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Por que o Rato-Toupeira-Pelado é um mamífero tão único?


- Atualizado no 24 de agosto de 2023 -

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           Não se deixem levar pelas aparências! O rato-toupeira-pelado (Heterocephalus glaber) é uma das mais extraordinárias criaturas que vivem em nosso planeta e é alvo de diversos estudos para entender como o seu corpo consegue ser tão fantástico e único. Esse roedor desafia várias regras que regem os mamíferos, e muito raramente adquire câncer, é bastante resistentes a alguns tipos de dor e pode sobreviver até 18 minutos sem oxigênio. Mas duas características que mais chamam atenção nesse pequeno animal é a sua extrema longa longevidade e a capacidade das fêmeas continuarem com alta fertilidade até o fim da vida. Aliás, um estudo publicado em 2018 no periódico eLife chegou inclusive a sugerir que esses estranhos roedores desafiam a Lei da Mortalidade.

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   RATO-TOUPEIRA-PELADO

        Medindo entre 14 e 17 cm de comprimento, e possuindo uma massa corporal entre 30 e 80 gramas, o rato-toupeira-pelado é o único representante do gênero Heterocephalus , englobado na família de roedores escavadores Africanos Bathyergidae (popularmente conhecidos como ratos-toupeiras-Africanos ou simplesmente ratos-toupeiras). 

           O rato-toupeira-pelado é o único mamífero que não possui termorregulação corporal (a temperatura dos seus corpos depende da temperatura ambiente), e apenas esse animal e outra espécie de rato-toupeira-Africano  - o Rato-Toupeira de Damaraland (Fukomys damarensis) -, possuem um sistema de organização social (eussocialidade) parecido com o das abelhas e formigas (são os únicos mamíferos que são regidos por uma colônia controlada por uma rainha!), incluindo trabalhadores e soldados. As rainhas possuem mais que o dobro do tamanho dos 'operários' e coordena colônias que alcançam uma população de até 300 indivíduos e que podem construir túneis de até 3 km de comprimento! O metabolismo dessa espécie é bem lento e o seu corpo, como o nome sugere, não possui quase nenhum pelo. Alimenta-se de tudo o que encontram pelo caminho dos seus túneis.



         Como já deu para perceber, o Rato-Toupeira-Pelado é único entre os mamíferos, e isso porque nem citamos seus 'poderes especiais'. Podemos destacar os principais:

1.Seus dentões da frente, uma das suas características físicas mais marcantes, ficam fora da boca para poderem cavar a terra e impedir que esta entre na sua boca, a qual fica selada atrás deles. E, como os outros roedores, seus dentes não param de crescer, precisando ser sempre gastos (perfeito para quem gasta a vida toda cavando com essas estruturas!).

2. Essa espécie não sente certos tipos de dor que para a grande maioria dos outros animais, especialmente mamíferos, seriam insuportáveis. Dores mecânicas esses roedores sentem normalmente, mas não químicas (ácidos, por exemplo). Sua pele não possui uma neurotransmissor chamado 'substância P', relacionada com a transmissão da sensação de dor. Acredita-se que essa adaptação surgiu por causa do ambiente com alta concentração de dióxido de carbono (CO2) no qual eles vivem - maior acidez em superfícies úmidas (!), algo potencialmente irritante para a pele e que poderia atrapalhar as atividades de escavação. Além disso, vivem expostos a metais pesados diversos, toxinas de defesa das plantas e baixa disponibilidade de oxigênio. Aliás, essas extremas condições que eles suportam no seu habitat é outra incrível capacidade de resistência. Isso sem contar que conseguem ficar até 18 minutos sem oxigênio (O2) para respirar!

