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Quais os sintomas e fatores de risco para gravidez ectópica?

Figura 1. Imagem via MRI mostrando uma gravidez ectópica abdominal. Ref.1 
 

            Uma mulher de 37 anos de idade que vivia em uma ilha remota apresentou-se ao departamento de emergência de um hospital com um histórico de 10 dias de dor abdominal. Ela tinha também um histórico de dois partos vaginais normais, um aborto espontâneo e nenhuma infecção sexualmente transmissível ou cirurgias prévias. Exame físico foi notável por um abdômen inchado, grávido. Ultrassonografia revelou um endométrio espesso, um útero vazio e uma gravidez abdominal com 23 semanas de gestação. Imagem por ressonância magnética (MRI) feita do abdômen (Fig.1) mostrou um útero sem gravidez (asterisco), um feto com desenvolvimento normal no espaço intra-abdominal (seta) e uma placenta que estava anexada ao peritônio acima do promontório sacral. Com base nesses achados, um diagnóstico de gravidez ectópica abdominal foi feito.

           Devido ao alto risco de hemorragia materna e perda fetal, a paciente foi transferida para uma unidade de atenção terciária. Após 29 semanas de gestação, uma laparotomia com parto, embolização arterial placentária e remoção parcial da placenta foi realizada. O bebê foi então admitido na unidade de tratamento intensivo neonatal (UTI neonatal). No 12° dia pós-operatório, o restante da placenta foi cirurgicamente removido. A mãe e o bebê foram liberados para casa 25 dias e 2 meses, respectivamente, após o parto.

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            O caso foi descrito e reportado no periódico New England Journal of Medicine (Ref.1).


   GRAVIDEZ ECTÓPICA

          Gravidez ectópica é estabelecida como uma condição iatrogênica em que a nidação e o desenvolvimento do blastocisto [estágio do embrião] ocorre em um local diferente do endométrio uterino. Ou seja, o embrião é implantado e o feto começa a se desenvolver em uma região fora do local adequado na cavidade uterina. A condição afeta 1-2% de todas as gravidezes (Ref.3). Apesar da localização mais comum ser na tuba uterina, em que as gestações ectópicas tubárias representam >95-98% dos casos, principalmente na região da ampola, a gravidez ectópica também pode acontecer em localizações extratubárias como na porção intersticial da tuba uterina, no ovário, na cérvice uterina, na cicatriz da cesárea, no diafragma e no abdômen. Apenas 1% das gravidezes ectópicas ocorrem na cavidade abdominal, incluindo casos muito raros no retroperitônio e no fígado (Ref.4-6).

          É uma das complicações mais comuns do primeiro trimestre de gestação e uma das causas mais frequentes de dor abdominal aguda em serviços de emergência. A condição é potencialmente fatal, sendo considerada a principal causa de morte materna no primeiro trimestre, por isso a importância do seu diagnóstico precoce, de modo que seja possível reduzir sua morbimortalidade. Na tuba uterina, quando o saco gestacional se torna maior e o lúmen tubário não mais consegue acomodá-lo, ruptura tubária pode ocorrer e causar catastrófico sangramento interno (Fig.2); esse cenário responde por aproximadamente 4-10% de todas as mortes maternas (Ref.3-7, 22). Na cavidade abdominal, a gravidez ectópica exibe taxas oito vezes maiores de mortalidade e morbidade materna do que em casos não-abdominais (Ref.7).

