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O que é dermatofitose?

 - Atualizado no dia 19 de novembro de 2025 -

          Um menino de 6 anos de idade apresentou-se à clínica dermatológica com um histórico de 3 meses de vermelhidão no seu rosto e escalpo, com perda capilar associada. Sobre exame físico, o paciente tinha múltiplas placas eritematosas e escamosas no seu escalpo, pescoço, e rosto, assim como regiões de alopécia e linfadenopatia bilateral pós-auricular. Áreas de fluorescência verde foram observadas sobre o escalpo sob exame com lâmpada de Wood (Figura A). Após preparação de uma amostra de cabelo com hidróxido de potássio, exame microscópico mostrou hifas e esporos no lado externo da estrutura capilar, indicando uma infecção ectotrix.


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          Subsequente teste molecular em amostras do escalpo do paciente identificou o fungo da espécie Microsporum canis, avaliação microscópica direta de culturas fúngicas mostrou hifas septadas e macroconídios (Figura B). O M. canis é um fungo zoofílico que é frequentemente adquirido de animais domésticos. Os pais do paciente reportaram a inexistência de animais domésticos na casa, mas que o paciente pode ter sido exposto a animais domésticos ou selvagens quando viajou por vários meses para o interior da China (zona rural).

          Tratamento oral e tópico com terbinafina foi iniciado, e, após 6 semanas de terapia, as lesões na pele foram resolvidas. Nenhuma recorrência de problema epidérmico foi reportada 3 e 6 meses após a finalização do tratamento. 

          O caso foi descrito e reportado no periódico The New England Journal of Medicine (Ref.1).

 

   DERMATOFITOSES E FUNGOS

          Dermatofitoses - ou tinea - são micoses superficiais, causadas por fungos filamentosos denominados dermatófitos, que são capazes de invadir o estrato córneo da epiderme e de degradar estruturas queratinizadas associadas como pelos, unhas e a própria pele. Os agentes etiológicos associados a essa infecção em humanos pertencem a três gêneros principais: Microsporum, Trichophyton e Epidermophyton. Transmitida por contágio direto ou indireto, as dermatofitoses são de ocorrência mundial e consideradas o terceiro distúrbio de pele mais frequente em crianças menores de 12 anos - especialmente do sexo masculino - e o segundo mais frequente na população adulta.

          O quadro clínico das dermatofitoses inclui lesões tipicamente cutâneas, conhecidas como tineas, sendo a sua designação atribuída de acordo com a área afetada: tinea capitis (região do couro cabeludo), tinea corporis (região do corpo/pele glabra), tinea manum (região das mãos), tinea cruris (região inguinal), tinea pedis (região dos pés) e tinea unguium (unhas das mãos e dos pés). 

Paciente pediátrico com tinea manuum bolhosa, e, nesse caso específico, uma dermatofitose causada pelo fungo Trichophyton tonsurans. O paciente não apresentava prurido. Tratamento com terbinafina oral e miconazol tópico por 1 mês levaram à resolução completa das lesões. Dermatofitoses tipicamente se apresentam com espalhamento centrífugo e clareamento central, formando placas anulares e escamosas. Infecções de tinea bolhosa afetam mais frequentemente os pés e o tronco. A formação das bolhas parece ser resultado de reação de hipersensibilidade a antígenos fúngicos. Dermatofitoses com apresentações bolhosas são mais comumente causadas pelos fungos T. rubrum, M. canis e T. schoenleinii. Ref.16

           A tinea capitis é uma dermatofitose que acomete o couro cabeludo, sobrancelhas e cílios, afetando, principalmente as crianças. Esses processos são ocasionados, basicamente, por espécies de fungos antropofílicos, ou seja, que parasitam, preferencialmente, a queratina dos seres humanos. Entre essas espécies, destacam-se Trichophyton rubrum, T. mentagrophytes, T. tonsurans e Epidermophyton floccosum, entretanto, espécies como Microsporum canis, apesar de zoofílicas, também podem acometer os humanos. Inicialmente, essa condição se manifesta como uma lesão circular, semelhante a um anel, de coloração avermelhada e escamosa, acompanhada de alopécia, que pode se tornar agudamente inflamada, formando lesões ulceradas. 