3. Considerando o seu tamanho e comparando com outros ratos, o rato-toupeira-pelado vive quase uma eternidade! Enquanto um camundongo (um típico roedor de dimensões similares e massa em torno de 40 gramas) dificilmente alcança os 6 anos de idade, essa espécie de rato pode ultrapassar os 37 anos! Esse valor de longevidade é várias vezes maior do que o predito para um mamífero com base na faixa de massa corporal e dimensões dessa espécie. E grande parte deles ultrapassa facilmente os 24 anos. Pesquisadores acham que isso está relacionado, em especial, ao seu baixo metabolismo (menos estresse oxidativo) e características genéticas ainda não elucidadas - apesar do seu genoma ter sido sequenciado em 2011 (Ref.4). Essa espécie é bastante explorada em estudos de longevidade;

4. Até o ano de 2016, eles eram os únicos animais conhecidos que nunca tinham demonstrado desenvolvimento de câncer*! Essa extraordinária resistência aos tumores é amplamente pesquisada hoje, e  promessas futuras de aplicações em nossa espécie para a prevenção e tratamento da doença (!);  *Dois espécimes com tumores foram encontrados em um zoológico (Ref.3), mas com um porém: o ambiente em que eles estavam não era aquele típico do habitat natural desses roedores, contendo uma maior quantidade de oxigênio. Isso pode ter fomentado o desenvolvimento de tumores.

5. Esses roedores não envelhecem como nós ou a maioria dos outros animais. As mudanças que o corpo do rato-toupeira-pelado sofre com o avanço da idade são muito atenuadas, e a capacidade reprodutiva mantêm-se quase constante, com as fêmeas não exibindo qualquer sintoma de menopausa e ficando altamente férteis até idades acima dos 30 anos. Status neuronal, cardíaco, composição corporal, qualidade óssea e metabolismo praticamente não mudam mesmo em idades bem avançadas (acima dos 20 anos). Nas células, as funções de proteassoma, assim como a massa mitocondrial e expressões gênicas e proteicas são mantidas com a idade. E mais: eles alcançam a idade reprodutiva entre 6 e 12 meses de idade, e completa constituição adulta aos 2 anos!

          Vivendo nas regiões áridas e semi-áridas da África sub-Sariana, especialmente na Etiópia, Quênia e Somália, esses fascinantes animais não se encontram ameaçados em termos de conservação. Apesar das extremas condições do habitat subterrâneo dessa espécie - vivem quase exclusivamente enterrados -, esse mesmo ambiente protege esses animais de predadores, das ações antropogênicas e das bruscas mudanças temporais e climáticas na superfície, com os túneis mantendo de forma contínua as condições ambientais (parâmetros físico-químicos) razoavelmente constantes. Aliás, acredita-se que essa espécie primeiro emergiu no curso evolucionário há cerca de 35 milhões de anos, persistindo sem muitas alterações até hoje.


   (!) GENE DA LONGEVIDADE

            Os r.-t.-pelados vivem até 41 anos de idade, quase 10 vezes o tempo de roedores de tamanho similar! Suspeita-se inclusive que esses animais não envelhecem! Enquanto todos os mamíferos possuem o gene nmrHas2, a versão existente no H. glaber parece aumentar de forma robusta sua expressão. Esse gene produz o ácido hialurônico de alto peso molecular (HMW-HA), esse o qual está presente em concentrações ~10 vezes maior no corpo do que outros roedores e humanos.

           O HMW-HA é parcialmente responsável pelos mecanismos anticancerígenos do H. glaber.

           Em um  recente estudo, publicado na Nature (Ref.16), pesquisadores produziram camundongos geneticamente modificados para expressar a versão do gene nmrHas2 do H. glaber. Os camundongos transgênicos exibiram maior resistência a cânceres, longevidade estendida e envelhecimento mais saudável. Ao longo do envelhecimento e longevidade média 4,4% maior, os camundongos transgênicos exibiram reduzido status inflamatório, maior proteção contra estresse oxidativo e função da barreira intestinal melhorada.

            Análises subsequentes mostraram que o HMM-HA isolado era responsável por esses efeitos benéficos, ou seja, não eram especificamente ligados ao gene nmrHas2.

           Os resultados sugerem que intervenções que aumentem a síntese ou reduzam a degradação da molécula de HMW-HA no corpo humano podem ter potencial para aumentar a nossa longevidade e melhorar a saúde.

