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Por que os Japoneses ficam vermelhos após o consumo alcoólico?


- Atualizado no dia 14 de dezembro de 2021 -

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           É clássico vermos a representação de Japoneses com o rosto bem vermelho depois de consumirem bebidas alcoólicas. Mas existe suporte factual por trás desse quadro estereotipado? Sim e chama-se 'Alcohol Flush Reaction' ('Reação de Enrubescimento com o Álcool', na tradução literal). Nessa anômala condição, os indivíduos afetados sofrem maior intoxicação com o consumo alcoólico, e um dos sintomas é o maior avermelhamento da pele (acentuado rubor facial). E o mais curioso: a condição é amplamente disseminada entre populações Asiáticas, e está diretamente relacionada com o menor índice de alcoolismo em várias partes do Leste da Ásia.

Em indivíduos com a anomalia genética, o rosto, entre outras partes do corpo, fica bem vermelho após o consumo alcoólico  (à direita)

           Apesar de muitos acharem que o enrubescimento álcool-induzido é devido à dificuldade de metabolização do etanol (álcool presente nas bebidas alcoólicas), o mecanismo bioquímico é exatamente o oposto. Para entendermos melhor, vamos recapitular, rapidamente, o que acontece com o etanol ingerido pelo nosso organismo. Quando você bebe cerveja, por exemplo, o etanol ali presente é absorvido com prontidão pelo seu intestino, indo parar no fígado para ser metabolizado. Nesse órgão, parte do etanol é oxidado para acetaldeído pelas enzimas dehidrogenases alcoólicas (ADHs) - associadas aos genes ADH1A, ADH1B e ADH1C -, e parte segue para o sangue (gerando os sintomas de embriaguez). Enquanto o sangue cheio de etanol está circulando, cada vez mais o fígado o transforma em acetaldeído, este o qual é extremamente tóxico para o corpo, sendo inclusive um forte agente mutagênico e cancerígeno (carcinogênico). Nesse contexto, outro grupo de enzimas entra em ação bem depressa: as dehidrogenases acetaldeídas (ALDHs) - em maior parte pela dehidrogenase alcoólica 2 (ALDH2) -, as quais converterão (oxidando) o danoso acetaldeído no inofensivo ácido acético (sim, aquele presente no vinagre). Este último pode, então, ser processado sem maiores problemas pelo organismo.

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            Devido a uma anomalia genética conjunta que atinge aproximadamente 36% da população no Leste Asiático (Japoneses, Chineses e Coreanos, em sua maioria), existe uma desregulação na produção das duas enzimas citadas anteriormente. Cerca de 80% da população asiática em geral (com menor prevalência na Índia e na Tailândia) possuem uma variante do gene ADH1B (alelo ADH1B*2) - presente em mais de 90% da população do Leste Asiático - e quase todos os Japoneses, Chineses e Coreanos possuem uma variante do gene ADH1C, sendo que ambas produzem uma enzima dehidrogenase alcoólica muito mais eficiente do que aquelas normalmente encontradas no resto da população mundial. Nesse sentido, nos indivíduos com essas variantes ocorre uma maior produção de acetaldeído no fígado. Além disso, 50% dos asiáticos com a já alta capacidade produtiva de acetaldeído - 30-50% da população total no Leste Asiático - possuem uma outra variante genética do gene ALDH2 (alelo inativado ALDH2*2), a qual produz uma enzima dehidrogenase acetaldeída menos eficiente, fazendo com que a degradação do acetaldeído diminua e levando a um aumento da concentração dessa substância no corpo. Como resultado global, temos um aumento acentuado na quantidade do tóxico acetaldeído circulando na corrente sanguínea dos indivíduos somando essas variantes.


Na primeira etapa de metabolização, etanol é convertido em acetaldeído, sob catálise da enzima desidrogenase alcoólica; na segunda etapa metabólica, acetaldeído é convertido para ácido acético, sob catálise da enzima desidrogenase acetaldeída

           Agora fica fácil compreender o que acontece com boa parte dos Japoneses quando consomem bebidas alcoólicas. Comparado aos não-Asiáticos, a população Leste-Asiática em geral está mais propensa a acumular uma quantidade significativamente maior do tóxico acetaldeído no corpo ao ingerirem álcool/etanol. Diversos efeitos de toxicidade emergem como consequência, em especial a famosa pele facial avermelhada, na forma de eritema. O vermelhidão pode atingir apenas algumas partes específicas do corpo, como o rosto, ou pode se alastrar por todo o corpo. Outros sintomas incluem aumento da temperatura da pele, sensação de calor, aumento das taxas cardíaca e respiratória, náusea e dores de cabeça. 

