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O que é a dermatofitose?

 
          Um menino de 6 anos de idade apresentou-se à clínica dermatológica com um histórico de 3 meses de vermelhidão no seu rosto e escalpo, com perda capilar associada. Sobre exame físico, o paciente tinha múltiplas placas eritematosas e escamosas no seu escalpo, pescoço, e rosto, assim como regiões de alopécia e linfadenopatia bilateral pós-auricular. Áreas de fluorescência verde foram observadas sobre o escalpo sob exame com lâmpada de Wood (Figura A). Após preparação de uma amostra de cabelo com hidróxido de potássio, exame microscópico mostrou hifas e esporos no lado externo da estrutura capilar, indicando uma infecção ectotrix.

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          Subsequente teste molecular em amostras do escalpo do paciente identificou o fungo da espécie Microsporum canis, avaliação microscópica direta de culturas fúngicas mostrou hifas septadas e macroconídios (Figura B). O M. canis é um fungo zoofílico que é frequentemente adquirido de animais domésticos. Os pais do paciente reportaram a inexistência de animais domésticos na casa, mas que o paciente pode ter sido exposto a animais domésticos ou selvagens quando viajou por vários meses para o interior da China (zona rural).

          Tratamento oral e tópico com terbinafina foi iniciado, e, após 6 semanas de terapia, as lesões na pele foram resolvidas. Nenhuma recorrência de problema epidérmico foi reportada 3 e 6 meses após a finalização do tratamento. 

          O caso foi descrito e reportado no periódico The New England Journal of Medicine (Ref.1).

 

   DERMATOFITOSES E FUNGOS

          Dermatofitoses são micoses superficiais, causadas por fungos filamentosos denominados dermatófitos, que são capazes de invadir o estrato córneo da epiderme e de degradar estruturas queratinizadas associadas como pelos, unhas e a própria pele. Os agentes etiológicos associados a essa infecção em humanos pertencem a três gêneros principais, a saber: Microsporum, Trichophyton e Epidermophyton. Transmitida por contágio direto ou indireto, as dermatofitoses são de ocorrência mundial e consideradas o terceiro distúrbio de pele mais frequente em crianças menores de 12 anos (especialmente do sexo masculino) e o segundo mais frequente na população adulta. 

          O quadro clínico das dermatofitoses inclui lesões tipicamente cutâneas, conhecidas como tineas, sendo a sua designação atribuída de acordo com a área afetada: tinea capitis (região do couro cabeludo), tinea corporis (região do corpo/pele glabra), tinea manum (região das mãos), tinea cruris (região inguinal), tinea pedis (região dos pés) e tinea unguium (unhas das mãos e dos pés). 

           A tinea capitis é uma dermatofitose que acomete o couro cabeludo, sobrancelhas e cílios, afetando, principalmente as crianças. Esses processos são ocasionados, basicamente, por espécies de fungos antropofílicos, ou seja, que parasitam, preferencialmente, a queratina dos seres humanos. Entre essas espécies, destacam-se Trichophyton rubrum, T. mentagrophytes, T. tonsurans e Epidermophyton floccosum, entretanto, espécies como Microsporum canis, apesar de zoofílicas, também podem acometer os humanos. Inicialmente, essa condição se manifesta como uma lesão circular, semelhante a um anel, de coloração avermelhada e escamosa, acompanhada de alopécia, que pode se tornar agudamente inflamada, formando lesões ulceradas. 

          A transmissão pode ocorrer por relação direta com pessoas e animais infectados ou por meio de objetos e contato com locais onde os esporos dos fungos tenham sido depositados, e tanto crianças como adultos podem ser portadores assintomáticos. O diagnóstico primário é baseado na microscopia óptica (!), sendo a cultura fúngica necessária para a identificação definitiva do agente etiológico e para a instituição do tratamento específico com antifúngicos tópicos e/ou sistêmicos.

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(!) Dois testes ópticos comumente usados para diagnóstico incluem a análise microscópica direta da região afetada (ex.: pelos), a qual permite observação dos elementos fúngicos (hifas e artroconídios) invasores, e o exame via lâmpada de Wood. Nesse último caso, quanto expostos à luz da lâmpada (faixa de 320 a 450 nm), as regiões invadidas pelo fungo emitem um brilho amarelo-esverdeado. Essa fluorescência é devido aos metabólitos de triptofano produzidos por algumas espécies de dermatófitos, como o M. canis.

