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Barata-d'água é uma barata ou um percevejo?

Figura 1. Percevejo da espécie Lethocerus americanus

- Atualizado no dia 15 de dezembro de 2024 -

 
          Apesar do nome, insetos popularmente conhecidos como "baratas-d'água" NÃO são baratas, são hemípteros. Mais especificamente, grandes percevejos da família Belostomatidae. Essa família engloba ~150 espécies distribuídas em 8-11 gêneros e encontradas em áreas de água doce {ex.: campos de arroz, lagos, rios, pântanos} subtropicais e tropicais ao redor do mundo. No Brasil, existem pelo menos 52 espécies pertencentes a quatro gêneros: Belostoma, Lethocerus, Weberiella e Horvathinia (Fig.2). A maioria das espécies possui porte corporal adulto relativamente grande (>2 cm) e algumas podem exceder 12 cm.

Figura 2. Algumas espécies de Belostomatidae encontradas no Brasil: (A) = Belostoma pygmeum (macho, Amazonas). (B) = B. ribeiroi (fêmea, Mato Grosso do Sul). (C) = B. stollii (macho, Amazonas). (D) = B. bachmanni (fêmea, Amazonas). (E) = B. fittkaui (macho, Amazonas). (F) = Lethocerus annulipes (macho, Amazonas). (G) = L. delpontei (macho, Amazonas). (H) = L. maximus (macho, Roraima). (I) = L. paraensis (fêmea, Pará). (J) = Horvathinia pelocoroides (macho, Rondônia). (K) = Weberiella rhomboides (macho, Rondônia). Barra de escala: (A-E, J-K): 2 mm, (F-I): 5 mm. Ref.2

          Esses percevejos são predadores aquáticos muito importantes para vários ecossistemas aquáticos, e muitos são considerados inimigos naturais de insetos e de moluscos de interesse médico (ex.: larvas de mosquitos vetores de doenças diversas). No geral, se alimentam de animais aquáticos diversos, incluindo girinos, pequenos peixes e até filhotes de aves por algumas espécies de grande porte, em especial a subfamília Lethocerinae (Fig. 3). Baratas-d'água de menor porte, como o gênero Belostoma, tipicamente se alimentam de pequenos invertebrados. Esses insetos usam suas partes bucais perfurantes e especializadas em sucção para consumir presas. Durante submersão total, as baratas-d'água respiram através de bolhas de ar que ficam aderidas sob as asas.


Figura 3. Fotos (A-D): baratas-d'água da espécie Kirkaldyia deyrolli, capturando peixes e girinos. Adultos dessa espécie podem ultrapassar 11 cm de comprimento. Esses percevejos usam as notáveis garras no segmento terminal das duas pernas dianteiras para capturar as presas. Ref.1

Figura 4. Barata-d'água da espécie Lethocerus delpontei, um dos maiores belostomatídeos conhecidos. Percevejos do gênero Lethocerus podem ultrapassar 12 cm de comprimento. As principais espécies encontradas aqui no Brasil são: L. delponteiL. grandis e L. maximusRef.6

          As baratas-d'água possuem um estranho sistema reprodutivo e de acasalamento. Primeiro, esses percevejos exibem cuidado paternal exclusivo: os machos cuidam dos ovos depositados pelas fêmeas sobre suas costas (Fig.4) ou sobre plantas emergentes (vegetação acima da superfície da água). Nesse último caso, existe intensa competição entre fêmeas, através da destruição de ovos de outras fêmeas e "captura" dos machos [pais] cuidando desses ovos para acasalamento. O cuidado paternal garante adequada oxigenação e umidade para os ovos (Ref.1).


Figura 4. Macho da espécie Abedus herberti carregando ovos fertilizados nas costas. Percevejos que carregam ovos nas costas são incluídos na subfamília Belostomatinae. Percevejos que cuidam dos ovos depositados sobre vegetação (ex.: Lethocerus sp.) são incluídos na subfamília Lethocerinae. Percevejos machos que carregam ovos nas costas podem abandoná-los sob certas condições ambientais estressantes (ex.: baixa temperatura) e costumam copular repetidas vezes com o parceiro fêmea mesmo após deposição dos ovos (talvez para reduzir a competição de espermatozoides entre machos). Ref.1

             Algumas espécies de baratas d'água já estão ameaçadas de extinção - incluindo particularmente a K. deyrolli, no Japão -, e principais fatores de declínio populacional incluem agrotóxicos, poluição da água e introdução de espécies invasoras.

