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"Não consigo arrotar": O que é a Disfunção Cricofaríngea Retrógrada?


           Para a maioria das pessoas, é mais do que natural e esperado ingerir uma bebida gasosa (ex.: água gaseificada ou refrigerante) e soltar um notório arroto pouco tempo depois. Porém, para indivíduos com uma estranha condição chamada de disfunção cricofaríngea retrógrada (DCF-R) - popularmente conhecida como Síndrome do Não-Arrotar -, esse arroto não é possível ou é extremamente dificultado. Apesar da DCF-R ter sido primeiro descrita na literatura médica em 1987, apenas em 2019 foi formalmente reconhecida e nomeada. 

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           Em novembro de 2015, o Dr. Robert W. Bastian, um otorrinolaringologista Norte-Americano, se deparou com um paciente muito desesperado que descreveu uma constelação de sintomas severos e diários: 

- inabilidade de arrotar;

- inchaço abdominal e desconforto/náusea, ou dor no peito, especialmente após as refeições;

- estranhos barulhos de gorgolejo oriundos do peito e parte inferior do pescoço, como se o esôfago estive lutando para ejetar ar;

- flatulência excessiva;

- inibição social (devido aos sintomas previamente listados);

- dificuldade de vômito.

           O paciente havia procurado vários médicos e submetido a vários testes clínicos, mas sem diagnóstico conclusivo ou qualquer alívio sintomático. Investigando o paciente em detalhes, Dr. Bastin e sua equipe médica identificaram o potencial problema e resolveram injetar toxina botulínica (1) no músculo cricofaríngeo. Após a intervenção terapêutica, todos os sintomas do paciente desapareceram. Sem conhecimento dos médicos, o paciente resolveu postar suas experiências na comunidade online do Reddit. Após essa exposição, várias outras pessoas também se identificaram com os sintomas e muitos buscaram ajuda do Dr. Bastin - resultando, até 2019, em 121 indivíduos tratados pelo médico. Com o auxílio de outros colaboradores [coautores],  Dr. Bastin resolveu publicar um paper diagnosticando e nomeando formalmente a condição. O paper foi baseado na análise de 51 pacientes e aceito para publicação em março de 2019 no periódico OTO Open (Ref.1).

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(1) Toxina botulínica (Botox) é uma neurotoxina altamente potente produzida pela bactéria Clostridium botulinum. No uso terapêutico ou cosmético, essa neurotoxina atua minimizando a tensão muscular e melhorando o relaxamento muscular, através de uma contenção transiente - mas de relativo longo prazo - da liberação de neurotransmissores na junção neuromuscular. Ref.2

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            O músculo cricofaríngeo é um grande componente do esfíncter esofágico superior. Entre várias funções, relaxamento desse músculo permite que o bolo alimentar passe através do esôfago durante a deglutição, e também possui importantes implicações para o movimento retrógrado do conteúdo estomacal (Fig.1). Cada vez que engolimos, o esfíncter esofágico relaxa brevemente para permitir que o alimento siga em direção ao estômago. O resto do tempo permanece contraído - relaxando apenas para deixar o excesso de gás estomacal ser liberado. O músculo cricofaríngeo em pacientes com DCF-R não relaxa para permitir o excesso de gás passar retrogradamente pelo esfíncter esofágico, impedindo o fenômeno do arroto. 


Figura 1. Os esfíncteres esofágicos atuam como válvulas localizadas nas extremidades do esôfago que permitem ou interrompem a passagem do bolo alimentar para o estômago e a liberação do excesso de gases do estômago pela boca. O esfíncter esofágico superior é uma barreira física que protege contra refluxo de alimento dentro das vias aéreas e previne entrada de ar no trato digestivo. Quando o músculo cricofaríngeo falha em relaxar durante o reflexo do arroto - talvez por falha de receptores mecânicos -, gás fica preso no esôfago. O excesso de gás preso no esôfago progressivamente passa a ficar preso no estômago e no intestino (ex.: aumentando a flatulência). Ilustração: https://naoconsigoarrotar.com.br/

           Atualmente, a DCF-R pode ser diagnóstica por um número de métodos. Um deles é via manometria de alta resolução que mostra a falha de relaxamento do esfíncter esofágico superior em resposta ao refluxo do gás gastroesofágico (Ref.3). A condição pode ser também diagnóstica através de sintomas comuns previamente citados, que incluem inabilidade de arrotar, inchaço abdominal, desconforto ou dor na região do peito após refeições, barulhos estranhos produzidos no peito (ou na parte inferior do pescoço), flatulência excessiva e, em boa parte dos casos, dificuldade de vomitar (!). Inabilidade de arrotar e inchaço abdominal parecem ser os sintomas mais característicos da síndrome (Ref.4) (Fig.2). Consumo de bebidas gaseificadas pioram os sintomas (Ref.13). Grande parte dos pacientes reportam que sempre conviveram com a condição ou lembram do início dos sintomas na infância ou na adolescência/início da fase adulta. Evidências acumuladas apontam que a DCF-R é congênita ao invés de ser um problema adquirido ao longo da vida - em outras palavras, esses indivíduos nascem sem a habilidade de arrotar. 


