos alimentares destinados a crianças e adolescentes, por falta de comprovada segurança nessas faixas etárias. A melatonina também não possui autorização para gestantes e mulheres que amamentam (lactantes) pelo mesmo motivo.

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           A administração exógena de melatonina pode também ter importantes interações clínicas com outros medicamentos, e é metabolizada pelas mesmas enzimas que processam diversos fármacos comumente prescritos. Entre algumas potenciais interações adversas de preocupação (Ref.1):

- parece existir um significativo risco de efeitos adversos com o uso concomitante de melatonina e antidepressivos;

- a melatonina reduz a eficácia do bloqueador de canal de cálcio nifedipina;

- interação entre melatonina e o anticoagulante varfarina, potencialmente aumentando o risco de sangramento com o uso concomitante;

- risco de efeitos sinérgicos na coadministração de melatonina com outros sedativos (ex.: melatonina potencializa o efeito do zolpidem), incluindo severa sedação;

- administração concomitante de cafeína com melatonina em jovens adultos pode aumentar a concentração sistêmica de melatonina em até 42% (provavelmente devido ao efeito de inibição na enzima CYP1A2).

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> A melatonina é metabolizada pelo fígado através das enzimas do citocromo-P450 CYP1A1, CYP1A2 e CYP2C19 para formar 6-hidroximelatonina e sendo finalmente excretada como 6-glicuronilmelatonina e 6-hidroximelatonina através dos rins. Limpeza da melatonina da circulação sistêmica é dificultada na presença de doenças hepáticas. 

> Alerta importante: Por que é perigoso misturar toranja com medicamentos?

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             Em relação à sua eficácia para o tratamento de transtornos de sono, a melatonina pode facilitar o início do sono, mas o efeito parece ser modesto e variável, e existem evidências científicas conflitantes. Em crianças com deficiências de neurodesenvolvimento, a melatonina parece ter o maior impacto sobre a indução ao sono mas pouco efeito sobre a eficiência do sono (Ref.5). Uma revisão Umbrella (Guarda-Chuva) publicada em 2022 suportou eficácia na suplementação de melatonina para o tratamento de transtorno de sono, latência tardia de sono, mas não encontrou clara evidência para aumentar a eficiência do sono (Ref.6). Doses ótimas, recomendações adequadas para diferentes pacientes e tempo de administração precisam ser melhor esclarecidos por estudos de alta qualidade (Ref.6-7).

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> Aliás, outro alerta relevante é o fato de doses terapêuticas de melatonina alegadas eficazes e usadas para diferentes faixas etárias no tratamento de distúrbios de sono e insônia variarem dramaticamente na literatura acadêmica. Para crianças indo de 0,5 a 3mg; adolescentes de 3 a 5mg; adultos de 1 a 5mg; e idosos de 1 mg a 6 mg. Em outras palavras, é incerto quais doses seriam as mais adequadas e com maior perfil de segurança. Ref.8

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            Um estudo de revisão sistemática meta-análise publicada em 2022 no The Lancet (Ref.9) não encontrou significativa eficácia de longo prazo da melatonina para o tratamento do transtorno de insônia em adultos. Um estudo de revisão sistemática e meta-análise publicado em 2023 no eClinicalMedicine (Ref.10) encontrou limitada [baixa] evidência suportando um moderado efeito de intervenção com melatonina no tratamento de insônia crônica em crianças e adolescentes, porém os pesquisadores reforçaram que essa nunca deve ser a primeira escolha de tratamento e que apenas deve ser considerada em cenários de real necessidade médica caso intervenções não-farmacológicas sejam inadequadas ou ineficazes. De fato, existe ainda limitado esclarecimento científico sobre os potenciais efeitos adversos de curto e de longo prazo em crianças e adolescentes submetidos ao tratamento de melatonina (Ref.11).

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         Portanto, NÃO compre e utilize suplementos alimentares de melatonina para você e/ou seus filhos antes de buscar adequado atendimento e orientação médica. Dependendo do problema de sono, melatonina pode ser ineficaz ou mesmo intervenção farmacêutica pode não ser necessária (ex.: higiene do sono pode ser suficiente). Melatonina é um hormônio que parece ter um amplo espectro de ação no corpo e efeitos adversos de altos níveis dessa substância circulando no organismo humano ainda não são totalmente esclarecidos. 


REFERÊNCIAS

  1. Hoyos et al. (2022). Current Insights into the Risks of Using Melatonin as a Treatment for Sleep Disorders in Older Adults. Clinical Interventions in Aging, Volume 18. https://doi.org/10.2147/CIA.S361519
  2. Cohen et al. (2023). Quantity of Melatonin and CBD in Melatonin Gummies Sold in the US. JAMA, 329(16):1401-1402. https://doi.org/10.1001/jama.2023.2296
  3. https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2021/anvisa-autoriza-a-melatonina-na-forma-de-suplemento-alimentar
  4. https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2023/anvisa-proibe-o-suplemento-alimentar-soninho-perfeito-melatonina-kids 
  5. Kennaway, D. J. (2021). "What do we really know about the safety and efficacy of melatonin for sleep disorders?" Current Medical Research and Opinion, Volume 38, Issue 2. https://doi.org/10.1080/03007995.2021.2000714
  6. Shin et al. (2022). Effects of exogenous melatonin supplementation on health outcomes: An umbrella review of meta-analyses based on randomized controlled trials. Pharmacological Research, Volume 176, 106052. https://doi.org/10.1016/j.phrs.2021.106052
  7. https://link.springer.com/article/10.1007/s11920-022-01369- 
  8. Bueno et al. (2021). Regulatory aspects and evidences of melatonin use for sleep disorders and insomnia: an integrative review. Arquivos de Neuro-Psiquiatria, 79(8). https://doi.org/10.1590/0004-282X-ANP-2020-0379
  9. Crescenzo et al. (2022). Comparative effects of pharmacological interventions for the acute and long-term management of insomnia disorder in adults: a systematic review and network meta-analysis. The Lancet, Volume 400, Issue 10347, P170-184. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(22)00878-9
  10. Edemann-Callesen et al. (2023). Use of melatonin for children and adolescents with chronic insomnia attributable to disorders beyond indication: a systematic review, meta-analysis and clinical recommendation. eClinicalMedicine, Volume 61, 102049. https://doi.org/10.1016/j.eclinm.2023.102049
  11. Händel et al. (2023). The short-term and long-term adverse effects of melatonin treatment in children and adolescents: a systematic review and GRADE assessment. eClinicalMedicine, Volume 61, 102083. https://doi.org/10.1016/j.eclinm.2023.102083