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O que é a Síndrome de Auto-Fermentação?


          Em um relato de caso publicado em 2019 no periódico ACG Case Reports Journal (Ref.1), pesquisadores reportaram um paciente de 25 anos de idade do sexo masculino, sem histórico médico de cirurgias prévias, que se apresentou ao hospital reclamando de "estar bêbado sem beber". Dois meses antes da apresentação ao hospital, o paciente percebeu que ele estava ficando muito bêbado após seu habitual consumo noturno de 1 latinha de cerveja (350 mL). Esse fenômeno progrediu para um cenário onde o paciente começou a se sentir bêbado e ter sintomas de embriaguez mesmo quando reportava estar totalmente abstinente do consumo alcoólico. Ele continuou se sentindo "bêbado sem beber" 1-2 vezes por semana até que sua esposa decidiu trazê-lo para o departamento de emergência durante um dos anômalos episódios de embriaguez.

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          A esposa do paciente, no hospital, descreveu seus sintomas como fala não compreensível, fatiga, tombos, tontura e náusea. Ele eventualmente "desmaiava" e acordava na manhã seguinte sem os sintomas de embriaguez. Esses sintomas eram meio que agudos e frequentemente ocorriam durante a noite, mas sem qualquer gatilho identificável. O paciente também reportou que recentemente ele havia iniciado uma dieta cetogênica (!) para auxiliar nos seus esforços de emagrecimento. Ele não tomava nenhum medicamento (com ou sem prescrição).

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          O exame físico não mostrou nenhuma anormalidade. Apesar de sintomático durante uma visita prévia ao departamento de emergência, exames analisando amostras de urina e de sangue, e funções metabólicas, hepáticas e associadas à tireoide não mostraram nada de anormal, com duas exceções notáveis: nível elevado de ácido lático de 20 mg/dL e uma concentração de etanol (álcool das bebidas alcoólicas) no sangue de 0,3 g/dL (30 mg/dL, também elevada na visita seguinte ao departamento de emergência) mesmo na ausência de consumo alcoólico. Após seus sintomas melhorarem, o paciente foi liberado sem tratamento.

          Em atendimento ambulatorial, o paciente procurou ajuda de um gastroenterologista e de um endocrinologista, os quais conduziram uma série de exames, mas sem resultados marcantes. Sua esposa, então, resolveu comprar um bafômetro para acompanhar o nível alcoólico do marido. Ela encontrou que na ausência de consumo alcoólico, e enquanto assintomático, a pontuação variava de 0,04% até 0,07%. A esposa serviu como controle, pontuando 0% durante essas ocasiões. Toda vez que o paciente tinha sintomas, ele testava uma elevada concentração alcoólica, frequentemente em torno de 0,2%.

          Considerando os resultados acumulados dos exames físicos e laboratoriais, e as observações da esposa feitas com o bafômetro, um diagnóstico de síndrome de auto-fermentação foi feito. Nesse sentido, os médicos resolveram testar um tratamento empírico de fluconazol (um antifúngico) oral de 100 mg diários por 3 semanas para tratar a presumida síndrome, mantendo sua dieta normal. Completando a terapia experimental, o paciente não mais reportou sintomas ou episódios de embriaguez pelas próximas 4 semanas de acompanhamento, reforçando o diagnóstico da síndrome - apesar de não ser completamente descartada a possibilidade de algum consumo alcoólico oculto por parte do paciente, mesmo que esse cenário fosse muito improvável considerando todas as evidências acumuladas. 


   SÍNDROME DE AUTO-FERMENTAÇÃO

          A síndrome de auto-fermentação, também chamada de síndrome de fermentação intestinal, é uma condição muito rara - mas provavelmente subdiagnosticada - na qual quantidades intoxicantes de etanol são produzidas por tipos específicos de levedura ou bactéria através de fermentação endógena no sistema digestivo e, em alguns casos, no trato urinário, onde é chamada de síndrome de auto-fermentação urinária e caracterizada por níveis elevados de etanol apenas na urina (Ref.3). Esses organismos realizam fermentação alcoólica, ou seja, metabolizam carboidratos na ausência de oxigênio liberando etanol e dióxido de carbono (gás CO2). Esse é exatamente o mesmo processo envolvido na produção de bebidas alcoólicas, como a cerveja (ex.: levedura de cerveja), ou para o crescimento de massas na culinária usando fermento natural (liberação de gás CO2).

           Aliás, mencionando o crescimento de massa, o primeiro caso de síndrome de auto-fermentação foi de um menino Africano de 5 anos de idade que desenvolveu uma fatal perfuração na parede abdominal anterior devido a uma excessiva distensão de gás no abdômen (Ref.4). Cocos e bacilos Gram-negativos foram identificados no intestino da vítima, seguindo a detecção de um forte cheiro de álcool durante a autópsia.