Figura 2. Ilustração esquemática de três tipos de gravidez. Na gravidez intrauterina [normal] (IP), embriões são implantados no endométrio do útero. Na gravidez ectópica abortiva (AEP) e na gravidez ectópica com ruptura (REP), embriões são implantados nas tubas uterinas, mas somente a REP exibe invasão excessiva de células trofoblásticas - alcançando farto suprimento sanguíneo - e contínuo crescimento do feto, levando a uma perigosa ruptura das paredes tubárias; na AEP, crescimento é limitado e ocorre aborto espontâneo. É ainda incerto o que leva a esse crescimento diferencial nos dois casos; uma hipótese relaciona diferenças no microambiente materno da tuba uterina (ex.: níveis variáveis de hormônios circulantes), favorecendo ou não invasão trofoblástica. Ref.22

           Alteração da anatomia tubária normal é a principal causa de gravidez ectópica, isso ocorre como consequência de diversos fatores como cirurgia, infecção ou tumores.  A contração de músculos lisos e batimentos ciliares dentro das tubas uterinas auxiliam o transporte de um oócito e do embrião até o útero. Danos às tubas uterinas, geralmente secundários a processos de inflamação, induzem disfunção tubária que pode resultar em retenção de um oócito ou de um embrião. Porém, os mecanismos para diferentes tipos de gravidez ectópica não foram ainda totalmente elucidados. Existe evidência de suporte inclusive para o cenário onde o óvulo fertilizado alcança diferentes partes do corpo fora do útero (ex.: cavidade abdominal) através do sistema linfático, similar à metástase de um câncer ginecológico (Ref.8). 

          Os maiores fatores de risco para gravidezes ectópicas em geral estão relacionados com gravidez ectópica prévia, patologia tubária ou cirurgia tubária prévia (Ref.9). Entre outros fatores de risco sugeridos e com níveis variados de evidência temos: 

- doença inflamatória pélvica; 

- uso de dispositivo intrauterino (!); 

- procedimentos em reprodução assistida (taxa reportada de 2-5%);

- infecção com a bactéria Chlamydia trachomatis;

- idade acima de 35 anos;

- ligação tubária;

- infertilidade;

- endometriose

- e tabagismo. 

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(!) Lembrando que gravidezes com DIU são muito raras. Sugestão de leitura: DIU é seguro e efetivo como contraceptivo?

> Gravidez ectópica na cicatriz cesariana é um evento muito raro, onde a implantação do embrião ocorre em um defeito miometrial da cicatriz. É esperado que sua incidência aumente acompanhando o aumento dos partos via cesárea - estima-se que até 2030 cerca de 28,5% das pessoas ao redor do mundo irão nascer via cesárea com contribuição especial do Leste Asiático (Ref.10). Sugestão de leitura: Parto por cesárea: Preocupante epidemia no Brasil 

> Importante diferenciar gravidez ectópica angular de gravidezes ectópicas intersticial e córnea. Na gravidez ectópica angular o embrião é implantado no ângulo lateral da cavidade uterina, medial à junção uterotubária e ligamento redondo. Apesar de representar uma gravidez de alto risco, é possível desenvolvimento fetal e parto normais no tipo angular, diferente dos outros tipos de gravidez ectópica. Ref.11

> É possível ocorrer uma gravidez ectópica concorrente com uma gravidez intrauterina normal, coincidência chamada de gravidez heterotópica. Ref.21

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          O quadro clínico é caracterizado por dor abdominal, sangramento vaginal e atraso ou irregularidade menstrual, os quais formam a tríade clássica, pelo menos um desses sinais/sintomas estão presentes na maioria dos casos de gravidez ectópica. Ressalta-se que os sintomas da gravidez podem ser menos comuns na gravidez ectópica, visto que os níveis de progesterona, estradiol e gonadotrofina coriônica humana podem ser mais reduzidos do que na gravidez normal. Os casos de gravidez tubária complicada (aborto ou ruptura) caracterizam-se por um estado hipovolêmico, com palidez cutaneomucosa progressiva e incompatível com o sangramento vaginal, além de dor abdominal difusa e outros sinais de irritação peritoneal.  


