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Por que urubus ocasionalmente alisam as penas de carcarás?

Figura 1. Prática de allopreening entre um urubu e um carcará, em São Paulo.

           Nas aves, o preening - também conhecido como "alisamento de penas" - é um comportamento muito importante, custoso e com múltiplas funções. Mesmo reduzindo o tempo desperto para busca de alimento e a vigilância contra predadores, algumas espécies de aves podem gastar até 25% do dia realizando preening (Ref.1). Esse processo envolve o uso do bico e os pés para limpar, organizar e tratar as penas, e é crítico para a saúde e o bem-estar das aves. O preening ser feito individualmente ou em grupo.

          Durante o preening, as aves retiram sujeiras, ectoparasitas e detritos. Esse comportamento também ajuda a redistribuir uma secreção oleosa produzida pela glândula uropigial. Única das aves e presente na maioria das espécies aviárias, essa glândula está localizada perto da base da cauda (Fig.2). O óleo secretado pela glândula uropigial - transferido para as penas através do bico - parece ter várias funções que contribuem para a manutenção da plumagem (ex.: impermeabilização e realce de cores das penas), promoção de um microbioma saudável e comunicação química (Ref.2-5). Por meio do preening, as penas também permanecem flexíveis e funcionais, garantindo que a ave possa voar adequadamente e manter sua temperatura corporal.

Figura 2. Visão macroscópica da glândula uropigial de uma pomba da espécie Zenaida auriculata (avoante). Aspectos funcionais e morfológicos dessa glândula variam entre espécies, sendo especialmente bem desenvolvida em aves aquáticas. É a maior glândula exócrina das aves e a única glândula sebácea na pele desses animais, além das glândulas sebáceas do ouvido externo e as glândulas anais. O óleo produzido pela glândula uropigial consiste de ceras, lipídios, hidrocarbonetos e compostos orgânicos voláteis. Um número de linhagens aviárias modernas perderam essa glândula, como os casuares (Casuariidae), avestruzes (Struthionidae), emas (Dromaiidae) e bocas-de-sapo (Podargidae). Em outras linhagens, houve perda em parte das espécies, como alguns papagaios (Psittaciformes), pica-paus (Picidae) e columbídeos. Evidência sugere que a glândula uropigial evoluiu apenas uma única vez no clado Aves. Ref.6-7

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           Além da limpeza física, o preening tem um papel de sinalização social importante. Como mencionado, muitas aves realizam essa prática em pares ou grupos (allopreening), promovendo laços sociais, mantendo hierarquias sociais e fortalecendo a coesão entre membros da mesma espécie. É também um importante componente comportamental pré- e pós-formação de casais (Ref.8). Mais comumente expresso em pares, esse comportamento social também pode ser um sinal de afeto e confiança entre aves.  Existe evidência também de que o allopreening pode estar envolvido no desenvolvimento vocal de aves (Ref.9).

           O allopreenging tende a focar na região da cabeça e da nuca, onde o indivíduo não consegue alcançar por conta própria. 

           Enquanto o auto-preening (alisamento individual) é muito prevalente entre as aves, o allopreening (alisamento mútuo) emergiu apenas em um número limitado de espécies (ex.: ausente no clado Paleognathae), mas está presente ao longo de várias famílias e frequentemente entre aves que formam casais de longo prazo e com cooperação parental (Ref.10). Isso reforça a ideia de que o allopreening possui função primária de fortalecer ou promover laços sociais. Além disso, em corvídeos e em papagaios, aves com alta capacidade cognitiva e complexidade social, o allopreening ganhou funções adicionais, na forma de uma "moeda social", pela qual indivíduos podem ganhar benefícios em troca do preening (Ref.11).

           Para várias espécies, allopreening parece ocorrer dentro de pares exclusivamente durante o período de acasalamento. E embora esse comportamento seja mais comum em casais (pares) de aves, às vezes pode ocorrer entre até cinco indivíduos (parceiros de preening). 