          A transmissão pode ocorrer por relação direta com pessoas e animais infectados ou por meio de objetos e contato com locais onde os esporos dos fungos tenham sido depositados, e tanto crianças como adultos podem ser portadores assintomáticos. O diagnóstico primário é baseado na microscopia óptica (!), sendo a cultura fúngica necessária para a identificação definitiva do agente etiológico e para a instituição do tratamento específico com antifúngicos tópicos e/ou sistêmicos.

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Os dermatófitos possuem um sistema enzimático com capacidade de metabolizar a queratina, usada como substrato para obtenção de nutrientes e energia. Sua transmissão ocorre através do contato direto ou indireto com humanos e animais infectados. Os sintomas variam de acordo o agente etiológico e com a resposta imune do hospedeiro, podendo se manifestar como manchas, bolhas, fissuras e escamas. As regiões mais afetadas são couro cabeludo, espaços interdigitais, regiões plantares do pé e unhas. 

> No geral, existem nove gêneros descritos que podem causar dermatofitoses:  Trichophyton, Epidermophyton, Nannizia, Paraphyton, Lopophyton, Microsporum, Arthroderma, Ctenomyces e Guarromyces. A maioria dos casos são causados por quatro gêneros: Trichophyton, Microsporum, Epidermophyton e Nannizzia. Ref.9

> Trichophyton rubrum é responsável pela infecção mais comum que afeta a unha, também conhecida por onicomicose. Microsporum canis está relacionado às lesões de couro cabeludo e a transmissão ocorre principalmente pelo contato com gatos doentes. Epidermophyton floccosum pode ser encontrado nas infecções de região inguinal e interdígitos e a principal forma de contato com o fungo é durante o banho.

Dermatofitoses afetam de 20 a 25% da população mundial e representam a causa mais comum de infecções fúngicas no mundo. Em certas regiões geográficas, a incidência pode ser tão alta quanto 60%. As áreas mais afetadas ficam na Ásia e na África. Entre adultos, onicomicose (tinea unguium) é a forma mais comum de dermatofitose a nível global, afetando 5,5% da população geral e sendo mais frequentemente observada em países desenvolvidos. Em países em desenvolvimento, tinea capitis é a forma mais frequente. Ref.9-11 

(!) Dois testes ópticos comumente usados para diagnóstico incluem a análise microscópica direta da região afetada (ex.: pelos), a qual permite observação dos elementos fúngicos (hifas e artroconídios) invasores, e o exame via lâmpada de Wood. Nesse último caso, quanto expostos à luz da lâmpada (faixa de 320 a 450 nm), as regiões invadidas pelo fungo emitem um brilho amarelo-esverdeado. Essa fluorescência é devido aos metabólitos de triptofano produzidos por algumas espécies de dermatófitos, como o M. canis.

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           O Trichomonas rubrum emergiu como o organismo predominante em todo o mundo, afetando a Europa, a América do Sul, a Ásia e a África. A incidência de infecção por T. rubrum aumentou significativamente desde o século XX, afetando predominantemente indivíduos entre 20 e 60 anos, com uma tendência a infectar pacientes com idade mais avançada nos últimos anos. O T. rubrum é responsável por uma ampla gama de infecções fúngicas, incluindo tinea pedis, onicomicose, tinea cruris, tinea corporis e tinea manuum. As áreas mais comumente afetadas são os pés e as unhas dos pés. Diversos fatores de risco contribuem para a infecção por T. rubrum, incluindo o uso de calçados oclusivos e condições climáticas quentes e úmidas, que são particularmente propícias à disseminação da infecção durante o verão.

Esta micrografia revela um macroconídio e alguns microconídios do fungo Trichophyton rubrum var. rodhaini. Organismos dermatófitos do gênero Trichophyton normalmente habitam o solo, humanos ou animais, e são uma das principais causas de infecções de cabelo, pele e unhas, ou dermatofitose, em humanos.