Figura 2. Paciente de 28 anos de idade com DCF-R antes - com notável inchaço abdominal - e 11 dias após injeção de Botox no músculo cricofaríngeo; crescente capacidade de arrotar reduziu progressivamente o acúmulo de gases no trato digestivo. Desde a infância, a paciente sofria com inchaço e dor abdominal, barulhos de gorgolejo, soluços dolorosos, náusea e flatulência excessiva. A partir dos 18 anos de idade, começou também a experienciar dor peitoral e dificuldade respiratória. Quando tinha 7 anos de idade, ela havia sido erroneamente diagnosticada com doença celíaca, mas apesar de ter adotado uma dieta glúten-free seus sintomas nunca melhoraram. Ao longo dos anos, vários errôneos diagnósticos e prescrições de medicamentos também falharam na explicação e resolução dos sintomas. A paciente só suspeitou de DCF-R após ler sobre as publicações do Dr. Bastian. Ref.6

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(!) A condição também pode induzir vômitos. Por exemplo, um estudo publicado em 2022 no periódico Frontiers in Neurology (Ref.5) reportou o caso de um paciente de 19 anos que sofria com flatulência excessiva desde o nascimento, a qual agravava quando ele chorava e até mesmo causava vômitos. Apenas ao ingressar na faculdade o paciente aprendeu que outras pessoas conseguiam arrotar para liberar o excesso de gases do trato digestivo, não apenas via flatulência - e foi quando ele começou a buscar tratamento. Administração de Botox no músculo cricofaríngeo resolveu todos os seus sintomas 1 semana pós-injeção.

> Sintomas de DCF-R menos comumente reportados incluem soluços dolorosos após refeições, náusea, hipersalivação em resposta à necessidade de arrotar, emetofobia e até dificuldade respiratória durante inchaços no trato digestivo. Emetofobia ou fobia de vômitos é um transtorno caracterizado pelo medo excessivo de vomitar ou de ver outras pessoas vomitando, desencadeado por estímulos internos e externos. 

*Curiosidade: Sabia que soluços possui uma etiologia associada ao ato de amamentar? Entenda:  Qual a origem da amamentação e qual a sua relação com o soluço? 

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            É ainda incerto se existem componentes genéticos específicos para a manifestação da DCF-R e a etiologia da condição não é totalmente esclarecida, mas significativa parcela dos pacientes reportam parentes de primeiro grau com a mesma condição (Ref.3). A prevalência da condição a nível populacional também é incerta.

          A maioria dos pacientes com DCF-R reportam frequência diária dos sintomas. Métodos de resolução sintomática usadas pelos pacientes incluem atividade física, mudança de posição postural, medicação, atividades relaxantes e injeção de Botox (Fig.3). Mudar a posição do corpo (ex.: deitar) e realizar atividades físicas e atividades relaxantes (ex.: banho, repouso, respiração profunda) aliviam os sintomas na maioria dos afetados. Apesar de ser um método mais invasivo e custoso, o uso de Botox parece ter eficácia tão alta quanto 99% e, de fato, representa atualmente o tratamento mais efetivo e sustentado (Ref.7-9). Doses de Botox aplicadas variam de 25 a 100 unidades, mas recentemente foi reportado sucesso terapêutico com uma dose ainda menor (10 unidades) (Ref.6). Geralmente anestesia local ou geral é aplicada para a injeção de Botox no músculo cricofaríngeo, mas o procedimento pode ser feito também sem anestesia. 