          Somando-se aos desconfortos sintomáticos, danos de curto prazo associados ao consumo alcoólico (ex.: ressaca) são amplificados, fazendo com que a experiência de consumir bebidas alcoólicas seja pouco agradável. E como o etanol está sendo convertido muito rapidamente em acetaldeído, os efeitos alcoólicos momentâneos de euforia, prazer e relaxamento diminuem, deixando mais espaço para os efeitos colaterais indesejáveis. Isso explica o notável menor índice de alcoólatras no Leste Asiático (1). Para muitos deles, beber não é a melhor opção no fim de semana e em festas, muito menos como hábito diário (2). Por exemplo, no Japão, de acordo com o critério ICD-10, 1,0% da população, ao longo da vida, e 0,5%, ao longo dos últimos 12 meses, possuem problemas com dependência alcoólica; como referência comparativa, nos EUA, esses valores são de 11,6% e 4,2%, respectivamente (Ref.9).

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(1) IMPORTANTE mencionar que a presença do gene ALDH2 inativo não é necessariamente suficiente para a manifestação da ruborização álcool-induzida. Por exemplo, em torno de 86% dos Japoneses que são dependentes alcoólicos e com o alelo ALDH2*2 (heterozigotos) não reportam ruborização durante o consumo alcoólico. É, nesse sentido, sugerido que o status conjunto dos genes ALDH2 e ADH1B representem um melhor avaliador de risco para a dependência alcoólica (Ref.10).

(2) Válido lembrar que não existe nível seguro comprovado de consumo alcoólico. O etanol é um carcinogênico humano de Grupo I, e o consumo alcoólico é um dos principais fatores de risco modificáveis para o desenvolvimento de múltiplos cânceres. Para mais informações: Qual é a relação entre consumo alcoólico e câncer?
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            E ainda temos outro agravante. Os portadores do alelo ALDH2*2 (dominante) podem expressá-lo na forma homozigótica ou heterozigótica. Na primeira, existem dois alelos para a produção da enzima dehidrogenase acetaldeída menos efetiva, enquanto na segunda, existe um alelo que coordena a produção normal da enzima e um alelo que induz à produção da proteína anômala. Os homozigotos acabam manifestando efeitos muito mais desagradáveis após o consumo alcoólico, independentemente se é leve ou moderado. Já os heterozigotos tendem a suportar melhor a ingestão de etanol. Esses últimos, portanto, tendem a expor o corpo a maiores quantidade de acetaldeído, resultando em potenciais graves prejuízos à saúde. Já existe uma relação bem clara, por exemplo, entre o Alcohol Flush Reaction e os cânceres de esôfago, faringe, laringe e oral (Ref.1, 4, 14). Indivíduos afetados, mesmo bebendo pouco, possuem pelo menos 10 vezes mais chances de desenvolver um tumor maligno no esôfago.  

Pessoas com Alcohol Flush Reaction possuem risco muito maior de desenvolver um câncer no esôfago do que os indivíduos sem o problema.

          Além de maior risco para câncer, a expressão de variantes que favorecem o acúmulo de acetaldeído durante o consumo alcoólico está ligado a um maior risco para pancreatite e para doenças hepáticas. Existe também evidência de que mulheres com ruborização álcool-induzida estão sob maior risco de desenvolver síndrome metabólica mesmo com uma baixa ingestão alcoólica semanal (Ref.11), e a condição em indivíduos obesos está associada com um maior risco para o desenvolvimento de diabetes tipo 2 (Ref.12).