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> As baratas-d'água podem causar mordidas extremamente dolorosas em humanos e outros vertebrados através das suas partes bucais. A mordida causa geralmente vermelhidão, inchaço e coceira local, e a intensa dor resultante - com possível parestesia no membro afetado, febre, reação alérgica e sensação de ardência - pode persistir por horas. Esses efeitos parecem ser intensificados pela inoculação da saliva tóxica e proteolítica desses insetos - usada para a captura [paralisia] e digestão de presas. Porém, para humanos, a toxicidade da saliva tipicamente não representa preocupação médica. Por outro lado, existe suspeita de que a mordida desses insetos pode ser infecciosa devido à potencial transmissão da bactéria Mycobacterium ulcerans - responsável pela úlcera de Buruli - colonizando a glândula salivar. Ref.6-13

Uma vez que a presa é firmemente capturada pelas ágeis pernas frontais, a barata-d'água injeta a saliva tóxica contendo proteases, hialuronidases, fosfolipases, enzimas hemolíticas e neurotoxinas capazes de parar o batimento cardíaco. Essa mistura facilmente paralisa e mata a presa, além de liquefazer seus tecidos (digestão externa). O tecido liquefeito é, então, sugado pelo inseto predador através de bombeamento cibário. Ref.17

> Belostomatídeos possuem também boa capacidade de voo, e essa habilidade é necessária para escapar [migrar] de poças ou cursos d'água em processo de secagem, ou devido à escassez de presas em uma região. Migração pode estar relacionada também ao ciclo lunar (ex.: Diplonychus rusticus e Lethocerus sp.). Chuvas em excesso também induzem a atividade de voo, uma resposta comportamental e adaptativa ligada à busca por locais de acasalamento. Ref.17

> Certas espécies de belostomatídeos (ex.: Lethocerus indicus) são comumente consumidas como alimento por humanos em vários países Asiáticos e no México. Ref.14-16

> No Brasil, os belostomatídeos são também popularmente chamados de escorpião-d'água, arauemboia e bota-mesa.

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REFERÊNCIAS

  1. Ohba, S. (2018). Ecology of giant water bugs (Hemiptera: Heteroptera: Belostomatidae). Entomological Science. https://doi.org/10.1111/ens.12334
  2. Almeida et al. (2019). Belostomatidae (Heteroptera: Nepomorpha) held in the Invertebrate Collection of the Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, Manaus, Brazil: inventory and new distributional records. Papeis Avulsos de Zoologia, 59. https://doi.org/10.11606/1807-0205/2019.59.06
  3. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/ens.12564
  4. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/ens.12558
  5. https://www.nps.gov/articles/giant-water-bug.htm
  6. Haddad et al. (2010). Bites Caused by Giant Water Bugs Belonging to Belostomatidae Family (Hemiptera, Heteroptera) in Humans: A Report of Seven Cases. Wilderness Medical Society, Volume 21, Issue 2. https://doi.org/10.1016/j.wem.2010.01.002
  7. https://www.bmj.com/content/330/7505/1402.short
  8. Cupul-Magaña et al. (2012). Mordedura de Lethocerus medius (Guérin-Méneville, 1857) (Hemiptera: Belostomatidae) sobre humano en Puerto Vallarta, Jalisco, México: registro de caso. Boletín de la Sociedad Entomológica Aragonesa (S.E.A.), nº 51 (31/12/2012): 365‒366.
  9. Dehghani et al. (2016). Study on biting bugs encountered in the aquatic environments in Kashan, Isfahan Province, Iran. Journal of Coastal Life Medicine, 4(11): 852-855. https://doi.org/10.12980/jclm.4.2016J6-182
  10. Bicho & Müller (2016). Other Irritating Arthropods (Beetles, Bugs, Centipedes, Etc.). Arthropod Borne Diseases, 549–566. https://doi.org/10.1007/978-3-319-13884-8_35
  11. Jordan et al. (2021). Linking the Mycobacterium ulcerans environment to Buruli ulcer disease: Progress and challenges. One Health, Volume 13, 100311. https://doi.org/10.1016/j.onehlt.2021.100311
  12. Muleta et al. (2021). Understanding the transmission of Mycobacterium ulcerans: A step towards controlling Buruli ulcer. PLoS Neglected Tropical Diseases 15(8): e0009678. https://doi.org/10.1371/journal.pntd.0009678
  13. Preveza, N. (2023). Contrasting the production and molecular composition of venom from varying species of Belostomatidae. Physiology. https://doi.org/10.1152/physiol.2023.38.S1.5731770
  14. Rajashekar et al. (2023). Nutritional properties of giant water bug, Lethocerus indicus a traditional edible insect species of North-East India. Bioengineered, Volume 14, Issue 1. https://doi.org/10.1080/21655979.2023.2252669
  15. https://www.mdpi.com/2075-4450/13/11/976
  16. Moreno et al. (2022). Taxonomic, economic and gastronomic analysis of some edible insects of the Order Hemiptera from Mexico. Journal of Insects as Food and Feed: 8 (7)- Pages: 721 - 732. https://doi.org/10.3920/JIFF2021.0152
  17. Peck et al. (2008). Giant Water Bugs (Hemiptera: Prosorrhyncha Belostomatidae). Encyclopedia of Entomology, 1616–1621. https://doi.org/10.1007/978-1-4020-6359-6_1099