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   JUVENTUDE ETERNA?

          Em um notável estudo publicado no começo de 2018 (Ref.9), pesquisadores mostraram que o rato-toupeira-pelado não parece envelhecer! Segundo sugerem os resultados do estudo - aliás, o primeiro estudo que analisou o histórico de vida de milhares de indivíduos dessa espécie - o risco de morte não sobe à medida que a idade desse roedor avança, como acontece para todos os outros mamíferos.

         Liderando o estudo, está a Bióloga Rochelle Buffenstein, a qual vem estudando esses animais há mais de 30 anos e, quase literalmente, coletou um inteiro ciclo de vida de dados para essa espécie. Para cada espécime em seus cuidados, Buffenstein registrava a data de nascimento e de morte, e se cada um deles havia sido morto durante um experimento ou fornecido para outros pesquisadores.

          O que a pesquisadora encontrou foi surpreendente: ratos-toupeiras-pelados não parecem respeitar a lei de Gompertz, uma equação matemática que descreve o envelhecimento nos mamíferos. Em 1825, o matemático Britânico Benjamin Gompertz demonstrou que o risco de morte aumenta exponencialmente com a idade. Em humanos, por exemplo, esse risco razoavelmente dobra a cada 8 anos após a idade de 30 anos. A lei se aplica a todos os mamíferos após a idade adulta. Bem, isso porque Gompertz não conhecia o rato-toupeira-pelado.


         Segundo o estudo conduzido por Buffensteine, após atingirem a maturidade sexual aos 6 meses de idade, cada rato-toupeira-pelado analisado manteve constante o risco de morte em cerca de 1 para cada 10000, até o fim dos seus dias de vida! É como se um humano mantivesse seu vigor, resistência e vitalidade adolescente - e o forte corpo de um jovem adulto - até os 75-80 anos. Em outras palavras, o rato-toupeira-pelado não parece envelhecer de forma significativa! Mas como explicar essa aberração na biologia mamífera?

          Estudos já mostraram que esse roedor possui um sistema reparador no DNA bastante ativo e altos níveis de proteínas chaperonas, as quais ajudam outras proteínas a assumirem suas conformações terciárias e quartenárias corretamente. Porém, ainda é incerto se apenas isso explica a gigantesca longevidade desses animais e sua aparente ausência de envelhecimento. Como explorado no artigo Por que envelhecemos e o que estamos fazendo para frear esse processo?, existem muitas dúvidas que cercam o processo de envelhecimento entre os animais, e sua causa provavelmente é multifatorial.


   OS DADOS DO ESTUDO SÃO CONSISTENTES?

           Apesar dos dados do estudo de 2018 serem de alta qualidade, outros cientistas ao redor do mundo pediram cautela ao interpretá-los. Devido ao fato da maioria dos animais terem sido mortos ou movido para outros laboratórios, menos do que 50 espécimes no estudo passaram dos 15 anos de idade, com o mais velho deles alcançando 35 anos - e ainda vivo na época de publicação do estudo. Nesse sentido, mais - e mais velhos - ratos-toupeiras-pelados são necessários para confirmar se o risco de morte da espécie realmente não muda com o avanço da idade.

          Porém, os autores do estudo discordaram das críticas céticas (Ref.10). Para eles o número de roedores analisados foi suficiente para atestar a validade da lei de Gomperz. Segundo afirmou Buffenstein na época, seu estudo possui 3000 pontos de dados, com o conjunto indicando uma clara conclusão. Mas, segundo a própria pesquisadora, existe uma pequena possibilidade - também apontada por outros especialistas - de que significativo envelhecimento ocorra nessa espécie, mas muito mais tardiamente do que em outros mamíferos. Ainda é um pouco incerto o que ocorre em seus corpos após 20 ou 30 anos de idade, mas considerando o baixíssimo risco de morte (1/10000) perdurando por tanto tempo, seria algo improvável. 