          Fungos associados com a síndrome incluem comumente espécies de leveduras dos gêneros Saccharomyces e Candida, como a S. cerevisiae, C. albicans, C. parapsilosis, C. glabrata, C. kefyr e C. krusei. Quase todos os casos parecem envolver fungos, mas como apontado no caso da criança Africana, bactérias podem estar envolvidas, como a Klebsiella pneumonia e a Enterococcus faecium. Fungos não estão comumente presentes no trato superior gastrointestinal, mas podem estar presentes no cólon como parte da microbiota comensal. Nesse sentido, é importante também lembrar que as pessoas em geral sempre estão produzindo alguma quantidade endógena de etanol por certos organismos fermentadores naturalmente presentes no nosso sistema digestivo, variando na média (concentração no sangue) de 0,04 mg/dL até 0,14 mg/dL. Certas condições de saúde, como cirrose e diabetes, podem aumentar em várias vezes os níveis normais de etanol no sangue a partir de fontes endógenas.



          Sintomas no geral são muito inespecíficos, vários deles basicamente associados com uma intoxicação alcoólica. Esses sintomas incluem anormalidades neurológicas, gastrointestinais, respiratórias e psicológicas. Os sintomas neurológicos incluem convulsões, fala confusa, falta de coordenação ao andar, visão embaçada, desmaio e perda de memória. Anormalidades gastrointestinais incluem náusea, vômito, diarreia e desconforto abdominal. Os transtornos psicológicos incluem depressão, comportamento bizarro, sonolência, desorientação, fatiga, e um estado de confusão mental. Sintomas respiratórios como nariz escorrendo e tosse também já foram reportados. 

          Devido à natureza da síndrome, é obviamente importante descartar a possibilidade do paciente estar mentindo sobre o consumo alcoólico, especialmente em um contexto judicial e na ausência de testes clínicos mais detalhados e rigorosos para confirmar o diagnóstico. Na síndrome, a produção endógena de etanol raramente leva a uma concentração alcoólica acima de 80 mg/dL no sangue, mas níveis acima de 300 mg/dL são possíveis.

              De fato, casos judiciais já envolveram menção à síndrome. Por exemplo, em 2020, na Turquia, um homem de 38 anos se envolveu em um acidente de trânsito e teve sua carteira de motorista caçada quando um teste de bafômetro indicou níveis bem elevados de etanol no sangue (257,8 mg/dL). Para as autoridades judiciais, o paciente insistiu que ele não havia bebido. Para confirmar a insistente alegação, ele foi encaminhado para um departamento médico, onde ficou isolado. Na admissão, seu nível de etanol no sangue estava já alto, em torno de 160 mg/dL; quando foi alimentado com uma refeição rica em carboidrato, seus níveis de etanol foram progressivamente aumentando, alcançando um pico de 322 mg/dL após 12 horas de observação, corroborando um diagnóstico de síndrome de auto-fermentação (Ref.5).

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          Fatores de risco para essa síndrome não são bem definidos, mas podem envolver um alto consumo de carboidratos na dieta (ex.: massas e bebidas açucaradas), uso de antibióticos, cirurgias abdominais, anormalidades estruturais no sistema digestivo (ex.: duodeno dilatado), uso inadequado de probióticos, e outros fatores que levem a uma alteração na microbiota intestinal no sentido de favorecer a excessiva proliferação de bactérias ou fungos que realizam fermentação alcoólica. Mudanças bruscas na dieta, como no caso do paciente do relato de caso que tinha adotado uma dieta cetogênica, talvez possa também servir de gatilho para um desequilíbrio na microbiota intestinal e levar ao desenvolvimento da síndrome mesmo com um baixo consumo de carboidratos. Nesse último caso os autores do relato de caso também levantaram a possibilidade de que o paciente estava substituindo fontes de carboidratos por outras sem perceber (ex.: o exoesqueleto [casca] de muitos invertebrados é feita basicamente de quitina, um carboidrato polissacarídeo).

          O tratamento irá depender da causa, e pode incluir uso de antifúngico ou antibiótico, cirurgias como gastrectomia, recomendação de dieta com baixo conteúdo de carboidrato, uso orientado de probióticos e, mais recentemente, foi reportado sucesso terapêutico com a técnica de transplante de fezes (Ref.8).


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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. https://journals.lww.com/acgcr/fulltext/2019/09000/Drunk_Without_Drinking__A_Case_of_Auto_Brewery.14.aspx 
  2. https://journals.lww.com/ajg/Fulltext/2020/10001/S2784_Drunk_on_Life__Auto_Brewery_Syndrome.2783.aspx 
  3. https://www.acpjournals.org/doi/abs/10.7326/L19-0661
  4. Akbaba, M. (2020). A medicolegal approach to the very rare Auto-Brewery (endogenous alcohol fermentation) syndrome. Traffic Injury Prevention, 21(5), 295–297.
  5. https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/15389588.2020.1740688 
  6. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7667719/ 
  7. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/ueg2.12062 
  8. https://www.acpjournals.org/doi/abs/10.7326/L20-0341
  9. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK513346/