          Mesmo com o desconforto e o maior risco para doenças diversas, muitos indivíduos afetados por essas variantes na população mais jovem do Leste Asiático, por falta de conscientização e/ou pressão social, forçam o consumo alcoólico para níveis considerados muito perigosos nesse grupo. Aliás, muitos estudantes universitários Asiáticos procuram por estratégias online ou mesmo medicamentos para aliviar os sintomas, principalmente de ruborização facial, visando acompanhar o consumo alcoólico de outros colegas não afetados pela condição (Ref.13). Na China, pesquisas têm mostrado que a maioria dos estudantes universitários não associam a ruborização facial álcool-induzida com uma necessidade médica de reduzir o consumo alcoólico. No geral, grande parte dos jovens Asiáticos desconhecem o significado do rubor facial álcool-induzido ou não acham que tal manifestação fenotípica possui sérias consequências deletérias à saúde no contexto do consumo alcoólico (Ref.13).

            Como as variantes genéticas associadas ao rubor facial álcool-induzido são muito comuns no Leste Asiático, acredita-se que essa alta prevalência seja fruto de um processo evolutivo de seleção natural, e, de fato, existe comprovada assinatura de seleção positiva no alelo ADH1B*2 entre os Asiáticos, com associada expansão alélica nos últimos 2800 anos (Ref.15-16). Mas por que alelos promovendo maior produção de uma tóxica substância no nosso corpo seriam selecionados positivamente? Existem duas principais e plausíveis hipóteses nesse sentido:

- A primeira hipótese propõe que as variantes das enzimas ADH e ALDH2 possuem funções alternativas além do metabolismo alcoólico, e as quais são mais essenciais do que o risco de altos níveis circulantes de acetaldeído. A classe I de genes ADH são expressos não apenas no fígado adulto mas também no fígado fetal, intestino e pulmão, enquanto que o gene ALDH2 é expresso no fígado adulto/fetal, rins, musculatura adulta, coração e pulmão fetal. Tal expressão em um grande número de tecidos implica que essas enzimas podem ter outras funções ainda não muito bem entendidas mas críticas. Existe, por exemplo, evidência de que o alelo ALDH2*2 está associado com um menor risco de tuberculose (Ref.16). Porém, essa hipótese não explica satisfatoriamente o porquê da especificidade 'Leste Asiática'.

- A segunda hipótese sugere que uma mais alta concentração de acetaldeído garante proteção para algumas doenças endêmicas no Leste Asiático, no passado e em períodos mais recentes da história evolutiva do Homo sapiens. Podemos citar certas infecções parasitárias, como aquelas causadas pelo protozoário Entamoeba histolytica, este o qual causa significativa mortalidade devido a disenteria ulcerativa e abcessos intestinais extras. O acetaldeído faz mais mal para outros organismos do que para nós, podendo agir como um esterilizante no corpo. Seria como a relação entre anemia falciforme e malária em certos grupos africanos (3). De fato, inibidores de ALDH, como os antimicrobianos nitroimidazólicos, são efetivos contra um número de microrganismos aneróbios e microaerófilos.

          É importante lembrar que todos nós, mesmo não consumindo bebidas alcoólicas, produzimos etanol durante a digestão dos alimentos, devido à fermentação de carboidratos pelas bactérias no nosso trato intestinal (4). O fígado está sempre processando etanol, mesmo que em baixa quantidade. Nesse sentido, a evolução de variantes genéticas ligadas ao processamento alcoólico de origem intestinal não está necessariamente ligada ao desenvolvimento da agricultura e consumo de bebidas alcoólicas pela sociedade humana.


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             Caso você tenha rubor facial álcool-induzido e confirme o diagnóstico genético, evite ao máximo o consumo de bebidas alcoólicas. Essa recomendação deve ser especialmente reforçada para os jovens, os quais são induzidos a iniciarem o consumo alcoólico devido à pressão social. Com a ajuda de um simples bafômetro, é possível aferir as quantidades de acetaldeído sendo liberadas pelo corpo durante o consumo alcoólico: excesso anormal dessa substância no sangue é um sinal para você frear drasticamente a ingestão de bebidas alcoólicas. E importante reforçar: o consumo alcoólico é um forte carcinogênico e NÃO existe nível seguro de consumo comprovado.

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OBS.: Apesar de não ser muito comum, indivíduos da população ocidental (nativos) também podem carregar variantes genéticas associadas ao enrubescimento álcool-induzido, em especial o alelo ADH1B*2 (presente em torno de 10% dos não-Asiáticos); entre os Europeus, existe inclusive evidência de evolução convergente - relativa aos Asiáticos - para uma maior prevalência desse alelo (Ref.16).