Figura 2. Gravidez ectópica espontânea, em casos extremamente raros, pode envolver gêmeos (~1 para cada 250 mil gravidezes). Na imagem acima, obtida via ultrassom transvaginal, podemos observar dois distintos sacos gestacionais (associados a gêmeos vivos) situados dentro da tuba uterina direita de uma grávida de 36 anos com 6 semanas e 4 dias de gestação. Ref.12

Figura 3. Gravidez ectópica no fígado. (a) Tomografia computacional com contraste coronal (CECT) na fase arterial mostrando o saco gestacional (seta branca) de uma gravidez ectópica hepática recebendo suprimento sanguíneo da ramificação segmental posterior da artéria hepática direita (setas vermelhas). (b) CECT na fase venosa mostrandoo saco gestacional (seta branca) também recebendo suprimento sanguíneo da divisão posterior da veia porta direita (setas amarelas). A paciente grávida em questão apresentou-se ao hospital com severas dores lombar e hipocondríaca no lado direito do corpo, e não-responsivas a analgésicos. A dor vinha progredindo [piorando] há 5 dias, com um episódio de síncope (desmaio). Em (c), foto intraoperatória mostrando o saco gestacional (seta branca) anexado à superfície inferior do segmento VI do fígado (setas amarelas). Ref.13

           Em vista da possibilidade de desenvolvimento de um abdômen agudo hemorrágico, é preciso estabelecer o diagnóstico da gestação tubária ainda íntegra. Nesse contexto, a associação da dosagem da gonadotrofina coriônica humana (β- HCG) permite o diagnóstico de aproximadamente 100% dos casos desta enfermidade, poupando métodos invasivos. Por isso é também recomendado que médicos façam testes rotineiros de hCG em pacientes em idade reprodutiva reclamando de dor abdominal sem óbvias causas (Ref.14). Diagnóstico de gravidez ectópica é quase sempre feito ao redor de 10 semanas de gestação (Ref.15).

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          Intervenção cirúrgica é o tratamento padrão-ouro no tratamento da gestação ectópica. A via preferencial é a laparoscópica, exceto nos casos em que já ocorreu a ruptura tubária com instabilidade hemodinâmica, sendo indicada nesse caso a laparotomia. O tratamento clínico medicamentoso baseia-se no uso do metotrexato (MTX), droga teratogênica antagonista do ácido fólico, o qual apresenta indicações precisas - mas ainda limitada pelos potenciais efeitos tóxicos do fármaco - e vem ganhando espaço como estratégia terapêutica da gravidez ectópica, principalmente, por conta do aumento de diagnósticos precoces nas últimas décadas. Tempo médio de resolução da gravidez ectópica com o MTX é de 22 dias, e esse quimioterápico age impedindo divisões de células embrionárias (Ref.16-17). O medicamento abortivo mifepristona também tem sido sugerido como tratamento para gravidezes ectópicas tubárias em pacientes hemodinamicamente estáveis (Ref.18).

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> Atualmente, a taxa de falha do MTX é superior a 10%, podendo levar a complicações severas ou mesmo morte da paciente. Essa relativa alta taxa de falha é devido ao fato do MTX não se acumular apropriadamente no local de implantação do embrião. Potenciais feitos colaterais negativos do fármaco incluem náusea, vômito, diarreia, nível elevado de enzimas hepáticas, danos renais e doença pulmonar. Um estudo recente reportou um novo sistema otimizado de entrega do MTX que garante maior precisão e requer uma dose 6 vezes menor desse quimioterápico, potencialmente reduzindo de forma dramática efeitos adversos (Ref.19).

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           Porém, é válido ressaltar que em um estudo recente de revisão sistemática e meta-análise publicado no periódico BJOG (Ref.20), pesquisadores não encontraram evidência de maior eficácia suportando intervenções cirúrgicas e medicamentosas para gravidezes ectópicas tubárias em comparação com espera vigilante (esperar um aborto espontâneo com o passar do tempo sob acompanhamento médico).