           Um estudo subsequente, publicado também em 2018 no periódico PNAS (Ref.11) mostrou que, apesar do rato-toupeira-pelado não exibir um significativo fenótipo de envelhecimento com o avanço da idade, incluindo alta resistência às patologias que acompanham esse processo, suas células individuais parecem envelhecer de forma muito similar àquela de outros roedores, incluindo mecanismos de senescência induzidos por danos no DNA e envelhecimento celular programado. Em outras palavras, uma das principais armas evolucionárias contra o câncer (freio mitótico para as células) permanece presente nessa espécie. Contudo, segundo o estudo, parece que esse envelhecimento celular é mais organizado metabolicamente, e não o caos metabólico observado, por exemplo, em ratos.

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   FERTILIDADE ETERNA?

          Senescência reprodutiva - ou redução da fertilidade - nas fêmeas de mamíferos é resultante, em particular, da depleção de um número finito de folículos ovarianos produzidos no desenvolvimento embrionário ou início da vida pós-natal. Em outras palavras, e como regra geral, as fêmeas dos mamíferos nascem com um número finito de oócitos (no caso, oócitos primários ou oócitos I) - associados aos folículos primordiais -, os quais são produzidos no útero através de um processo chamado de ovogênese. Essa reserva de oócitos I não muda e irá suprir gametas ao longo de todo o período reprodutivo da fêmea. Ao longo do tempo, essa reserva é dramaticamente reduzida por causa dos oócitos liberados durante a ovulação (1) e também pela morte da maior parte deles ao longo dos processos ovulatórios, reduzindo substancialmente a fertilidade feminina com o avanço da idade. Nos humanos, o período reprodutivo das fêmeas também é limitado pela atípica menopausa precoce característica da nossa espécie (2).

Leitura recomendada

          Em contraste, as fêmeas do rato-toupeira-pelado - particularmente as rainhas - conseguem engravidar ao longo de todo o período da vida, exibindo alta fertilidade até a morte. Processos especiais atuam nessa espécie preservando a reserva ovariana. 



          Um estudo recente publicado na Nature Communications (Ref.15) parece ter solucionado a questão. Primeiro, os pesquisadores confirmaram que as fêmeas do rato-toupeira-pelado possuem um número excepcionalmente muito grande de oócitos na reserva ovariana em comparação com ratos. Por exemplo, aos 8 dias de idade, uma fêmea de rato-toupeira-pelado possui uma média de 1,8 milhão de oócitos, cerca de 95 vezes mais a quantidade observada em ratos da mesma idade. Além disso, a taxa de morte das células reprodutivas no rato-toupeira-pelado era inferior do que aquela observada nos ratos.

          Mais impressionante, o estudo encontrou que a ovogênese nas fêmeas do rato-toupeira-pelado continua ocorrendo muito após o nascimento. Os pesquisadores observaram que as células precursoras dos oócitos (células germinativas primordiais) continuavam se dividindo em fêmeas com 3 meses de idade, sendo também encontradas naquelas com 10 anos de idade. Até 3 anos de idade, observou-se coexistência de células germinativas em vários estágios de desenvolvimento, incluindo células pré-meióticas, células em prófase meiótica I e folículos, algo similar ao descrito no ovário de fetos humanos. Isso sugere que a ovogênese continua ao longo de toda a vida das fêmeas, renovando a reserva ovariana e mantendo um grande número de oócitos! Nos humanos, a ovogênese é finalizada no desenvolvimento fetal; nos ratos, pouco após o nascimento.

           Somados os achados, fica fortemente sugerido que o rato-toupeira-pelado também quebra a "lei da fertilidade" nos mamíferos, exibindo uma "fertilidade eterna". Esse roedor também derruba o dogma de que as fêmeas dos mamíferos sempre carregam um número finito de oócitos estabelecido antes ou pouco após o nascimento.

           Como já mencionado, apenas uma única fêmea dominante na colônia de ratos-toupeiras-pelados engravida e gera filhotes, suprimindo de forma reversiva a capacidade reprodutiva das outras fêmeas para manter seu status de rainha. Quando a rainha morre ou é removida da colônia, fêmeas subordinadas competem para tomar seu lugar e se tornarem reprodutivamente ativas.