          Vários antifúngicos são utilizados como tratamento, incluindo a griseofulvina, derivados azólicos (fluconazol, oxiconazol, itraconazol, cetoconazol) e a terbinafina, os quais podem ser combinados em alguns casos. Dermatofitoses em geral tem sido comumente tratadas com terbinafina, sendo este o tratamento de primeira linha desde a década de 1990. O antifúngico mais frequentemente usado em casos de tinea capitis é a griseofulvina, cujo mecanismo de ação se dá pela ligação da tubulina, que é uma proteína que forma os microtúbulos do fuso acromático, inibindo o processo de mitose do fungo. Os outros antifúngicos citados inibem enzimas da via de biossíntese do ergosterol, levando à redução da conversão de lanosterol em ergosterol - principal esterol presente na membrana celular dos fungos - e subsequente impedimento do crescimento fúngico.

          Desde muito tempo, a griseofulvina tem sido usada para o tratamento da tinea capitis, devido à sua eficácia e boa tolerância, especialmente em crianças, o baixo custo e efeitos colaterais mínimos. Contudo, uma desvantagem de sua utilização é a necessidade de um tratamento de longa duração (6-12 semanas), o que leva, muitas vezes, a uma redução na taxa de adesão terapêutica e, consequentemente, à recidiva das lesões.

          O avanço da resistência a antifúngicos - um processo evolutivo pelo qual fungos patogênicos ficam mais resistentes a fármacos e outras substâncias fungicidas - vêm tornando dermatofitoses e outras doenças fúngicas cada vez mais difíceis de tratar e o fenômeno é atualmente uma séria preocupação de saúde pública (Ref.8, 13-14). Uso indevido de antifúngicos, sem orientação médica, com doses inadequadas e interrupção do tratamento antes da cura são fatores importantes que fomentam a evolução de resistência fúngica e a emergência de superfungos.

           Nesse cenário de crescente resistência fúngica, a última década tem testemunhado a emergência de um número também crescente de infecções dermatófitas com manifestações clínicas atípicas e/ou modos de transmissão atípicos, incluindo dermatofitoses profundas (ex.: invasivas), extensivas (ex: afetando grande extensão de pele ou múltiplos locais) ou sexualmente transmitidas (Ref.12). A transmissão sexual pode ocorrer durante o contato prolongado pele-com-pele resultante da atividade sexual. Populações imunocomprometidas são significativamente mais suscetíveis às dermatofitoses disseminadas e invasivas (Ref.15).

            A espécie T. metagrophyes é o dermatófito mais comumente associado com resistência em pacientes com dermatofitoses (Ref.13). Mutações no gene SQLE - identificadas em maior prevalência na espécie emergente T. idotineae - estão especialmente associadas com a evolução de resistência (Ref.13).


   MICROSPORUM CANIS

           Em específico, o Microsporum canis - uma dermatofitose zoofílica - é associada com alopécia multifocal, escamação e lesões circulares em animais não-humanos, e com formas localizadas em humanos, como tinea capitis, tinea corporis, tinea pedis e onicomicose. A transmissão zoonótica ocorre através de contato direto com animais infectados doentes ou com um quadro subclínico, principalmente via gatos, ou com artrósporos, os quais podem permanecer viáveis no ambiente por até 18 meses. 


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           Infecção humano-para-humano tem sido frequentemente registrada - especialmente entre crianças - e animais assintomáticos são considerados de serem disseminadores da doença em cerca de 50% dos humanos infectados. Cães e gatos são considerados hospedeiros naturais, mas vários outros animais domésticos e selvagens podem também carregar o fungo. A ocorrência desse organismo é global, mas mais relevante na Europa, Leste do Mediterrâneo e América do Sul.