Figura 3. Botox diluído em solução salina sendo aplicado no músculo cricofaríngeo de um paciente com DCF-R sob anestesia geral. O procedimento dura cerca de 30 minutos. Efeito terapêutico positivo do Botox parece persistir mesmo após 3 meses seguindo a aplicação, duração presumida da ação dessa neurotoxina. Tipicamente, nenhum significativo evento adverso é reportado, com exceção de ocasional, temporária e leve disfagia (dificuldade de engolir) pós-injeção. Ref.10

          Não é totalmente esclarecida ainda a ação do Botox no tratamento da condição. É obviamente sugerido que essa neurotoxina relaxa o músculo cricofaríngeo, permitindo expulsão retrógrada e espontânea de gás preso no esôfago e restaurando os mecanismos associados ao arroto. E mesmo quando a ação do Botox começa a ser reduzida ao longo do tempo, o reestabelecimento dos mecanismos neurofisiológico ligados ao arroto continuam persistindo para grande parte dos pacientes (pediátricos e adultos), prevenindo a recorrência dos sintomas mesmo após vários meses pós-injeção. Em torno de 80% dos pacientes, com uma única injeção, ficam livres dos sintomas por uma média de aproximadamente 20 meses; em torno de 20% apresentam recorrência dentro de 4 meses, e geralmente buscam novas injeções (Ref.13).

           Em um caso de recorrência dos sintomas de DCF-R seguindo injeção de Botox [sucesso inicial, mas persistente retorno dos sintomas ~5 meses pós-injeção], tratamento através de miotomia cricofaríngea com laser de CO2 mostrou-se também efetivo (Ref.11).

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           Por causa da natureza dos sintomas, a DCF-R engloba mais do que desafios físicos, impactando também a vida social, relacionamentos e bem-estar mental dos afetados pela condição. Pacientes comumente reportam vergonha, ansiedade, depressão, impacto negativo em relações amorosas e prejuízos na produtividade profissional. Muitos evitam sair com amigos e familiares devido ao medo de dor abdominal e outros sintomas após refeições (isolamento social). Alguns pacientes inclusive já reportaram contemplação de suicídio. Por isso a importância de maior conscientização e visibilidade da condição.


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. Bastian et al. (2019). Inability to Belch and Associated Symptoms Due to Retrograde Cricopharyngeus Dysfunction: Diagnosis and Treatment. https://doi.org/10.1177/2473974X19834553 
  2. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK557387/
  3. Chen et al. (2023). "Retrograde cricopharyngeus dysfunction: How does the inability to burp affect daily life?" Neurogastroenterology & Motility. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/nmo.14721 
  4. Spiegel et al. (2022). Retrograde Cricopharyngeus Dysfunction: The Jefferson Experience. The Laryngoscope, Volume 133, Issue 5, p. 1081-1085. https://doi.org/10.1002/lary.30346
  5. Xie et al. (2022). Case report: A case of novel treatment for retrograde cricopharyngeal dysfunction. Frontiers in Neurology, Volume 13. https://doi.org/10.3389/fneur.2022.1005655
  6. Pavesi et al. (2023). Retrograde Cricopharyngeus Dysfunction effectively treated with low dose botulinum toxin. A case report from Italy. Frontiers in Neurology, 14: 1238304. https://doi.org/10.3389%2Ffneur.2023.1238304
  7. Hoesli et al. (2020). The Long-term Efficacy of Botulinum Toxin Injection to Treat Retrograde Cricopharyngeus Dysfunction. OTO Open. https://doi.org/10.1177/2473974X20938342
  8. Hoesli et al. (2021). Efficacy and Safety of Electromyography-Guided Injection of Botulinum Toxin to Treat Retrograde Cricopharyngeus Dysfunction. OTO Open. https://doi.org/10.1177/2473974X21989587 
  9. Doruk & Pitman (2023). Lateral Transcervical In-office Botulinum Toxin Injection for Retrograde Cricopharyngeal Dysfunction. The Laryngoscope. https://doi.org/10.1002/lary.30871
  10. Karagama, Y (2021). Abelchia: inability to belch/burp—a new disorder? Retrograde cricopharyngeal dysfunction (RCPD). European Archives of Otorhinolaryngoly 278, 5087–5091. https://doi.org/10.1007/s00405-021-06790-w
  11. Bastian et al. (2020). Partial Cricopharyngeal Myotomy for Treatment of Retrograde Cricopharyngeal Dysfunction. OTO Open. https://doi.org/10.1177/2473974X20917644
  12. Akst et al. (2023). Experiences of Patients Living with Retrograde Cricopharyngeal Dysfunction. The Laryngoscope. https://doi.org/10.1002/lary.31157
  13. Smith et al. (2022). “I've never been able to burp”: Preliminary description of retrograde cricopharyngeal dysfunction in children. International Journal of Pediatric Otorhinolaryngology, Volume 161, 111261. https://doi.org/10.1016/j.ijporl.2022.111261