          Curiosamente, no estudo, os pesquisadores também encontraram que as fêmeas subordinadas também possuíam células precursoras de ovários mas que só começavam a se dividir somente após a transição para rainha.

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   DIÓXIDO DE CARBONO: KRIPTONITA?

          Outra característica bem notável dos ratos-toupeiras-pelados é a impressionante resistência a altos níveis de dióxido de carbono (CO2) no ambiente (~2,5%), o que para outros mamíferos seria um cenário aterrorizante de sufocamento (3). Porém, apesar disso parecer à primeira vista outra incrível habilidade desses animais, é, na verdade, uma condição de sobrevivência. Sem altos níveis de dióxido de carbono, esses roedores simplesmente não funcionam no seu habitat e estilo de vida.

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          Em um recente estudo publicado no periódico Current Biology (Ref.12), pesquisadores mostraram que quando os ratos-toupeiras-pelados são expostos ao ar fresco (hiperventilação com concentração de CO2 de 0,4%) em meio a um ambiente quente (42°C) - tipicamente onde vivem, em regiões áridas e semi-áridas Africanas, as temperaturas superficiais ultrapassam os 46°C - eles acabam tendo convulsões. Essa curiosa necessidade por dióxido de carbono, segundo o estudo, é explicada pela presença de uma mutação em um gene (KCC2) que codifica o principal transportador neuronal de cloreto.

          Mutações nesse gene são também observadas em famílias humanas onde os indivíduos tendem a experienciar mais frequentemente convulsões febris. Com a mutação, o transportador KCC2 não consegue controlar adequadamente as concentrações de íons cloreto nos neurônios centrais, deflagrando uma "pane" no cérebro na presença de uma febre. Como os ratos-toupeira-pelados possuem pouco controle térmico da temperatura corporal, ao serem expostos a um ambiente quente acabam ficando com a temperatura corporal alta muito rapidamente e suscetíveis aos ataques de convulsão. Altas concentrações de dióxido de carbono ajudam o cérebro a ficar sob parâmetros normais - ao diminuir o pH sanguíneo (3) -, compensando o transportador KCC2 deficiente.

          E o mais interessante: essa mutação nos ratos-toupeiras-pelados pode ter papel fundamental em mantê-los sob o regime eussocial, ao evitar que os animais saiam dos túneis com altas concentrações de dióxido de carbono. Assim, um indivíduo que resolva se aventurar na superfície e fora dos túneis acaba sendo forçado a voltar para a colônia devido à hiperexcitabilidade e super-estimulação ou ansiedade causadas pelas áreas com baixa concentração desse gás. Reforça isso o fato do ratos-toupeiras de Damaraland também carregarem uma mutação no gene KCC2.

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   PARADOXO DA AUDIÇÃO

          Todos os ratos-toupeiras-Africanos possuem uma péssima audição, com reduzida sensibilidade e estreita faixa de frequências sonoras. Aliás, esses animais não possuem nem mesmo uma orelha externa. O rato-toupeira-pelado ouve dentro de uma estreita frequência, de 125 cHz até 8 kHz, com apenas uma audição levemente mais sensível a 4 kHz. Mas, contraintuitivamente, esses roedores são altamente vocais, usando constantes e fortes chiados e gorjeios para comunicarem entre si. Nesse sentido, é assumido que essa pobre audição é fruto de um processo degenerativo durante a evolução, em detrimento de outros fenótipos adaptativos.

          No entanto, em um estudo publicado em 2021 no periódico Current Biology (Ref.13), pesquisadores - após confirmarem com testes de audição similares àqueles usados em humanos que o rato-toupeira-pelado realmente possui péssima audição - identificaram assinaturas de seleção positiva em cinco de seis mutações associadas à surdez. Em específico, essas mutações representam substituições de aminoácidos em proteínas da estrutura das células ciliadas auditivas. Além disso, os pesquisadores descobriram que, por causa dessas mutações, essa espécie não possuía amplificação coclear, algo antes não registrado entre os mamíferos.