   Allopreening entre espécies distintas

           Como regra geral, o allopreening ocorre entre indivíduos da mesma espécie (comportamento intraespecífico). Porém, em raros exemplos ou eventos, o allopreening tem sido observado ocorrendo entre espécies distintas (comportamento interespecífico). Reportes na literatura acadêmica de ocorrência natural de allopreening entre espécies distintas têm envolvido mais comumente urubus-pretos (Coragyps atratus) e carcarás (Caracara sp.), com tais eventos sendo descritos desde pelo menos a década de 1980.

          O allopreening interespecífico entre essas aves parece ser um comportamento relativamente comum e observado em regiões onde urubus e carcarás ocorrem de forma simpátrica, desde o centro-oeste e sudeste do Brasil até o Texas, nos EUA. Geralmente, o carcará realiza um movimento de "abaixar a cabeça" em frente ao urubu-preto - aparentemente uma solicitação ou um convite - e, então, o urubu começa a realizar o preening tipicamente no topo da cabeça e no pescoço do solicitante (Fig.3). O allopreening entre essas aves pode durar vários minutos.

Figura 3. Urubu-preto alisando as penas de um carcará-de-crista (Caracara plancus) na Península de Osa, Costa Rica. A interação durou ~3 minutos. Essas aves são comumente observadas juntas durante a exploração alimentar de carniças e parecem cooperar entre si. Ref.11

          Um estudo publicado em 2020 no Bulletin of the Texas Ornithological Society (Ref.12), analisando dados de campo coletados entre 1988 e 1992 no sul do Texas pelo pesquisador Neil J. Buckley, descreveu quatro ocasiões onde carcarás-do-norte (Caracara cheriway) solicitavam e recebiam preening de um ou dois urubus-pretos, com dois eventos de reciprocidade onde urubus também recebiam preening dos carcarás. 

            Em 2008, na Revista Brasileira de Ornitologia (Ref.13), a pesquisadora Francesca B. L. Palmeiras testemunhou um evento de allopreening onde o urubu-preto realizava o alisamento de penas na cabeça do carcará (C. plancus) que estava visivelmente excitado e retribuía o ato fazendo o alisamento das penas no peito do urubu (Fig.4). Ambos assumiam, claramente, uma postura cooperativa favorecendo a interação: o carcará solicitou o preening com o gesto de abaixar a cabeça e o urubu exibia seu peito e asas vigorosamente. O evento ocorreu nas margens do Rio Miranda, no Mato Grosso do Sul, e durou mais de 5 minutos.

Figura 4Allopreening entre um urubu-preto e um carcará-de-crista no Pantanal. Ref.12

          Em 2009, no periódico Sociobiology (Ref.13), pesquisadores brasileiros reportaram sete eventos de allopreening entre urubus-pretos e carcarás (C. plancus) no município de Uberlândia, Minas Gerais, uma região dominado pela vegetação do cerrado (Fig.5). A duração do alisamento de penas em cada evento mostrou ser muito variável, com uma média de ~9 minutos. Todos os eventos pareciam exibir o mesmo padrão: ambas as espécies ficavam muito próximas entre si, permaneciam um bom tempo nessa posição, alternando entre monitorar a área e limpeza das penas; após algum tempo, as aves ficavam mais próximas e começavam a interagir fisicamente. Em duas ocasiões o carcará foi observado abaixando levemente a cabeça.

Figura 5Allopreening entre um carcará-de-crista e um urubu-preto em uma área urbana de Uberlândia, Minas Gerais. Ref.14

             Em 2015, no periódico Nornithological Note (Ref.15), pesquisadores reportaram o registro em vídeo de um evento de allopreening entre um carcará-de-crista e um urubu-preto, na Reserva de Los Tarrales, Guatemala. Abaixo, o vídeo em questão.

   

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> Registro em vídeo recente de allopreening entre um urubu-preto e um carcará em uma área urbana de São Paulo: acesse aqui.