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. Guillaume Gorincour, M.D., Ph.D.; IMADIS Téléradiologie, Lyon, França. Malik Boukerrou, M.D., Ph.D.; Centre Hospitalier Universitaire Sud Réunion, Saint-Denis, Ilha Reunião, França. https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMicm2120220
  2. Soares et al. (2022). Tratamento da Gravidez Ectópica: Uma Revisão Integrativa. International Journal of Development Research, Vol. 12, Issue, 07, pp. 57663-57666. https://doi.org/10.37118/ijdr.24675.07.2022
  3. Li et al. (2022). Risk factors and clinical characteristics associated with a ruptured ectopic pregnancy. Medicine (Baltimore), 101(24): e29514. https://doi.org/10.1097%2FMD.0000000000029514
  4. Zhang et al. (2020). Primary hepatic ectopic pregnancy in a patient with polycystic ovary syndrome. Medicine (Baltimore), 99(13): e19649. https://doi.org/10.1097%2FMD.0000000000019649
  5. https://www.tandfonline.com/doi/full/10.2147/IJWH.S408319
  6. https://www.journaladvancedultrasound.com/CN/abstract/abstract202.shtml
  7. Xu et al. (2022). Multidisciplinary treatment of retroperitoneal ectopic pregnancy: a case report and literature review. BMC Pregnancy Childbirth 22, 472. https://doi.org/10.1186/s12884-022-04799-5
  8. Guo et al. (2023). Mechanism of Human Tubal Ectopic Pregnancy Caused by Cigarette Smoking. Reproductive Sciences 30, 1074–1081. https://doi.org/10.1007/s43032-022-00947-6
  9. Salehi et al. (2023). The environmental risk factors associated with ectopic pregnancy: An umbrella review. Journal of Gynecology Obstetrics and Human Reproduction, Volume 52, Issue 2, 102532. https://doi.org/10.1016/j.jogoh.2022.102532
  10. Nijjar et al. (2023). Definition and diagnosis of cesarean scar ectopic pregnancies. Best Practice & Research Clinical Obstetrics & Gynaecology, Volume 89, 102360. https://doi.org/10.1016/j.bpobgyn.2023.102360
  11. Shonnard et al. (2023). Angular and Interstitial Ectopic Pregnancies: A Clarification of Terms and Literature Review. Current Problems in Diagnostic Radiology, Volume 52, Issue 2, Pages 84-88. https://doi.org/10.1067/j.cpradiol.2022.11.005 
  12. Martin et al. (2021). Management of a spontaneously conceived live unilateral twin ectopic pregnancy in Australia: A case report. Case Reports in Women's Health, Volume 30, e00300. https://doi.org/10.1016/j.crwh.2021.e00300
  13. Katiyar et al. (2022). A rare case of hepatic ectopic pregnancy. Egyptian Journal of Radiology and Nuclear Medicine 53, 142. https://doi.org/10.1186/s43055-022-00818-9
  14. https://www.nejm.org/doi/pdf/10.1056/NEJMc2214213
  15. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6756681/
  16. Davenport et al. (2022). Time to resolution of tubal ectopic pregnancy following methotrexate treatment: A retrospective cohort study. PLoS ONE 17(5): e0268741. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0268741
  17. Constance & Moravek (2023). Diagnosis and Management of Ectopic Pregnancy. Handbook of Gynecology. https://doi.org/10.1007/978-3-031-14881-1_30
  18. Oltman et al. (2023). Have we overlooked the role of mifepristone for the medical management of tubal ectopic pregnancy?, Human Reproduction, Volume 38, Issue 8, Pages 1445–1448. https://doi.org/10.1093/humrep/dead116
  19. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/smll.202302969
  20. Wattar et al. (2023). Effectiveness of treatment options for tubal ectopic pregnancy: A systematic review and network meta-analysis. BJOG, Volume 131, Issue 1, Pages 5-14. https://doi.org/10.1111/1471-0528.17594
  21. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK539860/
  22. Zhao et al. (2023). Modeling human ectopic pregnancies with trophoblast and vascular organoids. Cell Reports 42, 112546. https://doi.org/10.1016/j.celrep.2023.112546