          A amplificação coclear é auxiliada pelas células ciliadas auditivas externas, localizadas no ouvido interno. Sem funcionamento adequado dessas células - as quais recebem vibrações auditórias e enviam sinais para o cérebro -, a detecção de sons é substancialmente reduzida. Sons muito altos podem matar essas células ciliadas, as quais não podem ser regeneradas.

            Esses achados levaram os pesquisadores a concluírem que os ratos-toupeiras-pelados evoluíram esses defeitos na audição para impedir que seus constantes e fortes ruídos dentro dos túneis subterrâneos não danificassem letalmente suas células ciliadas, o que poderia causar total surdez nesses roedores.

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   TRANSMISSÃO CULTURAL DE DIALETOS

          Em um estudo publicado no periódico Science (Ref.14), pesquisadores revelaram que a mais comum vocalização dos ratos-toupeiras-pelados - um suave gorjeio - é usada para transmitir informação sobre membros de um grupo, criando distintos dialetos entre as colônias! Via experimentos com gravação de áudio, os pesquisadores mostraram que os indivíduos realizam respostas vocais que preferenciam aquelas da colônia de origem. Filhotes de uma colônia criados na vida pós-natal em uma outra colônia passam a realizar respostas vocais com a assinatura da nova colônia dentro de seis meses, indicando transmissão horizontal e flexibilidade das vocalizações (aprendizado e cultura vocal). O estudo também mostrou que a integridade do dialeto de cada colônia é parcialmente controlado pela rainha: a coesividade do dialeto diminui com a perda da rainha e reemerge apenas com a ascendência de uma nova rainha.

          Para essas conclusões, os pesquisadores analisaram, ao longo de 2 anos, o registro de mais de 36 mil vocalizações associadas a dialetos únicos de 166 espécimes vivendo em sete colônias estabelecidas em laboratórios da Alemanha e da África do Sul. No vídeo abaixo, é possível ver o ambiente laboratorial de experimentos para o registro e análise dos sons gerados por esses animais.


             


          É a primeira evidência de aprendizado vocal em um roedor, e pode ajudar os cientistas a entender como complexas vocalizações evoluíram em animais sociais, incluindo humanos. Os pesquisadores acreditam que os ratos-toupeiras-pelados evoluíram dialetos únicos entre membros de uma mesma colônia - de forma similar a humanos, cetáceos e várias aves - para melhor filtrar intrusos. De fato, como são quase cegos e vivem em ambientes escuros de túneis subterrâneos, esses animais são bastante violentos contra intrusos e geralmente os matam. Manter um dialeto único fortalece a ligação social e a proteção do grupo.       


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. http://animaldiversity.org/accounts/Heterocephalus_glaber/
  2. http://www.iucnredlist.org/details/9987/0
  3. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/26846576
  4. http://www.nature.com/nature/journal/v479/n7372/full/nature10533.html
  5. http://animaldiversity.org/accounts/Mus_musculus/
  6. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5142786/
  7. http://www.nature.com/news/2008/080128/full/news.2008.535.html
  8. https://academic.oup.com/biomedgerontology/article/60/11/1369/623073/The-Naked-Mole-Rat-A-New-Long-Living-Model-for
  9. https://elifesciences.org/articles/31157
  10. http://www.sciencemag.org/news/2018/01/naked-mole-rats-defy-biological-law-aging
  11. http://www.pnas.org/content/early/2018/01/30/1721160115
  12. https://www.cell.com/current-biology/pdf/S0960-9822(20)30478-4.pdf
  13. https://www.cell.com/current-biology/fulltext/S0960-9822(20)31189-1
  14. https://science.sciencemag.org/content/371/6528/503
  15. Brieño-Enríquez et al. (2023). Postnatal oogenesis leads to an exceptionally large ovarian reserve in naked mole-rats. Nat Commun 14, 670. https://doi.org/10.1038/s41467-023-36284-8
  16. Zhang et al. (2023). Increased hyaluronan by naked mole-rat Has2 improves healthspan in mice. Nature. https://doi.org/10.1038/s41586-023-06463-0