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          Abutres do Novo Mundo (Cathartidae) - popularmente chamados de urubus e nativos da América - são caracterizados pela presença de uma siringe rudimentar que limita a vocalização dessas aves a rosnados e assobios (Ref.15). Siringe é o órgão vocal das aves - localizado na base da traqueia - que permite gritos, cantos e outras vocalizações mais elaboradas e potentes. Portanto, uma possível razão para urubus tolerarem a presença de carcarás dentro dos seus grupos sociais pode ser o fato desses últimos terem a habilidade de vocalizar gritos de alarme, portanto aumentando a vigilância contra possíveis predadores. Os carcarás são também beneficiados pelo olfato muito desenvolvido dos urubus, capaz de detectar carniça a vários quilômetros de distância. Nessa aparente relação de cooperação, urubus ganham proteção extra e carcarás ganham maiores oportunidades de alimentação.

           Para reduzir comportamentos agonísticos entre carcarás e urubus-pretos durante interação cooperativa - onde carcarás são tipicamente dominantes (Fig.6) - é possível que o comportamento de allopreening evoluiu entre essas duas espécies como forma de apaziguamento, ou seja, visando reduzir agressividade interespecífica. Com essa estratégia pró-social, a tolerância interespecífica é aumentada e a cooperação entre essas aves é favorecida.

Figura 6. Durante consumo de carcaças, carcarás frequentemente exibem agressividade contra urubus-pretos e urubus-de-cabeça-vermelha (Cathartes aura), onde tendem a ser dominantes, especialmente quando estão excitados e exibem descoloração da pele facial nua na base da maxila (cera). (A-C): carcarás-de-crista juvenil (A), imaturo (B) e adulto exibindo cera escura. (D-F): carcarás-de-crista juvenil (D), imaturo (E) e adulto (F) exibindo cera clara e em comportamento agonístico/agressivo (cabeça para trás). Carcarás conseguem mudar a cor da cera dentro de poucos segundos, através de redução ou aumento na circulação sanguínea na região - que é altamente vascularizada. Quando estão relaxados ou em repouso, a cera é vermelha ou laranja. Em estados agitados ou estressados, a cera torna-se amarela ou clara. Os carcarás agressores (dominantes) tendem a exibir cera amarela/clara. Ref.16 

          Curiosamente, enquanto allopreening intraespecífico ocorre entre urubus-pretos, esse comportamento parece ser raro entre os falconídeos e sem aparente registro em carcarás. 


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          Além de urubus e carcarás, em 2022, no periódico Ecology and Evolution (Ref.17), pesquisadores reportaram e descreveram três eventos de allopreening entre duas espécies de pássaros do gênero Stachyris: S. strialata e S. nonggangensis. Esses eventos foram registrados em Guangxi, China, e o preening era sempre realizado pela espécie S. strialata na espécie S. nonggangensis (Fig.7). O eventos de allopreening - com duração variante de 15 s até 141 s - descritos envolveram alisamento das penas nas áreas da nuca, cabeça, costas, flanco e/ou peito. Os pesquisadores sugeriram uma relação de dominante-subordinado como fator causal do allopreening observado: ou a espécie dominante alisava as penas da espécie subordinada para reafirmar dominância, ou a espécie subordinada alisava as penas da espécie dominante para reduzir agressividade via apaziguamento.  

Figura 7. Allopreening entre as espécies Stachyris strialata e S. nonggangensis, em uma floresta no sul da China. A espécie S. nonggangensis abre o convite para o allopreening ao levantar a cabeça. Ref.17

           Ainda fora do ambiente de cativeiro, allopreening interespecífico tem sido também pontualmente documentado entre uma torda-mergulheira (Alca torda) e múltiplos airos (Uria aalge), entre um colhereiro-real (Platalea regia) e um Íbis-branco-australiano (Threskiornis molucca), e entre um periquito-de-mitrada (Psittacara mitratus) e uma caturrita (Myiopsitta Monachus). Existe também evidência de que várias espécies de icterídeos ativamente convidam e recebem preening de outras espécies de aves (Ref.17).

           Esses registros e evidências sugerem que o comportamento de allopreening interespecífico pode ser mais comum entre as aves do que tradicionalmente pensado e com funções e padrões que precisam ser melhor esclarecidos. 