OBS 2.: Não é porque você ficou com o rosto corado depois de beber muito que automaticamente você possui o problema. Ora, se você beber feito um glutão, muito acetaldeído estará sendo endogenamente produzido, independentes se o fígado está com suas funções normais. Além disso, o etanol possui um efeito vaso dilatador, deixando certas veias mais visíveis na pele, especialmente no rosto, o que a torna mais ou menos ruborizada, dependendo da cor da pele. Já nos indivíduos carregando as variantes genéticas de superprodução de acetaldeído, qualquer consumo alcoólico levará a uma ruborização bem acentuada e a maiores efeitos colaterais indesejáveis.

Alelos: Formas de um mesmo gene que expressam determinadas características no fenótipo do indivíduo. Vamos supor que um certo gene B que determina a cor dos cabelos pode ser expresso por um alelo A (cor preta) e um alelo b (cor vermelha). Caso estejam juntos, e A for dominante, o indivíduos será heterozigoto para esse gene e terá cabelos pretos. O alelo b será, portanto, recessivo e determinará a cor vermelha apenas se estiver na forma de homozigoto, ou seja, ambos do par sejam b (iguais). Lembrando, claro, que essa é uma exemplificação simplificada, existindo complicações no tema como alelos múltiplos e expressão poligênica de traços fenotípicos.

Enzimas: São moléculas orgânicas, em sua maioria proteínas, que catalisam, ou seja, deixam mais rápido uma determinada reação química (no sentido de se atingir mais rapidamente o equilíbrio químico). Quase todo o metabolismo no nosso corpo é regulado por enzimas.
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Leitura recomendada: O que é a ressaca?


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. http://www.nih.gov/news-events/news-releases/alcohol-flush-signals-increased-cancer-risk-among-east-asians
  2. http://bmcevolbiol.biomedcentral.com/articles/10.1186/1471-2148-10-15
  3. http://journals.plos.org/plosmedicine/article?id=10.1371/journal.pmed.1000050
  4. http://dujs.dartmouth.edu/2009/11/esophageal-cancer-and-the-%E2%80%98asian-glow%E2%80%99/#.VwAaQfqGN6k
  5. http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/acer.12302/abstract
  6. http://journals.lww.com/jpharmacogenetics/Abstract/2014/12000/ALDH2_2_but_not_ADH1B_2_is_a_causative_variant.5.aspx
  7. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC507646/
  8. http://aph.sagepub.com/content/25/5/409.short
  9. Yokoyama et al. (2020). Impacts of interactions between ADH1B and ALDH2 genotypes on alcohol flushing, alcohol reeking on the day after drinking, and age distribution in Japanese alcohol-dependent men. Pharmacogenetics and Genomics, 30(3), 54–60. https://doi.org/10.1097/FPC.0000000000000395
  10. Yokoyama et al. (2021). Combinations of alcohol-induced flushing with genetic polymorphisms of alcohol and aldehyde dehydrogenases and the risk of alcohol dependence in Japanese men and women. PLoS ONE 16(7): e0255276. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0255276
  11. Seo et al. (2021). Association between Alcohol Consumption and Metabolic Syndrome Determined by Facial Flushing in Korean Women. Korean journal of family medicine, 42(1), 24–30. https://doi.org/10.4082/kjfm.19.0141
  12. Kim et al. (2020). Influence of Facial Flushing on Pre- or Type 2 Diabetes Risk according to Alcohol Consumption in Korean Male. Korean journal of family medicine, 41(3), 153–160. https://doi.org/10.4082/kjfm.18.0120
  13. Chartier et al. (2019). College students’ use of strategies to hide facial flushing: A target for alcohol education. Journal of American College Health, 1–5. https://doi.org/10.1080/07448481.2019.1640224
  14. Zhang et al. (2017). Facial flushing after alcohol consumption and the risk of cancer: A meta-analysis. Medicine, 96(13), e6506. https://doi.org/10.1097/MD.0000000000006506
  15. Oota et al. (2004). The evolution and population genetics of the ALDH2 locus: random genetic drift, selection, and low levels of recombination. Annals of Human Genetics, 68(2), 93–109.
  16. Polimanti & Gelerneter (2017). ADH1B: From alcoholism, natural selection, and cancer to the human phenome. American Journal of Medical Genetics, Volume 177, Issue 2, Pages 113-125. https://doi.org/10.1002/ajmg.b.32523