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          Vários antifúngicos são utilizados como tratamento, incluindo a griseofulvina, derivados azólicos (fluconazol, oxiconazol, itraconazol, cetoconazol) e a terbinafina, os quais podem ser combinados em alguns casos. O mais frequentemente usado antifúngico é a griseofulvina, cujo mecanismo de ação se dá pela ligação da tubulina, que é uma proteína que forma os microtúbulos do fuso acromático, inibindo o processo de mitose do fungo. Os outros antifúngicos citados inibem enzimas da via de biossíntese do ergosterol, levando à redução da conversão de lanosterol em ergosterol - principal esterol presente na membrana celular dos fungos - e subsequente impedimento do crescimento fúngico.

          Desde muito tempo, a griseofulvina tem sido usada para o tratamento da tinea capitis, devido à sua eficácia e boa tolerância, especialmente em crianças, o baixo custo e mínimos efeitos colaterais. Contudo, uma desvantagem de sua utilização é a necessidade de um tratamento de longa duração (6-12 semanas), o que leva, muitas vezes, a uma redução na taxa de adesão terapêutica e, consequentemente, à recidiva das lesões.


   MICROSPORUM CANIS

           Em específico, o Microsporum canis - uma dermatofitose zoofílica - é associada com alopécia multifocal, escamação e lesões circulares em animais não-humanos, e com formas localizadas em humanos, como tinea capitis, tinea corporis, tinea pedis e onicomicose. A transmissão zoonótica ocorre através de contato direto com animais infectados doentes ou com um quadro subclínico, principalmente via gatos, ou com artrósporos, os quais podem permanecer viáveis no ambiente por até 18 meses. 

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           Infecção humano-para-humano tem sido frequentemente registrada - especialmente entre crianças - e animais assintomáticos são considerados de serem disseminadores da doença em cerca de 50% dos humanos infectados. Cães e gatos são considerados hospedeiros naturais, mas vários outros animais domésticos e selvagens podem também carregar o fungo. A ocorrência desse organismo é global, mas mais relevante na Europa, Leste do Mediterrâneo e América do Sul.


            Griseofulvina é geralmente o tratamento de escolha para tinea capitis por espécies de Microsporum. Porém, infecções pelo M. canis caracterizadas por recorrência e falha terapêutica têm sido registradas em 25-40% dos pacientes tratados, potencialmente devido à falta de comprometimento do paciente, falha de penetração do fármaco no tecido, biodisponibilidade variável da medicação, e resistência fúngica (processo evolutivo) (Ref.5).


> Em 2020, no periódico Medical Mycology Case Reports (Ref.6), pesquisadores descreveram o primeiro conhecido de quérion causado pela co-infecção de duas espécies de dermatófitos: T. mentagrophytes e M. canis. O paciente afetado tinha 5 anos de idade, vivia em uma área rural e tinha constante contato com gatos e coelhos. Uma grande úlcera (3 x 4 cm) se desenvolveu no couro cabeludo (tinea capitis), cercada de pústulas foliculares. Tratamento com terbinafina oral por 2 meses foi efetivo. 


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMicm2108047 
  2. Silva et al. (2018). Etiologia e epidemiologia da tinea capitis: relato de série de casos e revisão da literatura. RBAC. 2019;51(1):9-16. https://doi.org/10.21877/2448-3877.201800781 
  3. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK537193/
  4. Peano et al. (2017). Infection by Microsporum canis in Paediatric Patients: A Veterinary Perspective. Veterinary Sciences, 4(3), 46. https://doi.org/10.3390/vetsci4030046
  5. Cafarchia et al. (2018). Therapy and Antifungal Susceptibility Profile of Microsporum canis. Journal of Fungi, 4(3), 107. https://doi.org/10.3390/jof4030107
  6. Liu et al. (2020). First report of kerion (tinea capitis) caused by combined Trichophyton mentagrophytes and Microsporum canis. Medical Mycology Case Reports, Volume 29, Pages 5-7. https://doi.org/10.1016/j.mmcr.2020.05.002
  7. Ciesielska et al. (2021). Metabolomic analysis of Trichophyton rubrum and Microsporum canis during keratin degradation. Scientific Reports 11, 3959. https://doi.org/10.1038/s41598-021-83632-z