            Griseofulvina é geralmente o tratamento de escolha para tinea capitis por espécies de Microsporum. Porém, infecções pelo M. canis caracterizadas por recorrência e falha terapêutica têm sido registradas em 25-40% dos pacientes tratados, potencialmente devido à falta de comprometimento do paciente, falha de penetração do fármaco no tecido, biodisponibilidade variável da medicação, e resistência fúngica (processo evolutivo) (Ref.5).


> Em 2020, no periódico Medical Mycology Case Reports (Ref.6), pesquisadores descreveram o primeiro conhecido de quérion causado pela coinfecção de duas espécies de dermatófitos: T. mentagrophytes e M. canis. O paciente afetado tinha 5 anos de idade, vivia em uma área rural e tinha constante contato com gatos e coelhos. Uma grande úlcera (3 x 4 cm) se desenvolveu no couro cabeludo (tinea capitis), cercada de pústulas foliculares. Tratamento com terbinafina oral por 2 meses foi efetivo. 


REFERÊNCIAS

  1. https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMicm2108047 
  2. Silva et al. (2018). Etiologia e epidemiologia da tinea capitis: relato de série de casos e revisão da literatura. RBAC. 2019;51(1):9-16. https://doi.org/10.21877/2448-3877.201800781 
  3. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK537193/
  4. Peano et al. (2017). Infection by Microsporum canis in Paediatric Patients: A Veterinary Perspective. Veterinary Sciences, 4(3), 46. https://doi.org/10.3390/vetsci4030046
  5. Cafarchia et al. (2018). Therapy and Antifungal Susceptibility Profile of Microsporum canis. Journal of Fungi, 4(3), 107. https://doi.org/10.3390/jof4030107
  6. Liu et al. (2020). First report of kerion (tinea capitis) caused by combined Trichophyton mentagrophytes and Microsporum canis. Medical Mycology Case Reports, Volume 29, Pages 5-7. https://doi.org/10.1016/j.mmcr.2020.05.002
  7. Ciesielska et al. (2021). Metabolomic analysis of Trichophyton rubrum and Microsporum canis during keratin degradation. Scientific Reports 11, 3959. https://doi.org/10.1038/s41598-021-83632-z
  8. Silvestre & Queiroz-Fernandes (2021). Fungos dermatófitos e resistência a antifúngicos Dermatophytes fungal and antifungal resistance. Interamerican Journal of Medicine and Health. https://doi.org/10.31005/iajmh.v4i.20
  9. Chanyachailert et al. (2023). Cutaneous Fungal Infections Caused by Dermatophytes and Non-Dermatophytes: An Updated Comprehensive Review of Epidemiology, Clinical Presentations, and Diagnostic Testing. Journal of Fungi 9(6), 669. https://doi.org/10.3390/jof9060669
  10. Barac et al. (2024). Dermatophytes: Update on Clinical Epidemiology and Treatment. Mycopathologia 189, 101. https://doi.org/10.1007/s11046-024-00909-3
  11. Fontecha et al. (2024). Global Insights and Trends in Research on Dermatophytes and Dermatophytosis: A Bibliometric Analysis. Mycoses, Volume 67, Issue 10, e13803. https://doi.org/10.1111/myc.13803
  12. Dellière et al. (2024) Current and emerging issues in dermatophyte infections. PLoS Pathogens, 20(6): e1012258. https://doi.org/10.1371/journal.ppat.1012258
  13. Gupta et al. (2024). An update on antifungal resistance in dermatophytosis. Expert Opinion on Pharmacotherapy, Volume 25, Issue 5. https://doi.org/10.1080/14656566.2024.2343079
  14. García-González et al. (2025). Antifungal Resistance in Dermatophytes: An Emerging Threat to Global Public Health. Current Fungal Infection Reports 19, 9. https://doi.org/10.1007/s12281-025-00508-9
  15. Gupta et al. (2025). Deep and disseminated dermatophytosis in immunocompromised populations—A systematic review. JEADV. https://doi.org/10.1111/jdv.70115
  16. Peris-Espino et al. (2025). Bullous Tinea Manuum. JAMA Dermatology. https://doi.org/10.1001/jamadermatol.2025.3261