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REFERÊNCIAS

  1. Florkowski et al. (2024). Preening correlates with lower feather bacteria abundance but not feather coloration in a lek-breeding bird. Journal of Avian Biology, Volume 2024, Issue 7-8, e03209. https://doi.org/10.1111/jav.03209
  2. Moreno-Rueda et al. (2017). Preen oil and bird fitness: a critical review of the evidence. Biological Reviews, Volume 92, Issue 4, Pages 2131-2143. https://doi.org/10.1111/brv.12324
  3. Caspers et al. (2021). Chemical analysis reveals sex differences in the preen gland secretion of breeding Blue Tits. Journal of Ornithology 163, 191–198. https://doi.org/10.1007/s10336-021-01921-w
  4. Dotta et al. (2024). Uropygial gland size increases isometrically with body size in 35 North American bird species, Ornithology, Volume 141, Issue 3, ukae015. https://doi.org/10.1093/ornithology/ukae015
  5. Massoud et al. (2025). Age-related Histological and Histochemical Changes of the Uropygial Gland in the Domestic Pigeon (Columba livia), Microscopy and Microanalysis, Volume 31, Issue 2, ozaf021. https://doi.org/10.1093/mam/ozaf021
  6. Chiale et al. (2019). The uropygial gland of the Eared Dove and its evolutionary history within the Columbiformes (Aves). Journal of Ornithology 160, 1171–1181. https://doi.org/10.1007/s10336-019-01691-6
  7. Loos et al. (2024). Volatile organic compounds in preen oil and feathers – a review. Biological Reviews, Volume 99, Issue 3, Pages 1085-1099. https://doi.org/10.1111/brv.13059
  8. Gillies et al. (2021). Allopreening in the Black-browed Albatross (Thalassarche melanophris): an exploration of patterns and possible functions. IBIS, Volume 163, Issue 4, Pages 1175-1188. https://doi.org/10.1111/ibi.12960
  9. Arellano et al. (2022). Allo-preening is linked to vocal signature development in a wild parrot, Behavioral Ecology, Volume 33, Issue 1, Pages 202–212. https://doi.org/10.1093/beheco/arab126
  10. Jensen et al. (2023). The selfish preen: absence of allopreening in Palaeognathae and its socio-cognitive implications. Animal Cognition 26, 1467–1476. https://doi.org/10.1007/s10071-023-01794-x
  11. https://www.birdwatchingdaily.com/photography/readers-gallery/world/crested-caracara-and-black-vulture/
  12. Buckley, N. J. (2020). Carcass use by crested caracaras (Caracara cheriway) and interactions with black vultures (Coragyps atratus) and turkey vultures (Cathartes aura) in South Texas. Bulletin of the Texas Ornithological Society, Vol 53, Issue 1/2, p31.
  13. Palmeiras, F. B. L. (2008). Allopreening behavior between Black Vulture (Coragyps atratus) and Southern Caracara (Caracara plancus) in the Brazilian Pantanal. Revista Brasileira de Ornitologia, 16(2):172-174. Link do PDF
  14. Souto et al. (2009). New Record of Allopreening Between Black Vultures (Coragyps atratus) and Crested Caracara (Caracara plancus). Sociobiology, Vol. 53, No.1. Link do PDF 
  15. Sanabria, J. (2015). A case of interspecific allopreening between an American Black Vulture and a Southern Caracara in Guatemala. HBW Alive Ornithological Note 32. In: Handbook of the Birds of the World Alive. Lynx Edicions, Barcelona. https://doi.org/10.2173/bow-on.100032
  16. Swartout, Brittany (2021). "Self-Injurious Behavior in a Captive, Malimprinted Coragyps atratus," The Pegasus Review: UCF Undergraduate Research Journal: Vol. 14 : Iss. 1 , Article 5. https://stars.library.ucf.edu/urj/vol14/iss1/5 
  17. Dwyer, J. F. (2014). Correlation of Cere Color with Intra- and Interspecific Agonistic Interactions of Crested Caracaras. Journal of Rator Research, 48(3):240–247. Link do PDF
  18. Zhou & Zhang (2022). Intimacy across species boundaries: Interspecific allopreening between Spot-necked (Stachyris strialata) and Nonggang Babblers (S. nonggangensis). Ecology and Evolution, Volume 12, Issue 8, e9195. https://doi.org/10.1002/ece3.9195